A longa viagem do atum
As peculiaridades desse peixe nômade de sangue quente, num texto clássico da SUPER, publicado em 1988. #SuperArquivo
A humanidade descobriu o atum há mais de 25 mil anos – pelo menos dez mil anos antes da origem da agricultura. E descobriu em praticamente todo o planeta, das regiões geladas às zonas mais equatoriais. “Nenhum outro peixe se mostrou tão importante através das eras – em termos de volume, de utilização, de competência e de versatilidade”, diz Waverley Root, um especialista na evolução da gastronomia. Competência? Precisamente. Essa é uma palavra que se encaixa às mil maravilhas ao atum, um peixe que antologicamente batalha com o arenque e com o bacalhau na relação dos prediletos dos estômagos universais. Um peixe que, de qualquer forma, ganha sempre a briga que interessa – a da sobrevivência.
Da família dos escombrídeos, subfamília dos tunídeos, o atum se subdivide em treze espécies de características assemelhadas, mas só uma de qualidades superpreciosas de sabor e capacidade nutritiva.
Atum-verdadeiro, só três: o Thunnus thynnus, o Thunnus alalunga e o Euthynnus pelamis, peixes com peculiaridades que apenas recentemente a biologia marinha conseguiu descobrir: as razões da sua competência, da cor e do paladar diferenciados da sua carne estão no fato de o atum-verdadeiro – ao contrário de quase todos os seus parceiros subaquáticos, possuir muito sangue – e sangue quente (o bastante para manter o corpo do animal três graus acima da temperatura da água).
Os pescados em geral têm a carne branca precisamente por falta de hemoglobina. E quase todos desperdiçam calor, através das suas guelras, no processo de respiração. O atum-verdadeiro, todavia, consegue manter o ardor interno graças a uma admirável circunstância metabólica que lhe permite usar também os músculos do corpo na coleta e na filtragem do oxigênio à sua disposição nos oceanos. Um processo igual, embora de resultado invertido, àquele que move os aparelhos de ar-condicionado ou mesmo os refrigeradores domésticos.
Ocorre que as suas células musculares contêm fartos reservatórios de carboidratos. Por meio de um sistema de trocas, que a física explica bem, a energização dos músculos do corpo do atum-verdadeiro eleva e mantém alta a sua temperatura circulatória.
O sangue venoso, devidamente aquecido, abana os músculos e faz o seu caminho de volta rumo ao coração e às guelras do bicho. No trajeto, passa por entre os vasos que trazem, das guelras e do coração, o sangue novo, arterial, ainda frio, enriquecido com o oxigênio extraído do oceano. Nesse jogo de corrente e contracorrente, o sangue novo vai atingindo a mesma temperatura do venoso.
Isso lhe permite viajar mais depressa e para muito mais longe do que qualquer outro peixe. E isso então lhe permite defender-se melhor das intempéries, das bactérias e dos fungos. Um único animal além do atum-verdadeiro, o caribu das neves canadenses carrega esse donativo da natureza: retirar o seu calor inclusive do frio. Escavações paleolíticas no norte da Europa encontraram ossos e outros restos de atum-verdadeiro, arenque e bacalhau. Escavações paleolíticas no sul da Europa só acharam ossos de atum-verdadeiro – o que prova sua capacidade de globetrotter, um morador do mundo todo.
Pena que, na gastronomia, tanta gente confunda os Thunnus e o Euthynnus pelamis com seus primos mais pobres e muito menos eficientes. Para entender as razões, é necessário descrever os peixes e as suas características primordiais. O Thunnus thynnus, que os americanos chamam de bluefin e os brasileiros de albacora azul, se assemelha muito à albacora-branca (ou yellowfin). Os seus formatos são quase idênticos. O T. thynnus apenas ostenta uma nadadeira dorsal em tom de anil-brilhante. A albacora-branca alcança 1,3 metro. Da albacora-azul já se capturaram exemplares de 5 metros.
O E. pelamis, também batizado de Katsuwonus pelamis, em inglês skip-jack, se destaca pelo ventre marcado por sete listras longitudinais e alcança habitualmente os 70 centímetros. Trata-se do tunídeo mais abundante nas costas brasileiras. A albacora-branca participa em 5 por cento do mercado do atum-verdadeiro. O Thunnus thynnus, porém, só no Mediterrâneo italiano. A confusão principia quando se chama de atum aos bonitos, às cavalas e, pior ainda, às serrinhas.
Os bonitos são parentes dos tunídeos. Já as cavalas (Scomberomorus cavalla) e as serras (Sarda sarda) possuem carnes brancas. No Brasil, é comum vender-se serra e cavala por bonito. E é comuníssimo vender-se bonito por atum. Muito maiores em tamanho e peso, os tunídeos apresentam-se com músculos mais sólidos e mais compactos, de postas enormemente generosas, cuja abundância de veias e artérias se transforma em lascas precisas no instante do cozimento e, enfim, do deleite da mastigação.
É bem maior o aproveitamento, na indústria e em casa, do atum-verdadeiro. Antigamente (e ainda hoje em certas regiões do Mediterrâneo) capturava-se o atum-verdadeiro com redes em forma de labirintos – da última etapa, nenhum peixe podia escapar. O método era, contudo, predatório em demasia. Não selecionava tamanhos, idades, sexos ou subespécies. Criou-se, assim, um método diferente de pegá-lo, aparentemente mais elementar, porém definitivamente produtivo. Para praticá-lo, basta ver onde se localizam as plataformas petroleiras e os cardumes dos peixes-voadores, os pitéus prediletos dos Thunnus e do Euthynnus pelamis. Vários barcos, de bom tamanho, circundam a região determinada.
Então, dezenas de pescadores lançam ao mar sardinhas vivas e as suas varas poderosas em cujos anzóis apenas se dependuram pequenos tubos flexíveis e vazados, caninhos de plástico branco. Com o movimento das embarcações e com a ajuda de um esguicho de água, o atum-verdadeiro confunde o brilho com a correria dos peixes-voadores e abocanha os anzóis. Curiosamente, o bicho não reage como um marlim ou um espadarte, espetaculares no esporte da pesca oceânica.
Paira um certo conformismo no comportamento do atum-verdadeiro, que percebe o seu aprisionamento. E isso as características singulares do belo peixe também explicam com facilidade. Trata-se de uma animal que preza os grandes espaços livres.
Um tunídeo, quaisquer que sejam as suas dimensões, costuma se locomover à fantástica velocidade de vinte comprimentos por segundo – num exemplar de 1 metro, dá 20 metros por segundo, ou 70 km/h.
Muito bem. Tal bicho não aceita qualquer tipo de restrição ao seu caminho. Se encontra uma rede ou um anzol que tolham a sua liberdade, assume pragmaticamente a derrota. Saltita e se contorce fora da água, exclusivamente porque nenhum atum-verdadeiro deixa de sofrer o momento da morte. Aliás, o tunídeo nem chega a sofrer o momento da morte como muitos outros peixes, capazes de resistir infindáveis minutos à falta do seu meio aquático. Por causa do sangue quente e da necessidade praticamente imediata de renovação de oxigênio, o atum-verdadeiro se asfixia bem depressa. Coisa triste, mas providencial com relação à qualidade da sua carne. Na sua agonia, acontece uma liberação insignificante de adrenalina, que normalmente enrijece as fibras.
Depois de capturado, o peixe é eviscerado, com a retirada dos órgãos e das glândulas, que estimulam a putrefação. O bicho entra, então, em equipamentos grandiosos de cozimento por vapor e na etapa final de sua limpeza, com o cone da cabeça e da cauda, a retirada da pele e das espinhas e a sua divisão em postas para o envasamento. Cerca de 80 por cento do atum se mantém sólido, compacto, superlativo. É o atum que se devora nos shashimis. Os outros 20 por cento, igualmente de categoria em sua essência, são, todavia, desfiados; e viram atum de pizza.
A mais antológica receita gastronômica de atum-verdadeiro vem da ilha italiana da Sicília, de onde procede no mínimo metade das 100 mil toneladas do peixe produzidas anualmente pela Velha Bota. Trata-se dos spaghetti con il tonno alla trapanese, da região de onde proveio, sete séculos atrás, o clã normando dos Lancellotti.
Ingredientes, para quatro pessoas: 500 gramas de spaghetti, 5 litros de água fresca e declorada, 2 colheres (de sopa) de sal, 1 colher (de mesa) de azeite de oliva, 4 xícaras (de chá) de polpas de tomates bem vermelhos, picadinhas, 2 xícaras (de chá) de atum-verdadeiro, sólido, desmanchado com a ponta de um garfo, 1 xícara (de chá) de lascas de azeitonas-verdes, preferivelmente as do tipo Gordal, 1 colher (de sopa) de alecrim picadinho, 1 colher (de café) de orégano, 1/2 colher (de café) de pimenta-vermelha, em pó, 1 colher (de mesa) de alcaparras.
Modo de fazer: na água fervente e já salgada, colocar o macarrão para cozinhar. Paralelamente, aquecer o azeite e nele refogar os tomates, mexendo em fogo brando, por cerca de 5 minutos. Incorporar o atum, 1 minuto antes do ponto al dente da massa. Retirar, escorrer e banhar com mais azeite. Despejar a massa na panela do molho.Agregar o alecrim, o orégano, a pimenta-vermelha e as alcaparras. Misturar, delicadamente. Terminar o cozimento da massa e servir imediatamente.