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Batidas eletrônicas

A ciência está cada vez mais próxima de um coração artificial 100% eficiente e seguro - e essa é apenas uma das terapias revolucionárias para o seu amigo do peito.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 jul 2003, 22h00

Thiago Lotufo

Dia 3 de dezembro de 1967: o médico sul-africano Christiaan Barnard substitui o coração doente de um senhor de 55 anos pelo de uma jovem de 20 anos que acabara de morrer na Cidade do Cabo. A cirurgia, de cinco horas, foi o primeiro transplante cardíaco do mundo. O paciente, Louis Washkansky, sobreviveu 18 dias com o novo órgão. O procedimento se tornou um dos maiores marcos da medicina.

Quase 35 anos depois, em 2 de julho de 2001, os cirurgiões norte-americanos Laman Gray Jr. e Robert Dowling, do Jewish Hospital de Louisville, substituem – numa operação de sete horas – o coração doente de Robert L. Tools, um ex-fuzileiro naval de 59 anos. A diferença para o feito de Barnard é que não havia doador. Gray e Dowling realizaram pela primeira vez na história a troca de um coração humano por um coração artificial totalmente implantável, batizado de Abiocor. Tools sobreviveu quase cinco meses e a cirurgia se tornou mais um marco na medicina – não somente porque abriu um novo caminho para o tratamento de doenças do coração num futuro próximo, mas também porque a substituição total e definitiva de um coração por um dispositivo mecânico tem sido um dos objetivos mais difíceis de serem alcançados pela ciência médica. “O Abiocor é um dos aparelhos mais complexos já inventados”, disse Gray Jr.

O coração artificial totalmente implantável foi desenvolvido durante 20 anos nos Estados Unidos por uma empresa chamada Abiomed. Ele é feito de titânio e de um plástico especial conhecido por Angioflex. É pouco maior que uma bola de beisebol e pesa cerca de 900 gramas. Assim como o coração natural, possui quatro válvulas e duas câmaras que recebem e bombeiam o sangue. Pelo lado direito passa o sangue pobre em oxigênio que vai em direção aos pulmões. O lado esquerdo recebe o sangue já oxigenado e o envia para o corpo todo. Entre as duas câmaras fica o verdadeiro coração do Abiocor: um sistema de motores elétricos em miniatura que faz as câmaras encherem e esvaziarem.

A grande inovação do invento, no entanto, é um conjunto de baterias de lítio (uma externa que pode ficar na cintura e uma interna) que alimenta os motores e dá mobilidade ao paciente. No antecessor, Jarvik-7, por exemplo, o paciente tinha de ficar conectado por meio de fios que atravessavam a pele a um compressor de ar enorme, pesado e barulhento. Por causa desse e de outros problemas, o modelo deixou de ser usado após quatro implantes e a idéia de um coração artificial totalmente implantável foi deixada de lado pela grande maioria da comunidade médica.

Robert Tools foi o primeiro paciente a ser testado desde a retomada da idéia. Depois dele, mais dez pacientes foram submetidos ao implante do Abiocor (cinco em 2001, um em 2002 e quatro em 2003). Dos 11, nove morreram e, até o fechamento desta edição, dois continuavam vivos em condições estáveis. As causas das mortes vão desde complicações pós-operatórias e falência múltipla de órgãos até hemorragias descontroladas e derrames decorrentes da formação de coágulos. Tom Christerson, segundo paciente a receber o Abiocor, foi quem mais tempo sobreviveu com o aparelho. Ele morreu em fevereiro deste ano, aos 71 anos, após o coração artificial lhe ter dado 512 dias de sobrevida.

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Todos os voluntários sofriam de insuficiência cardíaca grave e tinham um prognóstico de vida de cerca de um mês. Os tratamentos convencionais (cirurgias como ponte de safena e remédios como beta-bloqueadores e diuréticos) não surtiam mais efeito. Tampouco era possível um transplante.

ALTERNATIVA AO TRANSPLANTE

Mas não é apenas para esses casos extremos que o Abiocor pretende ser útil. A idéia é tratar pessoas com quadros menos graves e ser uma boa alternativa à enorme fila de espera por um coração natural. Só nos Estados Unidos, há mais de 70 mil pacientes com indicação para transplante, mas, a cada ano, apenas cerca de 2 mil recebem um coração. “Em torno de 30% dos pacientes morrem enquanto aguardam um doador”, afirma Adolfo Leirner, coordenador do Laboratório de Bioengenharia do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas de São Paulo (Incor-HC). No Brasil, a situação também é ruim. Em 2001, de acordo com o Datasus, 386 mil pessoas foram internadas por insuficiência cardíaca e, segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, apenas 117 transplantes cardíacos foram realizados no mesmo período.

As doenças cardiovasculares são a principal causa de óbito no mundo. Matam mais de 12 milhões de pessoas por ano. No país, tiram a vida de 300 mil pessoas anualmente, sendo que 65 mil decorrem de insuficiência cardíaca, mal que atinge de 3 a 8% da população mundial (de 5 milhões a 13 milhões de brasileiros). Na insuficiência cardíaca, o coração perde sua capacidade de bombeamento e, como conseqüência, o corpo não recebe quantidade suficiente de sangue e oxigênio. Ela é resultado de outros problemas cardíacos que danificam e enfraquecem o coração, tais como hipertensão arterial, infarto, arritmias, alcoolismo, doença de Chagas e doença reumática do coração. Mais: não tem cura. Com o tempo, o portador de insuficiência sente falta de ar, sofre de inchaços e tem suas atividades físicas limitadas. Em casos graves, a única saída é o transplante. É justamente por conta desses dados preocupantes que a cardiologia avança na busca de novas abordagens terapêuticas.

O Abiocor é apenas mais uma delas – a mais radical e cara por enquanto (o custo do aparelho, do implante e do acompanhamento subseqüente é de cerca de US$ 1 milhão), além de pouco prática e ainda não totalmente confiável.

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OUTRAS BATIDAS

Uma das alternativas, que demonstra bons resultados, é parecida em parte ao coração artificial, só que menos agressiva. Trata-se dos Dispositivos de Assistência Ventricular (DAV). Como o próprio nome diz, eles são pequenas bombas que auxiliam o coração na circulação do sangue. Já eram usados há alguns anos, mas apenas transitoriamente, em pacientes que aguardavam um transplante.

A criação de dispositivos portáteis, no final da década de 90, permitiu o início de testes dos DAV como uma opção definitiva para a insuficiência cardíaca. Em um estudo comparativo com dois grupos – 61 pessoas que só receberam medicamentos e 68 com o DAV -, verificou-se que todos os que dependiam unicamente de drogas morreram em três anos. No grupo do DAV, 21 pacientes sobreviveram. Além disso, a bomba mecânica melhorou a qualidade de vida das pessoas. Elas se sentiram menos deprimidas e com uma mobilidade maior do que as pessoas no grupo dos medicamentos. “Os resultados mostram que temos uma nova maneira para tratar o problema”, afirmou Eric Rose, cirurgião-chefe do Columbia Presbyterian Medical Center, em Nova York, e principal autor do estudo.

As bombas, em geral, são ligadas ao ventrículo esquerdo do coração, que é a câmara que faz o sangue oxigenado circular pelo corpo e a parte geralmente mais comprometida nos casos de insuficiência. No mercado, atualmente, há pelo menos cinco marcas distintas. São todas portáteis, ficam implantadas ou no peito ou no abdômen do paciente e se conectam a baterias situadas dentro do corpo e na cintura.

CÉLULAS SALVADORAS

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Outra linha de tratamento, pesquisada desde o ano 2000, é o uso de células-tronco – células primitivas capazes de se transformar em diferentes tecidos. Um dos primeiros estudos se deu na França. Foram transplantadas células musculares da coxa para o coração de um paciente de 68 anos que sofrera um infarto. E verificou-se que os mioblastos – células embrionárias dos músculos esqueléticos, como o da coxa – regeneraram a região do coração danificada pela falta de irrigação e recuperaram sua função de bombeamento. “O ambiente em que as células-tronco são injetadas determina o tipo de célula em que vão se transformar”, explica José Eduardo Krieger, chefe do Laboratório de Genética e Biologia Molecular do Incor.

No Brasil, um dos trabalhos que teve repercussão internacional foi realizado no Rio de Janeiro por pesquisadores do Hospital Pró-Cardíaco, em conjunto com profissionais do Texas Heart Institute, dos Estados Unidos. Hans Dohmann e Emerson Perin, principais autores da pesquisa, recrutaram 21 pacientes no final de 2001 para verificar o que as células-tronco da medula óssea eram capazes de fazer num coração com insuficiência cardíaca decorrente de infarto.

Sete ficaram no grupo de controle recebendo apenas medicamentos, enquanto 14 receberam o implante das células em regiões lesionadas do ventrículo esquerdo. Dois deles morreram por causas aparentemente não ligadas às células-tronco. Um ano após o implante, os 12 sobreviventes melhoraram bastante e os resultados foram publicados em maio deste ano na Circulation, uma das mais respeitadas revistas de cardiologia clínica. No grupo de controle não houve nenhuma melhora significativa. Com apenas dois meses de cada implante, já era possível verificar que o coração batia com mais eficiência. Com quatro meses, os pesquisadores constataram que a área carente de sangue diminuiu 73% e a capacidade de bombeamento do coração subiu de 20 para 29%. “Ao que parece, as células-tronco formaram novos vasos nas áreas danificadas do coração”, conta Dohmann, coordenador do Laboratório de Cateterismo do Pró-Cardíaco.

Os vasos, por sua vez, aumentaram a irrigação e permitiram que as células musculares cardíacas que não funcionavam bem voltassem a se contrair adequadamente. Para o médico, no futuro a terapia com células-tronco até poderá substituir a ponte de safena em casos de infarto.

O procedimento para o implante é relativamente simples e dura cerca de três horas. Primeiro, por meio de uma agulha, é retirada a quantia necessária do líquido contido na medula óssea do ílio (osso que forma as saliências laterais da bacia). Os médicos isolam as células-tronco do líquido e, por meio de um cateter, as injetam no coração do paciente.

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CORAÇÃO RENOVADO

O carioca Nelson Aguia foi o primeiro voluntário do estudo a receber as células-tronco, em 16 de dezembro de 2001. Ele já havia sofrido dois infartos e carregava sete pontes (entre mamárias e safena) no peito. Há três anos começou a sentir um cansaço extremo. Falar e respirar causava uma forte dor no peito. “Eu não conseguia andar 400 metros”, recorda. Hoje, Nelson ainda tem que tomar diariamente os cinco medicamentos para o coração, mas é capaz de trabalhar, praticar natação, jogar futebol e andar bastante. “Dou duas voltas no estádio do Maracanã quase todos os dias”, conta. E o melhor de tudo é que ele já pode planejar o aniversário de 70 anos, em novembro.

No Incor, em São Paulo, Edimar Bocchi, chefe da Unidade de Insuficiência Cardíaca, também observou melhora clínica em nove dos dez pacientes que fizeram parte de seu estudo com células-tronco. “Eles saíram da fila de transplante”, diz. Para o médico, o futuro da cardiologia daqui a dois anos já vai ser bem diferente, com destaque para os tratamentos de regeneração celular. Uma mostra disso são os estudos nessa área que estão em andamento no mundo e no país. Por aqui, há um na Bahia, com pacientes portadores da doença de Chagas, e outro no Incor, sob o comando de José Eduardo Krieger.

A terapia gênica, de acordo com especialistas, também vai ter seu lugar garantido no futuro. “As técnicas de genética e biologia molecular permitem que muitos problemas complexos sejam examinados no plano celular”, afirma Krieger.

Nos Estados Unidos, pesquisadores do Instituto de Cardiobiologia Molecular da Universidade Johns Hopkins criaram uma espécie de marcapasso biológico graças à terapia gênica. Eles alteraram geneticamente células musculares do coração (miócitos) e as reintroduziram no órgão, usando um vírus. Essas células se fixaram na região do coração responsável pelo ritmo dos batimentos e se transformaram num outro tipo de célula capaz de executar o trabalho das que estavam danificadas – e por isso causavam a arritmia. Por enquanto, o experimento só foi realizado em animais, mas em breve deverá ser testado em humanos.

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PÍLULA UNIVERSAL

“Todas essas novas tecnologias a serviço da cardiologia estão sujeitas a acidentes de percurso”, diz Krieger. “Por isso devemos descobrir em quais situações podem ser úteis e jamais vendê-las como uma panacéia.” Esse tipo de idéia – a de um remédio único para todos os males – veio à tona no final de junho com a publicação de um artigo no British Medical Journal. Nele, dois epidemiologistas ingleses propõem uma estratégia radical para prevenir doenças cardiovasculares: a formulação de uma única pílula que deve ser prescrita para todos as pessoas a partir dos 55 anos, independentemente de elas terem risco de sofrer um infarto ou derrame. O medicamento teria seis componentes, entre eles a aspirina, e seria capaz de reduzir em 80% o risco de infartos e derrames.

Os autores do artigo afirmam que a prescrição em massa da “polypill” é uma excelente maneira de prevenção e que os efeitos colaterais serão pequenos, pois os seus componentes já são estudados há muitos anos. A comunidade médica, no entanto, já levantou alguns problemas. Robert Bonow, presidente da American Heart Association, disse que o tratamento indiscriminado pode significar medicar alguns insuficientemente e expor outros a efeitos colaterais desnecessários. Criticou também a dosagem universal proposta pelos autores. Seria algo como fazer as pessoas calçarem o mesmo número de sapato, independentemente do tamanho dos pés de cada um.

 

Máquina de salvar vidas

O Abiocor é o primeiro coração artificial que dá liberdade de movimentos ao paciente

O Abiocor se encaixa perfeitamente no corpo do paciente. O pericárdio, membrana que recobre o coração, é aproveitado para envolver o mecanismo

A unidade central do Abiocor é conectada por um fio, instalado sob a pele, a um controle que ajusta os batimentos cardíacos de acordo com o nível de atividade física da pessoa. Uma bobina transmite a energia através da derme

A aorta leva sangue oxigenado pelos pulmões para o corpo todo

As veias cavastrazem sanguepobre em oxigIenio para o coração

A artéria pulmonar leva sangue pobre em oxigênio para os pulmões. De lá, ele volta oxigenado ao coração pelas veias pulmonares

 

A evolução do coração artificial

1957

Willem Kolff e Tetsuzo Akutsu, da Cleveland Clinic, substituem o coração de um cachorro por um dispositivo artificial de acionamento pneumático. O animal sobrevive por 90 minutos.

1967

Willem Kolff e Tetsuzo Akutsu, da Cleveland Clinic, substituem o coração de um cachorro por um dispositivo artificial de acionamento pneumático. O animal sobrevive por 90 minutos. Na África do Sul, o médico Christiaan Barnard realiza o primeiro transplante de coração do mundo. O paciente morre 18 dias após a cirurgia em decorrência de uma dupla pneumonia.

1969

Dr. Denton Cooley, do Texas Heart Institute, implanta pela primeira vez um coração artificial num humano como “ponte” para o transplante cardíaco. O paciente permanece vivo por 64 horas com o coração artificial e morre dois dias depois do transplante.

1982

Dr. William DeVries implanta como solução definitiva o coração artificial Jarvik-7 num dentista de Seattle, que sobrevive por 112 dias. Após mais três implantes do Jarvik-7, a idéia de um coração artificial permanente é abandonada.

2000

Primeiro implante do Jarvik 2000, dispositivo de assistência circulatória pequeno o suficiente para ser acoplado dentro do ventrículo esquerdo do coração.

2001

Começam os testes em humanos com o Abiocor, o primeiro coração artificial totalmente implantável.

 

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