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Biólogo Stephen Jay Gould: O detetive da evolução

Com olhar apurado e cérebro afinado, Stephen Jay Gould via teorias complexas e histórias maravilhosas onde os outros só enxergavam ossos e rochas. Conheça esse discípulo rebelde de Darwin

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 mar 2004, 22h00

Alessandro Greco

Gordinho, atarracado, com bigode e olhar sagaz, o americano Stephen Jay Gould lembrava o personagem Hercule Poirot, o detetive belga criado por Agatha Christie, capaz de solucionar os mistérios mais intrincados usando como única arma sua poderosa massa cinzenta. Com espírito de Sherlock Holmes, apego apaixonado pela razão e raciocínio elegantemente lógico, Gould desvendou enigmas que atormentavam seus colegas desde que Charles Darwin criou a teoria da evolução das espécies, em 1859. Sua formação era de paleontólogo, e ele se especializou como “biólogo evolucionista”. Mas o jeito mais adequado de chamá-lo talvez fosse “naturalista”: um generalista, dedicado a entender todos os aspectos da natureza. Isso ele tinha em comum com Darwin, afinal o inglês viveu numa época anterior às especializações da ciência que existem hoje. Morto em maio de 2002, Gould era amado por milhares de leitores, que o conheciam por seus livros sobre evolução para o público em geral. Mas despertava sentimentos contraditórios entre os cientistas. Uns o respeitavam por suas idéias, outros o criticavam pela forma arrogante de colocá-las. Gould, o mais conhecido pesquisador da evolução das espécies desde Darwin, iniciou três debates científicos que levaram seus colegas a repensar as idéias do mestre inglês.

O primeiro desses debates foi também o mais duro. Na década de 70, quando fazia doutorado na Universidade de Colúmbia, Gould, juntamente com seu colega Niles Eldredge, estudava fósseis para tentar entender como a evolução operou no passado. No meio do estudo, os dois depararam com um problema aparentemente insolúvel. Não conseguiam achar mudanças graduais nas espécies, como previa a teoria de Darwin. Segundo ela, os organismos de uma mesma espécie competem entre si e o mais bem adaptado ao ambiente sobrevive e passa para seus descendentes suas características. Tudo isso ocorreria de forma lenta e gradual, sem sobressaltos, causando mudanças imperceptíveis que só se tornam relevantes depois de muito tempo, à medida que as gerações se acumulam. Mas, em vez disso, Gould e Eldredge encontraram longos períodos de quase total estabilidade, sem mudança nenhuma, eventualmente interrompidos por surtos de novas espécies aparecendo de uma hora para a outra.

Darwin, mais de um século antes, até já havia topado com o mesmo problema, mas convenceu a si mesmo e ao mundo que a falta de fósseis era devida à nossa dificuldade em achá-los. Gould, numa demonstração do seu espírito detetivesco, usou as velhas evidências para chegar a uma conclusão totalmente nova. Em 1972, ele e Eldredge criaram a polêmica teoria do equilíbrio pontuado, segundo a qual as espécies realmente dão saltos evolutivos, mudando profundamente de um momento para outro, após ficarem por muito tempo estáveis (é claro que para nós, humanos, que vivemos tão pouco, mesmo esses saltos se dão numa escala de tempo impossível de perceber). A idéia soou como sacrilégio aos ouvidos dos mais fiéis seguidores do darwinismo, gente que não ousa colocar em dúvida a tese da evolução lenta e gradual.

A tese é controversa e, no caminho para divulgá-la, Gould adquiriu críticos respeitáveis. Seu colega biólogo da Universidade de Sussex, Inglaterra, John Maynard Smith, afirmou em um artigo na The New York Review of Books que as idéias de Gould eram tão confusas que não valiam nem o trabalho de discuti-las. Outro famoso colega inglês, Richard Dawkins, disse que Gould superestimou imensamente seu trabalho e tinha uma idéia exagerada sobre a importância do equilíbrio pontuado. Dawkins afirma que a força que rege a evolução sempre foi e continuará sendo a seleção natural. O equilíbrio pontuado, se é que existe, não passa de detalhe.

Efeito colateral

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Detalhe ou não, as idéias ousadas – tanto quanto o jeito charmoso e agressivo de expô-las – tornaram Gould uma estrela. E nenhum lugar é tão adequado para estrelas da ciência quanto a Universidade Harvard, um dos maiores índices de Nobel por metro quadrado do mundo. Gould foi trabalhar lá. Em 1978, seis anos após a idéia do equilíbrio pontuado, o agora professor de Harvard abalou novamente os alicerces da evolução. Em conjunto com um colega da universidade, o biólogo evolucionista Richard Lewontin, ele afirmou que as características de alguns organismos são simplesmente conseqüência da forma como eles evoluíram, e não necessariamente fruto da seleção natural, como querem os darwinistas ortodoxos. Ou seja: nem tudo nos seres vivos existe porque traz alguma vantagem evolutiva – algumas coisas são simplesmente efeitos colaterais da evolução.

Um exemplo disso é o raciocínio humano. Nossa capacidade de resolver problemas matemáticos não interessava nada aos nossos ancestrais das cavernas, cujo tempo livre estava comprometido com tarefas mais urgentes, como fugir de feras e encontrar comida. Mas a capacidade de se organizar para a caça, a noção de espaço tão útil para efetuar migrações, o senso de estratégia essencial para descobrir como um inimigo mais forte vai agir, a habilidade com ferramentas – tudo isso era fundamental. As forças da evolução mantiveram essas características aparentemente banais. E nossa capacidade de ler jornal, contar piadas, construir casas e ter uma vida espiritual veio de brinde. De novo, a idéia não foi bem recebida por seus colegas biólogos evolucionistas. Eles criticaram Gould porque achavam que mais uma vez ele estava insinuando que há outras forças levando à evolução dos seres vivos além da seleção das espécies de Darwin. Sacrilégio de novo.

A terceira das idéias polêmicas de Gould é também a mais incendiária, principalmente entre aqueles que ainda procuram ver algum sentido na natureza. Mais uma vez, o naturalista deu a entender que existe uma outra força agindo na seleção das espécies, uma força poderosíssima: o acaso. A tese apareceu no livro mais famoso do autor, Vida Maravilhosa. Lá, ele conta a história de um fóssil de 500 milhões de anos de um animal pré-histórico parecido com um peixe, o pikaia. Ele aventa a possibilidade de que, se esse bichinho tivesse sido varrido da Terra antes, por alguma extinção em massa da época – um evento insignificante diante do morticínio que foi a história da Terra – nós, seres humanos, não estaríamos aqui. As catástrofes naturais ocorridas desde o nascimento do planeta acontecem aleatoriamente. Um pequeno asteróide caído num momento chave da evolução tem o poder de mudar tudo o que vem depois. E acontecimentos banais determinaram o que somos mais do que nossas sempre tão louvadas qualidades racionais ou morais.

Para Gould, a evolução é muito similar à história. Não é possível prever como ela irá se desenrolar – e merecimento conta muito pouco no resultado final. O futuro da evolução é também fruto do seu passado, e não um caminho determinístico na direção da sobrevivência das espécies mais bem adaptadas.

Filho rebelde

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Todas essas idéias polêmicas – a do equilíbrio pontuado, a do efeito colateral, a da evolução pelo acaso – dão a entender que o naturalista passou a vida espezinhando o velho Darwin, procurando brechas nas suas sacrossantas teorias. A relação entre os dois naturalistas – Darwin e Gould, mestre e discípulo – foi conflituosa, embora tenham vivido em épocas distintas. Gould criticava os conceitos fundamentais propostos por ele, mas ao mesmo tempo citava e relembrava sempre o inglês. Parecia um filho rebelde, fascinado pelo pai, mas com uma necessidade extrema de superá-lo.

Por ter sido um autor prolífico e talentoso – e que portanto sempre fez muito sucesso –, as pessoas geralmente assumem que a visão de Gould é a mais aceita entre os cientistas. Não é. Pelo contrário, aliás: ele é a voz de uma minoria incômoda, crítico feroz da visão predominante defendida por Dawkins e Maynard Smith. O único ponto em que os três concordam é que Deus não criou o homem e as outras espécies. Falta saber se Gould será lembrado por seu talento literário ou por ter sido um discípulo brilhante de Darwin.

Mas uma coisa é inegável: a importância dele na formação de novos leitores com gosto para a ciência. Por 26 anos, de 1974 a 2001, ele escreveu a coluna “This View of Life” (“Esta Visão da Vida”) para a revista americana Natural History – o título foi emprestado de uma frase do clássico supremo A Origem das Espécies, de Darwin. Nela, manteve acesa a chama dos ensaios, uma forma de texto em extinção da qual foi um mestre, combinando o encanto do texto subjetivo com o rigor da argumentação científica. Os ensaios eram editados na forma de coletânea a cada dois anos, perfazendo dez livros. O último, publicado três meses antes de sua morte, tinha o tristemente premonitório título de I Have Landed (“Eu pousei”).

Além das dezenas de coletâneas de ensaios, Gould também foi autor de livros como A Falsa Medida do Homem, no qual discute a subjetividade por trás do conceito de inteligência. O livro demoliu os testes de QI e mostrou como eles reforçam preconceitos – os testes foram elaborados por homens brancos, nada mais natural que eles favoreçam homens brancos. Seus textos aliavam senso de humor – algo que não aparentava ao conversar com jornalistas – e perspicácia. A um deles, sobre a evolução dos órgãos sexuais humanos, deu o título “Clits and Tits” (“Clitóris e peitos”). Foi censurado pelo editor.

Gould nunca deixou de entregar sua coluna mensal para a Natural History, mesmo quando, em 1982, ficou sabendo que tinha um câncer abdominal raro, um tumor geralmente associado à exposição ao amianto. O prognóstico médico era pessimista: eles lhe deram oito meses de vida, com base no fato de que essa era a média de sobrevivência dos pacientes daquele tumor. O naturalista, que não era de se abater, resolveu atacar o problema do jeito típico: com curiosidade de detetive. Internou-se na biblioteca da Escola de Medicina de Harvard e descobriu que, embora o câncer fosse mesmo grave, havia um grupo de pessoas que sobreviviam por anos a ele. E, pelo que descobriu nos livros, ele tinha boas chances de pertencer a esse grupo. Escreveu um artigo hoje clássico sobre o tema, “The Median Is not the Message” (“A Mediana não É a Mensagem”), ensinando a ler números e mostrando como uma média estatística pode ser enganosa. No caso dele, foi mesmo. Gould viveu mais 20 anos e só foi morrer em 2002, de um outro câncer, esse de pulmão. Ou seja, ele estava certo.

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Essa não foi a única vez em que acontecimentos dolorosos da vida pessoal do cientista viraram temas para textos brilhantes. Um assunto de que ele tratava com freqüência, por exemplo, era o fato de que algumas pessoas podiam ser geniais em alguns aspectos e muito pouco capazes em outros – isso chega ao extremo em pessoas com autismo savant, que podem ser gênios matemáticos ao mesmo tempo em que são incapazes de se relacionar socialmente. Só nas últimas linhas do livro O Milênio em Questão o mundo ficou sabendo da razão de tanto interesse por esse assunto. Lá, Gould conta que é fã de um jovem autista savant, capaz de dizer de cabeça o dia da semana de qualquer data de qualquer século em um piscar de olhos. “Seu nome é Jesse. Ele é meu filho mais velho e tenho muito orgulho dele”, escreveu.

A capacidade do cientista com a palavra escrita se estendia também à oratória. Em Harvard, suas aulas eram disputadíssimas. Pouco usual até o último fio do bigodão, Gould dava exemplos históricos e de outras áreas para explicar evolução – além de citar longos trechos de memória de A Origem das Espécies. E ai de quem ousasse sair no meio de uma aula. Passaria pelo vexame de ser desancado publicamente. Sua fama, no entanto, extrapolava os limites da ciência, da literatura e da sala de aula. Gould apareceu como personagem em um episódio do seriado Os Simpsons (ele mesmo dublou um cientista em cruzada contra fundamentalistas cristãos que insistem em desacreditar a evolução e Darwin). A reforma de seu apartamento no SoHo, em Nova York, virou artigo na revista Architectural Digest. Em 2001, a Biblioteca do Congresso nomeou Gould uma das 83 Lendas Vivas da América, um prêmio dado àqueles que “representam o ideal da América de criatividade, convicção, dedicação, exuberância individual”. Ele ganhou também um dos mais cobiçados prêmios americanos, o da Fundação MacArthur, em 1981, primeiro ano em que ele foi dado. Sorte dele: o prêmio consiste em 500 mil dólares pagos ao longo de cinco anos sem a necessidade de dar absolutamente nada em troca. O único compromisso é fazer aquilo que acha importante.

Não há dúvidas de que ele cumpriu o compromisso, com prazer. Esse, aliás, foi o mote da vida de Gould: fazer aquilo de que gostava. Adorava escrever, publicou dezenas de livros. Adorava a polêmica, recebeu críticas ferozes e elogios derramados a seu trabalho, nunca o silêncio da indiferença. Adorava dar aulas e até duas semanas antes de morrer era possível vê-lo caminhando com dificuldade até a sala de aula em Harvard, parando a cada instante para tomar fôlego. Adorava livros e morreu deitado em uma cama na biblioteca de sua casa. Tinha 60 anos.

Para saber mais

Livros de Stephen Jay Gould:

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O Polegar do Panda, Martins Fontes, 1989

Vida Maravilhosa, Companhia das Letras, 1990

O Sorriso do Flamingo, Martins Fontes, 1990

Life’s Grandeur, Jonathan Cape, EUA, 1996

Darwin e os Grandes Mistérios da Vida, Martins Fontes, 1999

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O Milênio em Questão, Companhia das Letras, 1999

A Falsa Medida do Homem, Martins Fontes, 1999

A Montanha de Moluscos de Leonardo da Vinci, Companhia das Letras, 2003

Triumph and Tragedy in Mudville, WW Norton, EUA, 2003

I Have Landed, Three Rivers Press, EUA, 2003

Culpa do dinossauro

Tudo começou emuma visita ao museu

Stephen Jay Gould era um moleque de 5 anos quando foi visitar o Museu de História Natural na sua cidade natal, Nova York. E lá se deu o encontro que o marcou para sempre. Em pleno hall do museu, o garoto viu um tiranossauro rex. Era só a ossada do bicho, claro. Mas a visão, de perto, dos ossos empoeirados de 70 milhões de anos, foi demais para o garoto. A partir daquele dia, ele teria uma certeza na vida: seria um cientista. Sua fé na ciência se manteve inabalada pela vida toda. Em 2001, numa entrevista concedida à Super, ele disse que não existe pergunta complicada demais para a ciência. “Existem algumas questões que poderiam ser respondidas, apenas não temos ainda a informação para isso.”

Mas a ciência não era a única paixão do menino. Assim como seu pai e seu avô, Gould era um fanático por beisebol. E ele carregaria essa paixão – assim como carregou o amor pela ciência – pelo resto da vida. Prova disso são as inúmeras referências ao esporte encontradas em seus livros. Num deles, Life’s Grandeur (“A Grandeza da Vida”, inédito em português), ele usa o beisebol para tornar mais palpável a importância das estatísticas. Em outro livro, Triumph and Tragedy in Mudville (“Triunfo e Tragédia em Mudville”, também sem versão brasileira), publicado após sua morte, ele diz que o beisebol tem os mesmos princípios de continuidade e mudança que a ciência, evoluindo conforme o tempo passa, mas mantendo suas principais regras.

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