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Por Alexandre Versignassi
Blog do diretor de redação da SUPER e autor do livro "Crash - Uma Breve História da Economia", finalista do Prêmio Jabuti.
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O bar onde o mundo termina

“Mas pneu ainda fura?” – pensei. Ô se fura. Ainda mais quando você tá no meio da putaqueopariu, sem sinal de celular, com o estepe murcho, em algum lugar entre Porranópolis e Santa Rita do Caralho a Quatro. (“Mas como tem cidade nesse Estado, meu deus; se começar a ter voto distrital, aí que ferra […]

Por Alexandre Versignassi Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 21 dez 2016, 09h48 - Publicado em 3 jun 2016, 17h14

Realidade-Alternativa-1-Danilo-Z

“Mas pneu ainda fura?” – pensei. Ô se fura. Ainda mais quando você tá no meio da putaqueopariu, sem sinal de celular, com o estepe murcho, em algum lugar entre Porranópolis e Santa Rita do Caralho a Quatro. (“Mas como tem cidade nesse Estado, meu deus; se começar a ter voto distrital, aí que ferra tudo de vez” – pensei também –, mas não é hora de falar de política.)
Também não era nada hora de falar de política quando fui pedir ajuda num sobradinho que tinha lá longe, a quase um quilômetro da estrada. O incrível é que não era só um sobradinho. Era um bar. Um bar bem grande para estar ali, no meio do nada – com balcão pra umas dez pessoas, um monte de mesa, um escadão bonito de madeira, daqueles bem de saloon de filme mesmo.
Fui direto até o balcão. Chamei o cara que estava ali. Um cara grandão, 50 e muitos anos, com bigode de morsa.
– Amigão, por favor, meu pneu estourou ali na beira da estrada, e…
– O do rapaz ali de vermelho também.
Cacete. No outro canto do balcão, de costas, tinha um cara de camiseta do PT. A minha era da seleção. Não era hora mesmo para falar de política.
“Vai vir cuspir na minha cara, esse filho da puta. Se vier, vai ter…”.
O petista virou a cabeça na minha direção, quase como se estivesse lendo meu pensamento, o safado. E foi ali que eu perdi as pernas: o cara tinha o meu rosto. Fora o nariz meio torto e cabelo mais ralo, o bicho era um espelho encarnado. Um petista talhado à minha imagem e semelhança. Era quase como se eu fosse personagem de um conto de realismo fantástico mal escrito, com lição de moral embutida, sabe?
– “Oi, meu. Tudo bem? Cara… Ou eu tô enganado ou a gente é bem parecido, né? Tipo irmão gêmeo mesmo, sei lá, tipo…
– Tipo a mesma pessoa, né Jorge?” – ele falou – Mas porra… Coxinha agora?
– QUE PORRA É ESSA? Como é que você sabe o meu nome???
– Já tá bem óbvio, né?
– Não pra mim, meu irmão. E você nem é o primeiro cara parecido comigo que eu vi na vida. Você nem é TÃO igual assim. A começar pela voz.
– É a voz que você ouve no gravador quando grava a tua, ô coxa.
– Coxa é o caralh….
“Parou. Parou!”. Disse outro sujeito, enquanto descia correndo pelo escadão de madeira. Só de ouvir a voz eu arrepiei. Era a mesma voz de gravador do petista. E quando o sujeito deu as caras, puta merda: era o meu rosto ali de novo. Fora o terno acinturado e a gravata fininha, verde-água, era eu ali. Cuspido e escarrado. Esculpido em carrara.
E ele nem olhou na minha cara. Só gritou para o vermelhão:
– Hahaha. Se fodeu! A gente virou coxinha também!
Atrás dele, na escada, desceu outro Jorge. Esse era gordinho, mas igual eu do mesmo jeito. E também não parecia nada surpreso com a minha presença.
– QUE PORRA É ESSA??

– Ô, Morsa! Traz uma gelada pro Jorge novo aqui na mesa – disse o cara do terno – E fica tranquilo aí que eu te conto. Quando eu cheguei por aqui, tava só o Morsa no bar. Meu pneu tinha furado. Estranhei pra caramba, porque pneu de BMW M3 não fura, tem uma capinha de fibra de carbono que…
– Sei, sei. Vamos direto ao ponto.
– Então. Cheguei aqui e pedi a senha do Wi-Fi pro Morsa. Não tinha. Não tem Wi-Fi nessa budega. Não tem sinal, não tem nada. Perguntei se tinha borracheiro por perto. Ele falou “só se for lá no Posto Ipiranga”, e ficou dando risadinha. Mas antes que desse tempo de eu ficar bravo, entrou o Che Guevara aqui, né Che?
– “Che” o caralh…
– Calma. De boa. Então: primeiro rolou aquele susto. A gente concluiu que só podia ser gêmeo. Gêmeo separado no hospital, tipo aquele documentário com as coreanas, sabe?
– Não.
– Tem no Netflix. Bom, a gente achou que era gêmeo separado no hospital. Certeza. Bateu foi uma euforia da porra. Tiramos uma porrada de foto – pra marcar legal o momento, tá ligado? E enquanto a gente tava tentando fazer uma em que aparecesse eu, o Che e o Morsa…
– Sem pau de selfie – pontuou Che.
– Isso, sem pau de selfie, porque nem que tivesse um no bar o Che aqui ia deixar a gente usar, né Che?
– Se liga, ô playboy.
– Bom, aí que estourou a bomba: entrou outro Jorge pela porta, o gordinho aqui.
– Cara – disse o Che, agora bem de boa comigo (ele devia ter percebido que eu era menos coxa que o Jorge de terno) – Foi tipo o 11 de Setembro. Quando tinha batido só o primeiro avião, todo mundo achava que podia ter sido acidente. Aí veio o segundo, e ficou óbvio para todo mundo que aquilo era merda da grossa. Na hora em que apareceu mais um Jorge, ficou claro: não tinha essa de gêmeo. O que estava acontecendo era merda mesmo. Da grossa.
O Jorge Gordinho vestia uma camisa preta grande por fora da calça para disfarçar a barriga, igual eu fazia direto antes de ter emagrecido. E começou a falar:
– Meu pneu furou lá na estrada, igual o deles. E igual o seu, imagino. Aí entro aqui e, porra: vejo esses dois me encarando como se eu fosse o Monstro do Lago Ness. Tenso. Tanto que nem percebi a parte das semelhanças. Nada.
– Vai, ô boleta, conta a história direito – disse o Jorge Playboy.
– Tô contando, ô. Quando vi a cara dos dois… Aí entendi por que é que estavam me olhando daquele jeito, minha nossa. Fiquei doido.
– Começou foi a chorar que nem um bode desmamado, isso sim – disse o Che, com uma risadinha maldisfarçada no canto da boca. E o Gordinho seguiu falando:.
– Me veio um negócio na cabeça. Do nada. Dei um passo pra trás e gritei pros caras: ´Rua Luis Borges 1359, apartamento 37!´
– Puta merda – falou o Playboy – Nessa eu pedi truco: “Guilherme e Leonor de Azevedo Soares!!”. Aí o Gordinho pirou de vez, né Gordinho?
Eu também. Porra. Eles tinham acabado de falar o endereço onde eu tinha nascido e o nome dos meus pais – e era também o endereço onde eles tinham nascido, e os nomes dos pais deles. Perdi a fala. Mas com o Gordinho foi pior. Só de ouvir aquilo de novo, ele ficou mais maluco ainda. Saiu correndo do bar.
Fui atrás. Senti que precisava ajudar o cara. Como não? E quando atravessei a porta do bar, ploft. O Gordinho desapareceu da minha frente. Eu estava a um metro dele, com o sujeito olhando para trás enquanto corria. E o bicho sumiu. Foi deletado da existência, bem na minha frente.

Sentei no chão. Puxei uns dez minutos parado ali, sei lá, tentando botar a mente no lugar. E decidi voltar para o bar. Você faria a mesma coisa no meu lugar, imagino. Aí entro de volta, e o que acontece? O Gordinho, velho. O Gordinho estava lá dentro, com o Playboy e o Che, como se nada tivesse acontecido. Ele disse:
– Cara!! Você tinha desaparecido. Olhei pra trás e você evaporou. Aí voltei pro bar. E agora você de novo…
– VOCÊ que sumiu, cacete…
– Ô Morsa! – gritou o Playboy. No que o Che emendou:
– Morsa, filho da puta! Que porra de lugar é essa pica dos infernos?
“Inferno”. Foi o que me veio na cabeça também. Aquilo só podia ser o inferno. Ou purgatório, tipo a bosta do Lost, só que agora de verdade. Vai ver eu tinha morrido na estrada, e…
– Rapaziada – disse o Morsa, finalmente abrindo aquela boca parcialmente escondida pelo bigode branco de leão-marinho.
– Pra começo de conversa – continuou o Morsa – não fui eu que cruzei o caminho de vocês. Vocês que cruzaram o meu. E eu não sou um quinquagenário com bigode hipertrofiado. Isso é a forma como você está me vendo. Digo, como vocês estão me vendo. E não me perguntem por quê.
– Se você não é um cara de bigode num bar no meio do nada, você é o quê, então, amigão?
– Sou um Buraco de Minhoca.

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– Desculpa, Morsa. Pessoal, olha só, se todo mundo aqui é o Jorge Azevedo Soares, e é, imagino que todo mundo aqui fez física na faculdade.
– Eu não – disse o Che – Sou de Humanas.
– Eu fiz – falou o Playboy – Mas saí no terceiro ano pra trabalhar no mercado financeiro.
Só eu e o Gordinho tínhamos terminado. Agora eu era geofísico da Vale. Ele, professor da USP.
– Morsa – continuei – A essa altura, se você me dissesse que era o Coelho da Páscoa, eu acreditava. Mas vamos lá, cara. Um Buraco de Minhoca é um objeto, um troço, uma coisa. Você falar que é um Buraco de Minhoca faz tanto sentido quanto eu dizer que eu sou o prédio da Fiesp na Paulista.
– Certamente você não é um prédio, Jorge, pelo menos não por enquanto. Mas, sim, eu sou um Buraco de Minhoca. Não só eu. Tudo isso aqui em volta, que vocês enxergam como se fosse um bar, também é. Essa estrutura toda é o meu corpo – e vocês só estão vendo a coisa toda como um bar porque gostam de uma birita, sei lá. Mas não interessa. Vocês estão dentro de um Buraco de Minhoca e pronto.
– Não faz sentido…
– Jovem… Eu e os outros Buracos de Minhoca somos lugares onde vários Universos se encontram. Existe um Universo em que o Jorge fez Exatas. E tem outro Universo, bem parecido, em que tudo é quase igual, exceto pelo fato de que o Jorge fez Humanas. Esses Universos se encontraram aqui agora. Bom, não os Universos inteiros. Só os Jorges mesmo. Acontece direto….
– Se é assim, então, então existe um Universo onde eu namoro com a Gisele Bündchen? – perguntei.
– Não, Jorge. De jeito nenhum. Um Universo assim contrariaria as leis mais fundamentais da…
– Caralho – interrompeu o Playboy, num surto, falando como se tivesse saído de dentro de uma duna de cocaína – Eu não saí da faculdade pra trabalhar no mercado financeiro, caras. Não. Saí foi por um motivo idiota mesmo: perdi um gol ridículo de fácil nos Jogos Universitários. Na final. Fim da prorrogação. Aí não tive mais cara pra aparecer de novo naquela porra. Pelo menos por uns tempos. Achei melhor trancar e voltar só depois que a poeira tivesse baixado… Só que aí eu já tinha entrado na Bolsa e tava ganhando uma grana boa. Não tinha mais por que voltar. Se bem que agora, com a crise toda, acho que era melhor eu ter terminado a faculdade mesmo… Mas ei: alguém aqui fez aquele gol?
Sim. Eu e o Gordinho tínhamos feito. E foi ótimo.
– É isso – continuou o Morsa – Você, meu amigo do terno italiano, é o Jorge que não fez aquele gol. Mas você também é o único que casou com a Nina, os outros três aqui não tiveram a mesma sorte.
– É… Eu não iria parar com a faculdade sem me declarar pra Nina.
Senão, a gente nunca mais se via. Até hoje não acredito que deu tão certo.
– Você pegou a Nina?? – eu disse.
– “Pegou” o CACETE. Respeita a minha mulher!
– Hahaha – gargalhou o Morsa – Sempre dá essas merdas quando eu apareço. SEMPRE. Hahahahaha.
Enquanto o tiozão ria, ele ia desaparecendo. Exato. Ele, as paredes do bar, o Che, o Playboy, o Gordinho… Cada Jorge devia estar voltando pro lugar de onde veio. Não sei. Só acho que cada um deles deve ter me visto desaparecer também.
E agora eu estava sozinho de novo, no meio do nada, com o sol me fervendo a cabeça. Sabe quando você acorda de um sonho e ele vai evaporando? Era como se o bar continuasse sumindo. Não só da realidade, mas de dentro da minha cabeça também.
Então ouvi o blip do WhatsApp. O sinal do 3G tinha voltado. Era uma mensagem da Nina, dizendo que ela tinha terminado com o demente do Luís Fernando e que queria almoçar comigo algum dia, coisa que o cara não deixava de jeito nenhum. Estava começando a digitar que “Sim, claro, estou com saudade também”. Mas não. Mandei um coração de volta. Daquele que aparece grandão, pulsando na tela.

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Este conto foi publicado na edição de junho da SUPER.

*ilustrações: Danilo Z.

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