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Paladar: O mais fino dos sentidos

Dentro da boca, nada tem muito gosto ¿ os alimentos são apenas doces, salgados, azedos ou amargos, de acordo com a análise da língua. Mas o cérebro reúne essas informações gustativas com as impressões do nariz e cria uma imensa gama de sabores. Eis o paladar.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h03 - Publicado em 30 set 1993, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira, Cristina Ribeiro Nabuco

Se nove em cada dez pessoas não resistem ao gosto de chocolate, a culpa é da 2,6-dimetilpirazina. O nome difícil, quase impronunciável, se refere a uma molécula, capaz de se desprender de tudo o que possui esse sabor e ficar pairando no ar. Existe uma aura de 2,6-dimetilpirazina no cookie achocolatado, por exemplo. Assim, centenas dessas moléculas são tragadas, narinas adentro, quando o biscoito está prestes a ser mordido. Imediatamente, feito peças de quebra-cabeça, elas se encaixam nos receptores nervosos, situados na parte mais profunda do nariz — é neste exato instante que o ingrediente marrom-escuro começa a ser saboreado, embora pouca gente se dê conta disso. Em seguida, já dentro da boca, as partículas de 2,6-dimetilpirazina formam uma nuvem, invadindo pela segunda vez as fossas nasais, por um canal que faz a sua interligação com a garganta. Surge a certeza de quem degusta: o sabor é mesmo de chocolate. Sabor que, na verdade, é sobretudo um cheiro. Ninguém duvide, qualquer degustação começa no nariz. Apesar da fama, a boca é responsável por menos da metade daquilo que o sistema nervoso interpreta como paladar, o menos estudado dos cinco sentidos.

Até as últimas duas décadas, os laboratórios demonstravam pouco gosto pelo assunto. A explosão dos alimentos industrializados é que fez os pesquisadores prestar mais atenção na própria língua. A indústria, afinal, vive faminta de fórmulas que possam estimular o paladar de seus consumidores. Só que, nesse sentido, mesmo hoje em dia não se conhecem todas as respostas. As pesquisas parecem ter esclarecido quais ingredientes conferem este ou aquele gosto a um alimento, mas nem sempre explicam como a língua reúne informações gustativas diferentes sobre uma mesma comida, antes de transmiti-las ao cérebro. Pois, em geral, um alimento não é simplesmente doce, salgado, amargo ou azedo. Um biscoito de chocolate, por mais adocicado que seja, é sempre meio-amargo. Porque uma de suas principais matérias-primas é o grão do cacau que, ao ser tostado, reage produzindo moléculas de diversas substâncias amargas — como as de cafeína, também presentes no cafezinho. Por causa do gosto acre desse componente, muita gente não engole a bebida sem açucará-la.

O interessante é que, provavelmente, as células da língua liberam substâncias capazes de atenuar os sinais nervosos disparados pelas moléculas amargas, em prol do doce sabor do açúcar. E agiriam assim em qualquer situação, enfatizando ou não determinados sabores, conforme a comida — ao menos, essa é a conclusão de um estudo recente, conduzido por neurologistas da Universidade Estadual do Colorado, nos Estados Unidos. Os pesquisadores afirmam, com segurança, que o funcionamento das células sensoriais do paladar é muito mais complexo do que se imaginava, faltando à ciência destrinchar os seus mecanismos. E esta é uma linha de pesquisa que os laboratórios mal começam a experimentar. O fato inegável é que, enquanto aquele biscoito de chocolate se desfaz na boca e escorrega garganta abaixo, as moléculas de cafeína e outras substâncias amargas se ligam em receptores no fundo da língua; já as moléculas de açúcar se fixam na região da ponta dessa massa muscular, extremamente flexível. São os movimentos da língua — para cima e para baixo, de um lado a outro —, que esparramam por toda a sua superfície a guloseima diluída em saliva, a fim de decifrar os ingredientes. O segredo desse serviço de análise é entrar em atrito com o alimento — para isso, a língua conta com ligeiras elevações, batizadas de papilas por dois cientistas alemães do século XIX, Georg Meissner e Rudolf Wagner.

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Parecidas com vulcões marcianos, algumas papilas também podem ser encontradas na face interna das bochechas, nas vizinhanças da laringe e até no esôfago. Mas é na língua que se concentram, divididas em cinco grupos. As mais comuns são compridas feito fios e, por isso mesmo, terminaram sendo chamadas de filiformes. Entre 150 e 400 destas se espalham no dorso da língua, forrando-o como se, juntas, tecessem um tapete. Na mesma região, há ainda papilas redondinhas, denominadas cônicas pelos cientistas. Mas tanto estas como as filiformes não percebem o gosto de coisa alguma — eles captam, sim, informações tácteis e térmicas dos alimentos. Conseguem, desse maneira, distinguir um gelado milk shake do calor escaldante de um café recém-passado. Ou, ainda, diferenciar a fluidez de um suco e a dureza crocante de uma torrada.Os sabores propriamente ditos ficam por conta dos três tipos restantes. Um deles é o das papilas calciformes ou valadas que — garantem os pesquisadores — lembram castelos medievais circundados por um fosso, quando observadas ao microscópio. Especialistas em captar o gosto acre, elas desenham um V na língua. Na ponta desse órgão, por sua vez, ficam as papilas fungiformes, que se assemelham a cogumelos e têm facilidade para sentir os sabores doces e salgados. Finalmente, no último terço e nas bordas laterais, a língua é coberta pelas papilas foliáceas, parecidas com folhas, que captam a sensação de acidez de uma limonada, por exemplo.

“As moléculas dos alimentos caem nas papilas, encostando em aglomerados de células internas, que reagem de acordo com a substância química em contato”, descreve o otorrinolaringologista Ricardo Ferreira Bento. Essas reações podem acontecer de duas maneiras: no caso de sabores doces ou ácidos, as moléculas simplesmente se encaixam em receptores, com aparência de bolso, na superfície da membrana celular; esta fica alterada, enquanto dura esse encontro. Já moléculas de sabor azedo ou salgado conseguem enviar átomos diretamente para o interior dessas células, modificando a sua eletricidade. “De uma forma ou de outra, as células terminam abaladas e, então, se comunicam com neurônios, logo abaixo, que têm linha direta com o cérebro.”

Professor da Universidade de São Paulo, Bento conhece bem o caminho que liga o paladar ao sistema nervoso central. Isso porque ele já escreveu duas teses sobre o nervo facial, um dos doze pares cranianos, cuja função, entre outras, é transmitir as informações gustativas para o cérebro. Segundo o médico, alterações de paladar podem significar lesões importantes nesse nervo, decorrentes de cirurgias ou mesmo tumores. Mas há problemas muito mais corriqueiros, que também deixam tudo com outro sabor. “Um bom exemplo é a febre”, aponta Bento. “A gente sabe que as células gustativas não reagem direito, com o aumento da temperatura corporal. Daí que nenhum alimento fica com o mesmo gosto.”

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E, claro, ninguém deve se meter a gourmet com o nariz entupido, por causa de um resfriado. “A língua dá informações sobre o sabor básico, a temperatura e a consistência”, ensina o especialista. “Para ela, portanto, não há muita diferença entre um croquete de carne e uma coxinha de galinha — afinal, ambos podem ser macios, quentes e salgados. A células olfativas do nariz precisam estar livres e desimpedidas para diferenciar um alimento de outro.” Paladar e olfato têm algo em comum: ambos servem para captar diferenças químicas entre as substâncias. E, por isso mesmo, trata-se dos sentidos mais primitivos, de acordo com o biólogo americano Richard Axel, da Universidade Columbia, em Nova York. “Todo ser vivo, dos unicelulares ao homem, é capaz de sentir diferenciações químicas no ambiente”, diz Axel, numa entrevista a SUPERINTERESSANTE. Há 3 bilhões de anos já existiam organismos com mecanismos de sobrevivência muito semelhantes àquilo que, hoje, se conhece por olfato ou paladar. Os outros sentidos, como a visão e a audição, são bem mais recentes, pois só apareceram há centenas de milhares de anos. Há mais de uma década, Axel se preocupa em desvendar a evolução dos sentidos. Segundo ele, certas espécies antigas de bactérias “podem ser consideradas as tataravós do paladar”. Esses micróbios possuem quatro ou cinco tipos de receptores, desenhados especialmente para o encaixe de certas moléculas. “Quando uma substância qualquer se liga a um receptor, é disparado um sinal elétrico para o flagelo da bactéria. Assim, ela consegue se mover na direção de um amontoado de açúcar, seu alimento predileto, ou se afastar de um grupo de toxinas.” Óbvio, ninguém pode dizer se a bactéria identifica substâncias pelo cheiro ou pelo gosto: “O que importa é que a reconhece”, considera Axel.

Odor e sabor só passaram a ficar parcialmente separados com o aparecimento dos insetos na face da Terra, há 550 milhões de anos: suas antenas capturam moléculas odoríferas, enquanto receptores espalhados ao redor da boca, pelas asas e pelas patas captam a sensação de gosto. O olfato, no entanto, sempre pareceu muito mais poderoso do que o paladar, em qualquer espécie animal. O ser humano, por exemplo, consegue identificar literalmente milhares de substâncias pelo cheiro. Já em matéria de sabor, seu repertório se restringe a quatro sensações — doce, salgado, azedo e amargo. Alguns especialistas incluem ainda uma quinta sensação, defendendo estudos que catalogam como um sabor à parte o monoglutamato de sódio, muito empregado como condimento pelos japoneses. Mas isso, por enquanto, gera controvérsia. Quatro ou cinco sabores, não importa: devem existir razões, do ponto de vista evolutivo, para esse número reduzido. “Talvez, esse limite agilize a função do paladar, que é a de selecionar alimentos. Em ma-téria de cheiros, há tantas opções que a gente às vezes se perde, antes de identificar o que está sentindo”, diz Axel.

As informações gustativas, por sua vez, devem ser rápidas e precisas. A maioria dos venenos encontrados na natureza. por exemplo, apresentam gosto amargo. Quando a língua percebe esse sabor — se a pessoa não está preparada para senti-lo, sendo pega de surpresa —, costuma ocorrer uma reação reflexa. Ou seja, os músculos faciais se contraem, a epiglote na abertura da garganta se fecha momentaneamente e a boca ameaça cuspir o seu conteúdo. Há quem especule que os receptores do sabor amargo ficam no fundo da língua, justamente para dar uma espécie de última chance para se jogar fora a bebida ou alimento com sabor de veneno, antes da deglutição.

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O fato de muitas toxinas serem amargas também pode justificar a sensibilidade do ser humano a esse sabor específico: o paladar consegue notar uma molécula de gosto amargo em cada 2 milhões de moléculas. Para o azedo, a proporção é de uma para 130 000. O salgado só pode ser percebido quando há, no mínimo, uma molécula de sal entre outras quatrocentas; finalmente, é preciso existir uma molécula de gosto doce em cada duzentas, para algo parecer adocicado. Existem, sabe-se, variações de sensibilidade de pessoa para pessoa e, até mesmo, de acordo com a raça. Há certos sa-bores amargos bastante fortes, segundo o paladar de negros, que não são nem sequer notados por cerca de 10% da população branca.

O talento da língua para notar sabores também se altera com a idade. Nesse sentido, as crianças podem ser consideradas privilegiadas, porque têm quase um terço a mais de células gustativas do que um adulto. “Todos nascem com o equipamento básico para se tornar um refinadíssimo gourmet”, fala o otorrinolaringologista Sérgio Paula Santos, que também é enófilo e autor de cinco livros sobre degustação de vinhos. “A questão é que os prazeres da mesa são culturalmente apreendidos. Isto é, a criança pode se transformar ou não em um adulto de paladar apurado, conforme a variedade de sabores existente na sua dieta.”

É provável, porém, que um recém-nascido não aprecie muitas inovações e se recuse a engolir comidas que não sejam doces. Estudos levam a crer que bebidas com o menor resquício azedo, amargo ou salgado são insossas ou intragáveis, conforme o veredicto de um paladar novinho em folha. A predileção da língua por alimentos adocicados é inata, como se, nas primeiras semanas da vida, as papilas gustativas intensificassem os sinais da sensação de doçura ao cérebro — o que, supõe-se, deve acontecer. O leite materno, afinal, é levemente doce. De modo que, preferir esse sabor a qualquer outro, é uma espécie de garantia de se fazer a opção mais indicada no cardápio, na primeira fase de vida.

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Para saber mais:

Sexos opostos

(SUPER número 9, ano 2)

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Questões de gosto

(SUPER número 8, ano 5)

Nariz x Nariz

(SUPER número 5, ano 11)

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