Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

A morte não tem hora

O que separa a vida da morte? A resposta é muito mais difícil do que parece.

Por Fábio Marton
Atualizado em 31 out 2016, 19h04 - Publicado em 22 jul 2016, 15h45

Há dois meses, um incidente familiar trágico* levou a um pensamento esquisito. Um ente querido havia tido um infarto e seu coração havia parado, mas recebeu o procedimento de reanimação cardiopulmonar e voltou. Ouvi então de um parente: “ele morreu por três minutos”. “Não, ele não morreu”, pensei sem dizer. “Se morresse, não estaria vivo.”

Parece bobagem, mas a morte é uma coisa realmente complicada. Pergunte a filósofos, cientistas e médicos, e cada um pode dar uma resposta diferente – inclusive médicos de diferentes especialidades. Dicionários de medicinacostumam definir morte como “a cessação irreversível de todas as funções vitais”. A coisa pega é no “irreversível” – no caso acima, a parada cardíaca foi reversível, então não houve morte.

A morte que não era

Por quase toda a história humana, se o coração ou a respiração parasse, alguém era considerado morto. Com a criação dos eletroencefalogramas, no início do século 20, se descobriu que a falta de atividade cerebral também podia determinar a morte, pois parte do cérebro controla a respiração. Não tinha contradição: se o cérebro, pulmões ou coração param, os outros também param logo em seguida. A única solução eram sete palmos de terra.

A coisa começou a complicar com a criação da reanimação cardiorrespiratória e dos respiradores artificiais, nos anos 1950. Não só alguém podia se recuperar de parada cardíaca, como ficar indefinidamente ligado num respirador, mesmo se o cérebro parasse de funcionar – até ter filhos assim (o que complica ainda mais as coisas). Seja como for, a morte cardiorrespiratória, histórica, não era mais morte o suficiente.  

Continua após a publicidade

Criou-se então o conceito de “morte cerebral”, em 1968, que virou lei a partir dos anos 1980. Essa é a ausência completa de atividade neurológica, quando o paciente já não pode mais respirar por conta própria. Isso indica que é hora de jogar o pano sobre o rosto e desligar as máquinas. Ainda que o corpo viva, a pessoa, sem aparelhos, não é nem um vegetal, mas um cadáver. Nunca mais vai voltar.

Os reanimadores

Ou vai? Será que chegamos a uma resposta definitiva? Há uma experiência em curso para tentar recuperar pacientes com morte cerebral usando células-tronco e outros processos. Se der certo, provavelmente se proponha chamar o processo de “ressurreição cerebral”, como há quem chame a reanimação cardiorrespiratória de”ressurreição cardiorrespiratória”. O que é tolice, porque morte reversível não é morte.

LEIA: A morte como ela é

Mesmo se essa experiência não funcionar, o dilema não vai desaparecer. Vejamos outro caso: pense em um corpo numa instituição de criogenia, aquelas que congelam os corpos ao invés de enterrar. Pela lei, para alguém ser congelado, precisa antes estar legalmente morto. Mas essas pessoas optaram pelo procedimento na esperança de, um dia, a tecnologia ser capaz de trazê-las de volta. Não há o menor sinal que será. Ainda assim, se alguém pegar um martelo e quebrar um desses corpos, isso pode ser considerado assassinato? Existe um morto potencialmente vivo?

A hora do “desisto”

Não é que a morte seja uma ilusão. Existe o processo de decomposição, que aniquila um corpo quando suas funções vitais param, as células se partem em pedacinhos e as bactérias e vermes começam o banquete – mas ele não começa ao mesmo tempo em todos os lugares, então também não tem uma hora certa. O momento da morte acaba sendo simplesmente aquele em que a gente joga os braços para cima por não saber (ainda) mais o que fazer. A velha morte cardiorrespiratória ainda serve de critério, quando a reanimação não funciona – não precisa de encefalograma se o coração não volta mais, tudo vai para o vinagre daí para frente. Assim como não precisa medir o pulso de alguém que foi decapitado.

Esqueça a ideia de um fantasminha saindo do corpo quando alguém leva um bigorna na cabeça. Não existe um circuito mágico dizendo que alguém está vivo ou morto. No máximo, tem a hora do “fazer o que, né?”.

Continua após a publicidade

*A história não tem um final feliz (e isso é uma matéria que estou escrevendo para a SUPER). O ente em questão – meu irmão – morreria, dessa vez sem volta, uma semana depois.

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.