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A história de Major Tom, o camundongo cosmonauta

Você não pode dissecar um astronauta para saber como a falta de gravidade afeta o corpo dele. Mas pode fazer isso com ratos

Por Roberto Kaz
Atualizado em 3 nov 2020, 14h00 - Publicado em 12 out 2016, 12h55

Eram quase sete da manhã no sudoeste russo quando Major Tom voltou à Terra. O retorno havia sido anunciado no início daquele dia quando sua cápsula se separara do restante da nave. Passados 30 dias no espaço, em que orbitara 477 vezes em torno do planeta, chegara a hora de enfrentar, mais uma vez, os efeitos da gravidade.

Assim que a cápsula atingiu a atmosfera, Major Tom foi jogado contra o teto, onde permaneceu enquanto o objeto desacelerava e a temperatura externa atingia 2 mil graus. A 9 quilômetros de altitude, o paraquedas foi aberto, lançando-o de volta ao piso (que ficava a 10 centímetros do teto). Às 7h11 daquele domingo, 19 de maio de 2013, o satélite Bion-M1 finalmente aterrissou no gramado de uma fazenda russa.

Alexander Andreev-Andrievskiy chegaria dali a dez minutos, em um dos sete helicópteros militares que rumaram ao local. O biólogo de 32 anos passara a noite acordado. “Estava muito ansioso”, ele me diria, meses depois. “Ainda tive que esperar mais 40 minutos para que a cápsula fosse desmantelada. E eu não sabia se os camundongos estavam bem.”

As informações enviadas da nave por computador pareciam mostrar que metade dos 45 roedores estavam mortos. Mas havia a chance de que o computador estivesse errado, ou pior, que o restante tivesse morrido na chegada. Por isso, Andrievskiy lembra-se com clareza do momento, após o desmonte, em que viu um camundongo mexer-se na cápsula. “Eu estava feliz, mas não havia tempo para emoção”, contou. “Era muito trabalho.”

O compartimento com os animais foi levado a uma tenda erguida no meio do gramado para servir de laboratório. Lá, Andrievskiy pinçou os camundongos pelo rabo, colocando-os numa caixa limpa, de plástico, para avaliá-los. Dos 45 cosmonautas, 16 haviam sobrevivido. Um deles era Major Tom.

Major Tom não estava sozinho. Visitou o espaço ao lado de vários colegas: todos apelidados a partir de letras de David Bowie, como você vê ao longo da reportagem. (Maira Valentim/Superinteressante)

Major Tom era um camundongo da raça C57BL/6 – geralmente chamada de Black 6, ou B6 -, de longe a mais usada na pesquisa científica. Aos três meses – idade em que a espécie atinge a maturidade – foi levado, na companhia de outros 299 camundongos, a um laboratório na Universidade Estadual de Moscou. Era um domingo, no início de 2013, 51 dias antes que partisse ao espaço.

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Lá ficou sob os cuidados de Andrievskiy, um cientista vinculado à universidade e ao Instituto de Problemas Biomédicos (ImBp), a agência russa encarregada de estudar questões de saúde no espaço. Desde 1951, a Rússia (então União Soviética) colocara toda sorte de mamífero – entre eles a cadela Laika – em órbita. Esta seria a primeira vez que trabalharia com camundongos, todos do sexo masculino. Andrievskiy chefiaria o trabalho.

À época, Major Tom era conhecido por seu número, 50. Foi pesado e medido, além de ter um microchip implantado sob a pele das costas. Depois, a exemplo do que ocorreria com mais 29 candidatos, passou por uma cirurgia cardíaca para que um cateter monitorasse sua pressão arterial. “A cirurgia levou 20 minutos, sob anestesia geral”, explicou-me Andrievskiy, quando o encontrei em Moscou. Major Tom – ou Camundongo 50 – se recuperaria em uma semana.

(Maira Valentim/Superinteressante)

Dali em diante, os 300 animais foram divididos em cem trios, para atravessar um período de treinamento. Primeiro, cada animal foi avaliado em sua personalidade (quanto mais curioso e exploratório, mais apto estaria a voar). Seguiu-se, então, a prova de aderência (em que era obrigado a equilibrar-se, qual um acrobata, sobre uma barra giratória). Por fim, concluiu uma semana de exercício aeróbico (em que cada centímetro percorrido numa roda era computado).

Os resultados foram anunciados a uma semana do lançamento. Dos cem trios, 53 continham cosmonautas em potencial. Trinta e cinco trios foram designados para experiências de controle em terra (que serviriam de base para comparação, de forma a medir os efeitos exatos do espaço). Doze trios foram descartados – e sacrificados – devido à incapacidade física, intelectual ou social de seus integrantes.

Como planejado, os trios escolhidos voaram de Moscou para o Cosmódromo de Baikonur, tradicional base de lançamento russa, localizada no ex-soviético Cazaquistão. Três dias antes do lançamento, Andrievskiy foi autorizado a colocar os camundongos dentro do satélite Bion M-1. Foi só então que os 15 trios finalistas foram selecionados – e que o camundongo de número 50 foi batizado. “Cinco dos animais tinham o dispositivo cardíaco”, ele explicou. “Apelidamos eles a partir de músicas do David Bowie, que ouvíamos muito naqueles dias.”

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(Maira Valentim/Superinteressante)

Ziggy Stardust, Spider from Mars, Space Invader, Space Boy e Major Tom foram colocados com seus trios dentro de cinco compartimentos cilíndricos, que lhes serviriam de lar a partir de então.

Cada compartimento tinha o tamanho de uma garrafa pet, e era equipado com uma câmera, um distribuidor de comida, uma lâmpada para simular o dia e um filtro para acumular detrito. A tripulação adicional do satélite era composta por oito ratos-do-deserto, 15 lagartos, 20 caracóis, e todo um conjunto de peixes, plantas, algas, bactérias, fungos e micróbios. Às duas da tarde da sexta-feira, 19 de abril de 2013, os cinco motores do foguete Soyuz-2 foram ligados. Para os 45 roedores cosmonautas, chegara o momento de mostrar por que haviam sido escolhidos dentre 300 candidatos para encabeçar uma missão de US$ 80 milhões. Eles teriam de provar que sobreviveriam a um hábitat sem ninho, sem luz solar, sem água, sem ração seca, sem roda de corrida, sem assistência médica e, principalmente, sem gravidade. E, após 51 dias de treinamento, Major Tom e seus companheiros rumavam ao espaço.

Dez minutos após a decolagem, Major Tom deixou a atmosfera. O foguete silenciou, o peso da gravidade cessou e ele começou a voar. A nave subiu suave e silenciosamente, passando por restos de satélite, atravessando a órbita da Estação Espacial Internacional e atingindo, por fim, a altitude de 575 quilômetros em que permaneceria até o fim da viagem. A paz reinou enquanto a temperatura interna era estabilizada em 22 graus.

(Maira Valentim/Superinteressante)

Logo no segundo dia da missão, dois camundongos morreram, com o rabo preso no aparato de comida. No nono dia, novo acidente, mesma causa mortis. No décimo, uma avaria no sistema de alimentação afetaria cinco gaiolas, matando 15 cosmonautas de inanição. Onze mais pereceriam – incluindo o Camundongo 51, da equipe de Major Tom – até ao fim da viagem. “Quando um camundongo morre na gaiola, os outros o comem”, explicou Andrievskiy, com naturalidade. “Como a maioria dos animais, eles geralmente começam pelo cérebro e pelo intestino.”

Andrievskiy passou todo aquele mês no Cosmódromo de Baikonur interpretando as informações que chegavam por computador da nave. “A maior parte dos dados vinha dos cinco animais que tinham implantes cardíacos”, explicou. Em janeiro de 2015, quando o visitei na Universidade Estadual de Moscou, pedi que me mostrasse um vídeo dos roedores no espaço. “Olha o Major Tom!”, disse, observando a cena com um sorriso fascinado. Perguntei-lhe como os bichos devem ter se sentido quando começaram a voar. “Acho que eles ficaram surpresos, mas logo aprenderam a lidar com isso”, respondeu. “Camundongos sobem em paredes. Eles vivem em três dimensões.”

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Trinta dias depois, o satélite Bion M-1 voltou à Terra, com apenas 16 sobreviventes. Primeiro diagnóstico: todos estavam mais gordos e letárgicos. “O exame no local de pouso revelou um sério comprometimento da função motora”, escreveu Andrievskiy num estudo publicado de 2014. “Os camundongos não conseguiam manter a postura; suas patas estavam posicionadas mais para os lados, e não diretamente sob o tronco. Não se mexiam, mesmo quando instigados.” Um desses sobreviventes era Major Tom.

(Maira Valentim/Superinteressante)

A partir da chegada, cada minuto passado na Terra passou a representar um minuto a menos de informações sobre os efeitos do espaço. Andrievskyi correu com os camundongos para o helicóptero e voou para o Cosmódromo de Baikonur. De lá, pegaram um avião militar com destino a Moscou. “Parecia um filme de Hollywood”, lembrou.

Os roedores foram então separados. Onze permaneceram no ImBp, para serem mortos e necropsiados. Outros cinco – dentre eles Major Tom – seguiram com Andrievskiy para outro instituto, onde repetiriam os testes que os tinham qualificado para ir ao espaço. Uma semana depois, também seriam eutanasiados. Andrievskiy foi voto vencido na ideia de resguardar alguns cosmonautas: “Tive que aceitar o que a maioria dos cientistas queria, mas não quis participar. Me sentia íntimo daqueles animais.”

Era o fim de uma trajetória gloriosa. Seis meses haviam passado desde que Major Tom nascera num laboratório, enfrentara uma cirurgia cardíaca, suportara o treinamento físico, adaptara-se à ração pastosa, aprendera a voar e voltara do espaço para contar, com seu corpo, quão difícil é a vida lá fora. Num domingo, 26 de maio de 2013, ele teve o pescoço quebrado por deslocamento cervical. Depois, foi decapitado.

O momento em que um camundongo morre é, também, o momento em que conclusões científicas começam a nascer. Como planejado, Major Tom teve seus órgãos dissecados e divididos entre especialistas de seis países – resultando num total de 70 estudos. Seu cérebro foi fatiado em partes menores – córtex frontal, córtex visual, hipotálamo, hipocampo -, alguns dos quais foram enviados para Vladimir Naumenko, pesquisador do Instituto Russo de Citologia e Genética.

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The right stuff: entre 300 candidatos, só 45 camundongos ganharam o privilégio de se tornar cosmonautas. (Maira Valentim/Superinteressante)

Num estudo publicado em 2014, Naumenko concluiu que o “voo espacial diminuiu a expressão de genes importantes envolvidos na síntese da dopamina”. A redução, além de enfraquecer a musculatura, pode provocar doenças como Parkinson, Alzheimer, esquizofrenia e depressão. Humanos numa hipotética viagem a Marte provavelmente tomarão antidepressivos.

Outros estudos com camundongos analisaram os efeitos da falta de gravidade no esperma, na medula óssea e nos receptores de insulina. Andrievskiy não participou dessas experiências. Já trabalhava, então, com outro grupo de camundongos – aquele que permanecera em Moscou para servir de controle ao grupo dos cosmonautas. Tudo recomeçou do zero. Ele escolheu 45 roedores, que foram colocados, em trios, no mesmo aparato usado no espaço. Durante o mês seguinte, os animais não veriam a luz do sol, não se exercitariam e não comeriam ração seca. Para efeito de comparação, as condições simulariam as mesmas enfrentadas por Major Tom, salvo pelo detalhe – fundamental – de que tudo seria vivido sob os efeitos normais de radiação e gravidade. Nenhum camundongo desse grupo ganharia apelido.

Profissão: cobaia

Nenhum bicho contribuiu mais com a ciência do que o camundongo. Mais de 20 milhões deles são mortos em laboratórios a cada ano em nome de pesquisas. Mas, das centenas de raças, nenhuma teve utilidade maior que a Black 6 – a do Major Tom. Os resistentes B6 foram usados para estudar diabetes, osteoporose e doenças cardíacas. Beberam álcool, cheiraram cocaína, tomaram Viagra. Alguns foram separados da mãe na infância para sofrer os efeitos da ausência materna; outros foram engordados para testar remédios contra a obesidade. Hoje, o laboratório americano Jackson – referência na produção de roedores para a ciência – vende 9 mil variedades de camundongos. 60% dos pedidos são por Black 6.

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