O colapso da verdade
Existe um momento da história da humanidade que ajuda a explicar o fenômeno recente da proliferação de mentiras – mentiras do tipo “Lulinha é dono da Friboi”, ou “PF descobre que o triplex não era do Lula”. O momento da história que ajuda a explicar isso é o seguinte: a virada do videocassete para o […]
Existe um momento da história da humanidade que ajuda a explicar o fenômeno recente da proliferação de mentiras – mentiras do tipo “Lulinha é dono da Friboi”, ou “PF descobre que o triplex não era do Lula”.
O momento da história que ajuda a explicar isso é o seguinte: a virada do videocassete para o DVD. Quando todo mundo tinha videocassete, todo mundo gravava tudo: abertura de Olimpíada, corrida do Senna, capítulo de sábado da novela. Aí veio o DVD e extinguiu o videocassete. Só que os DVDs não gravavam – e os aparelhinhos de TV a cabo ainda não sabiam fazer isso. Resultado: o hábito de gravar desapareceu de uma hora para a outra – muito, muito antes de a internet torná-lo desnecessário.
É o que está acontecendo hoje com algo bem mais importante que o hábito de gravar novela. A coisa em franca extinção neste momento é outra: a qualidade da informação que a gente consome. Qualquer pesquisa, em qualquer país, tende a mostrar que algo em torno de 70% das pessoas usam o feed do Facebook como fonte principal, ou única, de informação (os outros 30% dizem usar outras fontes, mas acho que estão mentido – seja para os pesquisadores, seja para eles mesmos).
O FB está substituindo os meios profissionais de informação. E isso está acontecendo muito, muito antes de que surja algo para tornar esses meios desnecessários. Nessa realidade, basta que uma mentira nos soe agradável para ganhar status de verdade.
Quando o ministro da Educação do Temer cometeu a gafe de aceitar uma reunião com Alexandre Frota no primeiro dia de gabinete, por exemplo, vi gente me perguntando se “era verdade que o Alexandre Frota tinha virado ministro”. Esse é um caso que atravessa a fronteira do absurdo – então beleza, entra para a conta de mentiras inocentes. Nem tão inocente foi a da semana passada, quando viralizou que a PGR tinha dito “não ter provas, mas ter convicção” de que Lula tinha se beneficiado com dinheiro vindo da Petrobras. Após algum escrutínio, viu-se que a frase era uma farsa. Mas era uma farsa tão redonda que segue com status de verdade – adotada pelo próprio Lula em seu discurso. E hoje o simples ato de reafirmar que, não, a frase nunca foi falada pela PGR, virou atestado de que você só pode ser um golpista de merda. Por outro lado, se você lembra que, ei, a família Lula não se converteu em dona da Oi e da Friboi, já ganha o carimbo de esquerdopata – e a mentira segue crescendo e se multiplicando entre os que se sentem refestelados ao ouvi-la.
Quem discorda de nós a gente bloqueia, inclusive. Nisso, transformamos continuamente o nosso feed em espelho das nossas próprias convicções. E se toda a informação que recebemos só serve para isso, o fato é que não estamos nos informando mais. Ao ouvirmos só o que queremos ouvir, sem nem dar mais importância para a veracidade das coisas, estamos só alimentando nossa animosidade. Não existe caminho mais curto para a barbárie.