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Cientistas brasileiros na Antártida: Dez anos no gelo

O estudo das algas do gelo e dos restos mortais dos vulcões traz prestígio aos cientistas brasileiros no décimo aniversário do nosso programa antártico.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 28 fev 1993, 22h00

Em 1882, Albert Einstein era apenas uma criança, Dom Pedro II não temia perder o trono e muitos duvidavam da existência de um continente oposto ao Pólo norte. Nessa época, porém, um brasileiro já fazia ciência nas terras geladas do sul. O astrônomo Luís Cruls montou uma expedição para ir aos confins da América, na região subantártica do Estreito de Magalhães, com o objetivo de observar a passagem do planeta Vênus pelo disco do Sol.

Hoje, a turística cidade de Punta Arenas, capital da província chilena de Magalhães, acostumou-se a abrigar os sucessores de Cruls, não mais como ponto final, e sim como um trampolim para um objetivo mais distante. Apesar da falta de apoio dos órgãos que financiam as pesquisas, o Brasil consegue surpreender: entre dezembro e março, dezenas de pesquisadores costumam invadir a cidade mais austral do planeta, em sua última escala rumo ao Arquipélago das Shetlands do Sul, já na Antártida.

São 25 projetos científicos em andamento, desenvolvidos em quatro pequenos acampamentos, chamados “refúgios”, e uma base permanente de pesquisa, a Estação Antártica Comandante Ferraz. Esta tomou-se famosa na região pelo seu respeito ao meio ambiente e pela quantidade de pessoas que abriga: 28 no verão e 12 no inverno. Isso é bem mais do que a média das outras estações de pesquisa instaladas nas Shetlands do Sul – região das mais importantes da Antártida.

Todo esse esforço tem uma justificativa. Ao contrário do pólo norte, onde só existe mar sob a calota de gelo, no sul há um continente de 14 milhões de quilômetros quadrados – maior que a Europa – e valiosos recursos minerais, como ouro e petróleo. Pelo Tratado Antártico (uma série de normas internacionais criadas em 1959 para proteger as terras geladas do sul), só os países que tiverem estabelecido programas sérios de pesquisa científica poderão, num futuro longínquo, pleitear o direito de explorar as riquezas.

Por isso, há quem estude de tudo entre os brasileiros. São biólogos, geólogos, físicos, químicos e até historiadores – que conseguiram achar o exato local onde Luís Cruls montou seu pequeno observatório em 1882, hoje uma singela pracinha. O marco foi descoberto pelo físico Marcomede Rangel Nunes, do Observatório Nacional, depois de escarafunchar a cidade de Punta Arenas. Por coincidência, o “ponto Cruls” fica a poucos metros do porto onde costuma atracar o Barão de Teffé. “Nosso navio recebeu este nome em homenagem a um almirante que, como Luís Cruls, também observou o planeta Vênus em 1882, só que nos mares tropicais das Antilhas”, conta Nunes.

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A partir do “ponto Cruls”, os brasileiros se dividem em duas expedições diferentes. Uma os leva por via aérea, nos robustos Hércules C-130 da Força Aérea Brasileira, até a Estação Ferraz, na Ilha Rei George. (O trabalho desses pesquisadores e a expedição aérea serão mostrados na próxima edição de SUPERINTERESSANTE.) Outros grupos de cientistas se dirigem por mar às demais ilhas do arquipélago, geralmente desertas. A bordo do Barão de Teffé, duas equipes de pesquisa cruzaram o imprevisível Estreito de Drake neste verão (veja quadro), enfrentando preocupantes desembarques de helicóptero ou de bote inflável.

Um desses grupos é liderado pelo biólogo Antônio Batista Pereira, das Faculdades Integradas de Santa Cruz, no Rio Grande do Sul. Ninguém foi tão fundo no estudo da Botânica básica dessas ilhas quanto ele e seus comandados. Veterano de três expedições em outros anos, desta vez Batista permaneceu 36 dias na Ilha Elefante – tida por muitos como a mais pródiga em plantas -, num ponto a que se pode chegar apenas a bordo dos helicópteros do Barão de Teffé. Em sua companhia estavam o botânico eslovaco especialista em algas Lubomir Kovacik e a bióloga Anelise Kappes.

“Estamos descrevendo novas espécies e formações de musgos, liquens e algas, além de outras já conhecidas mas pouco estudadas”, afirma Batista. Um bom exemplo são as algas criobiontes, ou seja, aquelas que proliferam nas geleiras e participam da base da cadeia alimentar no ecossistema antártico. Quem olha de longe as encostas da Ilha Elefante pode vê-las na forma de várias manchas rosadas sobre a neve. O bonito fenômeno, que ainda não havia sido descrito, só ocorre porque essas algas possuem um pigmento vermelho que as toma resistentes à radiação ultravioleta. A radiação, naturalmente grande devido à reflexão dos raios de sol no gelo, aumentou, nos últimos anos, com o buraco na camada de ozônio.

Além de ser um lugar de rara beleza, o Arquipélago das Shetlands do Sul tem valor científico, pois é um dos raros lugares ricos em vida animal e vegetal na Antártida. Situadas no extremo norte do continente, essas ilhas registram “temperatura média em tomo dos 2°C, no verão, bem mais quente que o resto do continente. Seu interior se mantém coberto pelos chamados glaciares, imensas calotas de gelo com dezenas de metros de espessura e quilômetros de extensão. Mas, nas praias e encostas, o gelo se derrete e permite a existência de pelo menos quatro espécies de pingüins, além de outras aves, como albatrozes, skuas, petréis e pombas antárticas. Há também elefantes-marinhos, três espécies de focas e uma flora privilegiada para os padrões antárticos.

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Batista e seus companheiros descobriram uma intensa e controversa relação entre as colônias de aves e a vegetação, formada de líquens e musgos dispostos em coloridos mosaicos sobre as pedras. “Algumas espécies aproveitam nutrientes existentes no guano das aves, sobretudo o nitrogênio, enquanto outras não os suportam”, explica Batista. Ou seja, a vegetação próxima a uma pingüineira difere muito da encontrada alguns metros à frente, onde as aves não transitam e, portanto, não deixam fezes. Perto de uma colônia de pingüins, Batista encontrou duas raridades: a Deschampsia antarctica e a Colobanthus quitensis, as duas únicas plantas superiores da Antártida. Durante alguns poucos dias do ano, elas produzem flores, coisa quase impensável num clima tão adverso.

Impensável também é viver cinco semanas na ilha gelada sem receber o devido apoio. Os biólogos caçadores de plantas hospedaram-se em um “refúgio”, pequeno alojamento construído pela Marinha em um container semelhante àqueles utilizados no transporte de cargas marítimas. Dentro, há comida, fogareiro, rádio, gerador e combustível. O Brasil possui quatro alojamentos desse tipo nas Shetlands do Sul, mas só três podem ser utilizados. O quarto, instalado na própria Ilha Elefante, teve de ser desativado em nome de um tocante respeito à vida animal: há três anos, uma colônia de petréis se instalou bem ao seu lado. “Se os helicópteros continuassem pousando na área, ela seria destruída”, conta o capitão-de-fragata Eduardo Estrela Aranha, coordenador do apoio logístico aos cientistas.

Esses refúgios nunca são trancados a chave ou cadeado, nem mesmo depois que os cientistas vão embora. Permanecem sempre abertos e com mantimentos no seu interior. “É uma norma internacional para garantir abrigo a qualquer um que precise, em caso de emergência”, conta a pesquisadora Anelise Kappes.

Nem todos os pesquisadores desfrutam o conforto dos refúgios. A equipe do geólogo Henrique Fensterseifer, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Rio Grande do Sul, foi deixada pelo Barão de Teffé na Ilha Robert, onde não há nenhum refúgio brasileiro, para uma estada de 33 dias acampados numa barraca de lona. Mas o desconforto vale a pena. O lugar é um prato cheio para os interessados na formação da Terra. Apesar da aparente calma, as Shetlands estão numa área de vulcanismo ativo, que se pronunciou pela última vez em 1978, com a erupção do vulcão da Ilha Deception.

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“A crosta terrestre ainda não se estabilizou e, de uma hora para outra, porções do relevo submarino podem subir e sé tornar um perigo para a navegação”, diz Henrique Fensterseifer, que já fez doze viagens à Antártida – a primeira quando o Brasil ainda nem havia marcado seu lugar na região. Com três geólogos e um engenheiro cartográfico, tem andado de ilha em ilha, colhendo amostras de rochas cuja idade pretende determinar. “O objetivo é entender a separação que vem ocorrendo há 1 milhão de anos entre as ilhas geladas e a península antártica”, diz Fensterseifer, que nas horas de folga troca os instrumentos de geólogo pelos musicais. Com uma harmônica, acompanha a cantoria do alpinista Adalbert Kolpatzik, peça fundamental tanto para a segurança do grupo nas caminhadas sobre o gelo quanto para o bom humor no acampamento.

A equipe varre as ilhas, procurando formações rochosas peculiares. Uma delas, por estranho que pareça, é comum na ilha tropical de Fernando de Noronha, no litoral brasileiro. São as “rolhas de vulcão”, pedaços de rocha magmática com a aparência de um copo de cabeça para baixo. Os vulcões que as envolviam desapareceram com o tempo, devido à erosão glacial, mas a rocha que estava solidificada na cratera resistiu. “E como se a garrafa desaparecesse e sobrasse apenas a rolha”, compara o geólogo Fábio Luiz Troian, da Unisinos. Além das “rolhas”, buscam também os nunataks, nome esquimó (usado em todo o mundo) das rochas que nunca somem sob a neve.

Outra constatação surpreendente: antes da separação, há mais ou menos 50 milhões de anos, o local era ocupado por florestas. A equipe de Fellsterseifer já achou indícios mais de uma vez. “N a própria Estação Ferraz há um belo exemplar de fóssil de pinheiro”, conta o engenh,eiro cartográfico Carlos Aurélio Nadal, da Universidade Federal do Paraná. Com um aparelho de GPS (sigla em inglês de Sistema de Posicionamento Global), ele obtém a exata latitude e longitude dos locais de onde são extraídas amostras de rocha, um registro importante quando se descobrem vestígios de minerais valiosos.

Vale lembrar que, num passado remoto, a Antártida não existia como continente isolado. Fazia parte da massa de terra denominada pelos estudiosos Gondwana, à qual pertenciam a América do Sul, a África e o sul da Ásia. A Península Antártica, por exemplo, dá a impressão de ser a continuação dos Andes, famosos por suas reservas de prata e cobre. Sem contar a África do Sul, onde há ouro e diamantes. “Isso não garante fartura de minerais, pois a formação das Shetlands se deu em outra fase de vulcanismo”, diz o cauteloso Henrique Fensterseifer. Mas a origem é semelhante e pequenas quantidades deles já foram achadas.

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De qualquer forma, não é a busca da riqueza material que estimula os cientistas a um trabalho tão penoso na Antártida. Eles querem desvendar seus mistérios, entender seu significado e sua importância para o equilíbrio da vida no planeta, e depois mostrar tudo isso aos brasileiros em geral. “Viajar para cá não deveria ser nenhuma aventura, mas, sim, uma coisa corriqueira, assunto para pesquisas das crianças na escola”, sonha o engenheiro cartográfico Carlos Aurélio Nadal.

A odisséia do velho Barão nos mares revoltos do sul

Antes de pôr as mãos na massa (ou no gelo), o pesquisador tem de cruzar os mares que separam a América do Sul e a Antártida. A distância não é grande – igual ao percurso entre São Paulo e Brasília. Mas talvez sejam os 1 000 quilômetros mais perigosos de todo o mundo. No caminho, há tempestades, mares revoltos, nevascas, icebergs e rochedos submersos. Aí entra o trabalho dos marinheiros. Mais do que uma aventura cheia de heroísmos, vencer tais desafios é uma batalha científica e tecnológica.

A primeira grande mudança é o clima. Quanto mais perto do pólo sul, mais dinâmicas as massas de ar. O Estreito de Drake, última fronteira antes da Antártida, recebe um afunilamento de ventos, em razão da presença da Cordilheira dos Andes ao norte e da Península Antártica ao sul. Somam-se os imprevisíveis centros de baixa pressão vindos da região polar. O mar costuma revoltar-se repentinamente, trazendo tempestades e ventos de mais de 100 quilômetros por hora.

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Para se ter idéia das forças que a natureza emprega, basta dizer que o Barão de Teffé já chegou a andar para trás, mesmo com toda a potência à frente. E fato que o navio brasileiro não é nenhum exemplo de pujança construído na Dinamarca em 1957, foi reformado ao ser comprado pelo Brasil, em 1982, mas manteve-se Com um único motor de apenas 2 000 cavalos, oito vezes menos potente que uma fragata da Marinha. Mesmo assim, é preciso muita força para empurrá-lo no sentido contrário de sua rota.

Nesses dias agitados, o Estreito de Drake trata qualquer navio como se fosse um “joão-bobo”, fazendo-o jogar de um lado para o outro. Além dos infalíveis enjôos, há coisas infinitamente piores. Em dezembro último, uma onda traiçoeira fez o Barão de Teffé adernar 39°. Os testes de engenharia atestam que, a partir de 53°, ele pode emborcar de vez.

A melhor forma de enfrentar o mar enfurecido no Drake é fugir dele, contornando as áreas de tempo ruim. Para isso é necessário tecnologia, e, nesse ponto, o velho Barão vai bem. Ao passadiço – a ponte de comando do navio – chegam mapas meteorológicos que mostram a localização dos centros de baixa pressão responsáveis pelo mau tempo. Esses mapas são feitos por um centro meteoro lógico de Valparaíso, no Chile, a partir das informações de temperatura, pressão e ventos enviadas da Antártida por dezenas de estações de pesquisa e navios.

Como se a ajuda dos chilenos não bastasse, o Barão de Teffé apela aos céus. É um dos dois únicos navios brasileiros dotados de um receptor de imagens de satélite, capaz de mostrar detalhadamente as fotos feitas pelo NOAA-11, que orbita sobre o sul do planeta. Assim, duas vezes por dia, o oficial meteorologista fica sabendo como estão se comportando as frentes frias que vêm da Antártida em direção ao estreito, e muda o curso, se necessário.

Quando chega perto das ilhas geladas, surgem os icebergs. No verão, a borda da calota de gelo se quebra e dá origem a milhares de blocos de gelo. O Barão de Teffé já “beijou” um, há cinco anos. Num dia com muita névoa, o radar acusou dois icebergs à frente, com dezenas de metros entre ambos. O navio seguiu em frente para cruzar pelo meio deles. Ao chegar perto, uma assombrosa visão: os blocos estavam ligados por baixo da água, fato incomum, que enganou o radar e a tripulação.

Mesmo com o casco reforçado de 2,5 centímetros de aço (o dobro dos navios comuns), um choque frontal a 8 nós de velocidade (cerca de 15 quilômetros/ hora) poderia pôr o Barão a pique. Felizmente, a manobra de emergência evitou uma trágica batida, reduzindo-a a uma leve colisão lateral, com danos apenas nas antenas de rádio e no convés, de onde partem os dois helicópteros do navio.

Exceções à parte, os icebergs causam mais admiração do que medo, pois são percebidos pelo radar com tanta antecedência que é possível preparar a máquina fotográfica para flagrá-los. Mais trabalho dão os growlers. Pequenos blocos de gelo com menos de 1 metro acima da superfície, são captados apenas pelo mais antigo instrumento de navegação: o olho treinado dos marinheiros. Nos mares agitados, confundemse com a espuma das ondas e, às vezes, só são detectados em cima da hora, o que é perigoso. Como os icebergs, os growlers escondem 4/5 de seu volume sob a água. “Não se pode colidir com eles, apesar da aparência inofensiva”, alerta o atual comandante do Barão de Teffé, o capitão-de-mar-e-guerra Alberto Cardoso Blóis, que não descuida da observação, mesmo existindo outros oficiais para cumprir essa tarefa.

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