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Acaso marcado

Um novo ramo da ciência - o estudo da sincronicidade - sugere que o acaso não existe. Eventos inesperados regulariam desde átomos até a nossa vida.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 30 jun 2003, 22h00

Numa noite de dezembro de 1986, Lisa Belkin, repórter do jornal The New York Times, tentava curar um resfriado, quando o telefone tocou. Do outro lado da linha, uma amiga a convidou para irem ao cinema. Lisa hesitou, mas a amiga insistiu. O programa era apenas um pretexto para ela fisgar um colega e à jornalista caberia a tarefa de distrair um amigo que o rapaz levaria ao encontro. Lisa meteu-se num agasalho e foi ao encontro, mas ao chegar ficou sabendo que o seu par fora substituído por outro convidado, um médico residente que acabara de sair do plantão. Durante a sessão, a jornalista e o médico, exausto após 36 horas de trabalho, dormiram. Quatro meses depois, no entanto, os dois estavam casados e até hoje vivem juntos.

O caso foi descrito pela própria Lisa numa reportagem sobre coincidências que supostamente cercaram os atentados de 11 de setembro de 2001. O texto dividiu opiniões. O que teria, afinal, movido os fatos naquela noite e levado a jornalista a ceder à pressão da amiga, apesar das condições adversas, numa espécie de conspiração para mudar a sua vida? Squire Rushnell, espiritualista e autor do livro When God Winks: How The Power of Coincidence Guides Your Life (“Quando Deus dá uma piscadela: como o poder da coincidência guia sua vida”, ainda inédito em português), viu uma força mística por trás de cada detalhe da história. Para o estatístico Persi Diaconis, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, tudo não passou de um evento explicado pela matemática. “A lei dos grandes números demonstra que em um ambiente vasto, como o mundo, coisas estão sempre acontecendo, mesmo coisas estranhas”, afirma Diaconis. “Seria anormal o dia em que não ocorresse algo inesperado.” Cética de carteirinha, Lisa concorda com ele.

Foi sempre assim. Coincidências acontecem em toda parte e com toda a gente. (Quem nunca se surpreendeu com o fato de lembrar de alguém que está distante e, em seguida, receber uma ligação da pessoa?) Mas quando elas acontecem fica no ar a polêmica entre os que preferem o argumento racional, baseado em cálculos probabilísticos, e os que adotam a justificativa religiosa de que nada ocorre por acaso. A novidade é que um filão recente da pesquisa científica pode estar prestes a romper essa dicotomia. Nessa nova perspectiva, as coincidências fazem parte de um fenômeno amplo e universal, cujas entranhas guardam os segredos da própria funcionalidade do cosmo: o fenômeno da sincronia.

Na contramão de algumas teorias e até das leis da termodinâmica – que sugerem a implacável degeneração da natureza num estado de grande desordem –, o estudo da sincronia sugere um universo mais harmônico e cooperativo do que jamais imaginamos. Um lugar onde todas as partes – do átomo às galáxias, da bactéria ao homem – bailam em parceria, sob o comando de uma ordem coletiva e espontânea. “O Universo inteiro parece carregar as sementes de sua ordenação”, diz Steven Strogatz, matemático da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, e pioneiro do que vem sendo rotulado de ciência da sincronicidade.

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No semestre passado, Strogatz publicou o livro Sync – The Emerging Science of Spontaneous Order (“Sincronia – a emergente ciência da ordem espontânea”, ainda não editado no Brasil), no qual resume o histórico e o propósito do novo campo de estudo, comenta teorias e modelos já concebidos e prevê a aplicação da sincronia em áreas tão diversas quanto os congestionamentos de trânsito, as oscilações do mercado financeiro e a prevenção de doenças genéticas. “Esse é o futuro da ciência, o caminho para responder às questões maiores e eternas”, diz o autor.

O panorama apresentado no livro de Strogatz impressiona, mas é provável e realista, segundo o doutor em física Murilo Baptista, da área de sistemas dinâmicos do Instituto de Física da Universidade de São Paulo. “Já que não existem sistemas isolados na natureza e a sincronicidade pode ocorrer também nas interações muito fracas, é de se esperar que o fenômeno da sincronia seja mesmo freqüente”, diz Murilo. A ideia central é que a sincronização entre sistemas em interação descreve o surgimento de uma ordem coletiva, a tal ponto que a observação de apenas um sistema leva ao conhecimento do estado de todo o conjunto. Compreender os sincronismos pode ser o meio de explicar uma infinidade de comportamentos naturais.

A investigação dos sistemas sincrônicos é recente e multidisciplinar, mas o fenômeno da sincronia é conhecido desde o século 17. Em 1665, o físico holandês Christiaan Huygens estava na cama, doente, quando percebeu que, independentemente do estado inicial de cada um, os pêndulos de dois relógios que ele construíra logo adotavam o mesmo ritmo, um movendo-se para esquerda e o outro para a direita. Surpreso, Huygens atribuiu o fenômeno a uma pulsação transmitida através da trave de madeira que sustentava os relógios, mas ninguém lhe deu crédito. Seu raciocínio só seria resgatado na década de 1960 pelo biólogo americano Arthur Winfree, na época experimentando com osciladores emparelhados – máquinas de comportamento repetitivo, como os pêndulos, utilizadas na simulação de sistemas sincronizados.

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Além da experiência com as máquinas, mais precisas que os relógios de Huygens, Winfree estudou o sincronismo entre seres vivos a partir do espetáculo dos vaga-lumes no Sudeste Asiático, que aos milhares costumam piscar em uníssono nos matagais ribeirinhos. O fenômeno começa com cada inseto emitindo flashes em seu próprio ritmo. Uma hora depois já há bolsões de sincronia que se ampliam, formando uma nuvem de vaga-lumes piscando como se fossem um único e gigantesco inseto. Como isso acontece? Winfree descobriu que o piscar do vaga-lume é um sinal que estimula o vizinho a reprogramar a sua própria freqüência de flashes, ajustando-a ao ritmo do companheiro. Estabelecida a sincronia em uma dupla, o efeito se espalha pelo resto do grupo. Seja em um bando de vaga-lumes ou em outros tipos de sistemas, a sincronização só ocorre quando os sinais trocados pelos indivíduos superam a freqüência inicial de um ou de outro, provocando a “reprogramação” dos ciclos do indivíduo influenciado.

“Abaixo desse marco, predomina a anarquia. Acima dele, estabelece-se um ritmo coletivo”, escreveu Winfree, que morreu no ano passado.

Modelos matemáticos para a sincronia foram estabelecidos pelo físico japonês Yoshiki Kuramoto e também por Strogatz, ao estudar o funcionamento das junções de Josephson, dispositivo supercondutor que rendeu o Prêmio Nobel de física de 1973 ao inglês Brian Josephson, um estudioso da sincronização. Uma junção de Josephson é uma película de óxido tão fina que, ensanduichada entre condutores de metal, pode ser atravessada pela corrente elétrica, permitindo oscilações de fluxo superiores a 100 bilhões de ciclos por segundo – 50 vezes mais que no computador doméstico mais veloz. Ou seja: contrariando padrões da física clássica, um isolante (óxido) transforma-se em supercondutor, fato possível porque, numa fileira de junções, os elétrons entram em sincronia e formam um condensado que não encontra resistência.

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“A sincronia se manifesta do subatômico ao macrocosmo, em escalas de freqüências que variam de bilhões de oscilações por segundo a apenas um ciclo em 1 milhão de anos”, diz Strogatz. O movimento da Lua em torno da Terra é síncrono, mas a sincronicidade Terra-Lua, de comportamento periódico e estável, não é a mesma dos sistemas caóticos. Nestes, a sincronia preserva o comportamento caótico de cada elemento que, por sua vez, apresenta uma complexidade singular. No trânsito, por exemplo, cada automóvel tem sua complexidade, mas também interage com os demais veículos, influenciado por fatores como as regras do tráfego e o tempo dos semáforos. Se conseguirmos equacionar esses fatores, conforme Murilo, será possível colocar os veículos em sincronia, fazendo com que um tráfego congestionado venha a se comportar como tráfego intenso, porém fluindo satisfatoriamente.

Desafio ainda maior é estabelecer uma teoria da sincronicidade em eventos humanos. Muitos pesquisadores falham nesse intento, segundo Strogatz, porque seus modelos subestimam a volição característica do homem e pretendem que ele atue como um robô. A evidência da sincronia humana, no entanto, salta de estudos recentes e da observação comum do cotidiano. Quem já viajou com um grupo grande de mulheres provavelmente ficou sabendo que um bom número delas menstruou de repente, praticamente na mesma hora. A harmonização do ritmo, nesse caso, seria resultado de uma “comunicação química” entre as mulheres por meio de feromônios, o mesmo tipo de hormônio, percebido pelo olfato, que funciona na atração sexual. A sincronia também estaria por trás de ocorrências como a moda e as manifestações coletivas – dos aplausos na plateia aos confrontos de rua – e, sobretudo, do funcionamento do cérebro e dos genes.

Os pesquisadores Nancy Kopell e Jim Collins, da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, tentam atualmente implantar na bactéria Escherichia coli um mecanismo capaz de ligar e desligar genes do organismo unicelular, em intervalos determinados, e assim programar a síntese de certas proteínas. O sucesso do experimento ajudará a compreender o sincronismo que talvez seja responsável pelo funcionamento dos genes humanos – passo importante para a prevenção de doenças e a fabricação de remédios reguladores da sincronia celular. Quanto à sincronização cerebral, há indícios mais fortes. “Apesar de os cientistas ainda se esforçarem para entender a base neural dos pensamentos e sentimentos”, diz Strogatz, “estudos feitos por neurobiologistas atestam que os atos cognitivos estão ligados a ondas de sincronia entre neurônios.”

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Um insight seria como uma rajada elétrica sincrônica, um instante em que partes separadas do cérebro entram em harmonia. O esclarecimento desse tipo de sincronia pode levar, talvez, à solução do enigma da consciência e à prevenção de distúrbios como a epilepsia. E também ao entendimento das coincidências do dia-a-dia.

Como explicar, afinal, uma história como a vivida pelos engenheiros Luciano Bezerra de Melo e Garibaldi Freitas há alguns anos, na China? Em uma viagem a Hong Kong, durante um espetáculo circense, os dois comentaram que seria impressionante se encontrassem ali alguém de Natal, a cidade onde residem. Minutos depois, ouviram alguém gritar: “Garibaldi!”. Era um amigo que havia morado em Natal e viajava a negócios. Estudioso de matemática, Luciano diz nunca ter encontrado uma justificativa para o caso, que agora lhe parece explicável pela sincronia. “A coincidência de eventos pode ser interpretada como uma conseqüência da sincronicidade entre os elementos de uma rede de pessoas interconectadas, a própria sociedade”, diz Murilo.

Como no caso dos flashes dos vaga-lumes e dos feromônios, as coincidências ocorreriam com base numa comunicação física entre as partes, ainda que não perceptível em escala macro. Uma sincronia entre elementos nos níveis atômico e subatômico cujos efeitos, tão importantes quanto a harmonia de elétrons na supercondutividade, se refletiriam principalmente na atividade cerebral. Como essa suposta comunicação ocorre é uma incógnita, embora experimentos e equações da mecânica quântica indiquem a ocorrência de um tipo de comunicação não-local (fora do espaço-tempo) entre partículas subatômicas. É o caso da experiência realizada nos anos 60 pelo físico britânico J.S. Bell com um par de fótons (partículas elementares da luz) correlacionados e enviados em direções distintas. Mesmo à distância, um evento que afetava um dos fótons também atingia o outro.

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Muitos estudiosos do sincronismo consideram esse fato uma explicação possível para os acasos. Portanto, da próxima vez que uma coincidência acontecer, não se espante. Você provavelmente trabalhou para que ela ocorresse.

Para saber mais

Na Livraria

Sync – The Emerging Science of Spontaneous Order, Steven Strogatz, Theia, Nova York, EUA, 2003

How Nature Works: The Science of Self-organized Criticality, Per Bak, Copernicus Books, Nova York, EUA, 1999

Na Internet

www.tcm.phy.cam.ac.uk/~bdj10/

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