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Dor , essa incompreendida

A sensação dolorosa é um alerta do corpo. As pessoas, no entanto, se acostumaram a abusar dos analgésicos, sem atacar a causa do problema. Esse comportamento pode trazer riscos à saúde.

Por Jomar Morais
Atualizado em 31 out 2016, 18h36 - Publicado em 30 abr 2003, 22h00

Ninguém gosta de sentir dor e é natural que tentemos evitá-la. Mas a velha vilã também é uma aliada: a dor é um alarme que nos adverte sobre ameaças à nossa saúde. Suprimi-la indiscriminadamente com analgésicos, dizem alguns estudiosos, pode fazer mais mal do que bem

Para melhor entender esta reportagem, considere inicialmente uma cena hipotética, mas bastante factível no clima atual de insegurança em que vivem as grandes cidades brasileiras. Imagine que uma onda de assaltos alastra-se por seu bairro e, a fim de proteger-se da ameaça, você decide instalar em casa um alarme de última geração, capaz de disparar ao menor sinal de anormalidade. Os dias seguintes transcorrem sem imprevistos, e você até esquece a presença da engenhoca. Mas eis que, numa madrugada, o alarme começa a soar estridente, tirando-o enfim da cama num sobressalto. E agora, o que você faz? Ataca o aparelhinho impertinente, desliga o alarme e volta a dormir, ou checa minuciosamente os compartimentos de sua casa para certificar-se de que alguém tentou invadi-la?

A resposta óbvia a essa situação é o primeiro passo para se compreender por que alguns estudiosos estão preocupados com o hábito do homem moderno de suprimir a dor indiscriminadamente, sem procurar saber sobre a causa – o tema desta matéria. Na ânsia de livrar-se a qualquer custo da sensação dolorosa, mediante o uso abusivo de analgésicos, relaxantes musculares, antiinflamatórios e outros medicamentos, as pessoas podem estar se privando de seu sinalizador mais perfeito. Um alarme preciso que a natureza instalou no organismo para soar a cada ameaça de dano ou desequilíbrio.

“A dor é biologicamente necessária”, diz o neurocirurgião americano Frank T. Vertosick, autor do livro Why We Hurt (“Por que Sentimos Dor”, inédito no Brasil). “Ela nos protege, advertindo-nos quando ultrapassamos nossos limites e corremos risco de prejuízos.” Temida e detestada, a dor quase sempre é encarada negativamente. Sua imagem é a de uma megera implacável contra a qual o homem tem mobilizado ao longo dos séculos a ciência, a filosofia e a religião. No entanto, mesmo sem desejá-la – e por mais que isso choque o senso comum –, é possível enxergar na terrível sensação uma função vital para o organismo, segundo médicos e terapeutas. “A dor é um alerta de que algo está errado. E, se está errado, precisa ser corrigido”, afirma o médico Alexandros Botsaris, consultor da Natura Inovação e Tecnologia e acupunturista no Rio de Janeiro.

Em outras palavras, a dor pode ser vista como uma espécie de pedido de socorro do corpo, um grito de “ei, cara, pare de abusar”. Ou talvez um sinal de que o corpo, ameaçado, está reagindo, tratando de se curar.

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Isto não quer dizer que se deve encarar o infortúnio causado pela dor com indiferença. “Não podemos deixar pessoas sofrendo se há uma forma de aliviar o sofrimento”, lembra Alexandros. Mas a intervenção no quadro doloroso deveria levar em conta, de acordo com o médico, fatores como a relação custo-benefício de um tratamento sintomático – aquele que visa apenas estancar a sensação de dor, quase sempre com o uso de drogas químicas – e até a autopercepção do nível de sofrimento, que varia com os indivíduos.

Há quem diga que a manifestação da vida não seria possível sem a dor. Em suas múltiplas facetas, ela seria um dos pilares da autopreservação dos seres vivos, compondo, com o prazer, os extremos de um movimento pendular que afasta o homem de tudo o que tende a destruí-lo e o aproxima de tudo o que lhe proporciona bem-estar ou crescimento. O equilíbrio seria rompido quando, no esforço para banir qualquer dor, por mínima que seja, bombardeamos os mecanismos da sensibilidade com drogas de efeito cada vez mais forte e duradouro. E essa atitude, segundo os críticos do uso massivo de analgésicos, pode trazer mais prejuízos do que a convivência com a dor por algum tempo, enquanto ela é atacada na raiz. É que as drogas são eficazes na supressão da dor, mas deixam intacta a sua causa, que continuará a produzir novas complicações e outras dores passado o efeito sedativo.

“Dor é o que o paciente diz sentir”, diz o médico anestesiologista Onofre Alves Neto, diretor científico da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. “É uma experiência única, com uma importante dimensão psicológica, detalhe que impede seja medida de maneira objetiva.” Devido a esse caráter subjetivo, os médicos tentam mensurá-la usando escalas baseadas nos depoimentos dos pacientes. Seu tratamento convencional, segundo Onofre, segue um modelo em escadinha recomendado pela Organização Mundial de Saúde. Começa com analgésicos simples, como os antiinflamatórios não hormonais (caso do ácido acetilsalicílico, a popular aspirina) e vai subindo em complexidade e poder de fogo sobre tecidos e células do sistema nervoso à medida que a sensação desagradável resiste. Se a aspirina não resolve, passa-se então para os chamados opióides, substâncias sintéticas ou não de ação semelhante ao ópio.

Nessa fase entram em cena os remédios à base de codeína e tramadol, considerados opióides fracos, e, se necessário, os opióides potentes, cujo agente emblemático é a morfina. Em certos casos de dores crônicas são usados até antidepressivos e anticonvulsivantes, drogas destinadas originalmente ao tratamento da depressão e da epilepsia. Quando nada disso dá certo, o médico pode recomendar uma abordagem ainda mais radical: as cirurgias em que as vias que transmitem a informação da dor ao cérebro são cortadas.

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Ampliado a cada dia pela tecnologia farmacêutica, esse conjunto de recursos é suficiente para sufocar os tipos mais comuns de dor e aliviar aqueles relacionados a quadros graves, como o câncer e a fibromialgia, doença que provoca dor em todo o corpo. Mas há indícios de que o uso indiscriminado de tais drogas, mesmo as mais simples, está produzindo uma conta social pesada. “O abuso de analgésicos é um fato”, diz Alexandros. “As pessoas sentem alguma dor, tomam alguma coisa e vão trabalhar, sem se darem conta dos prejuízos dessa atitude.” Uma das conseqüências do descontrole, segundo o médico, é a cefaléia crônica diária, um tipo de dor de cabeça capaz de infernizar a vida de qualquer mortal. Com o uso contínuo de químicos, o cérebro passa a não mais produzir endorfina, um analgésico natural, transformando a dor de cabeça numa manifestação recorrente e mais intensa.

Não é preciso muito para alguém ganhar uma cefaléia crônica. Basta tomar um comprimido analgésico mais de duas vezes por semana durante um período de três meses. Calcula-se que 60% dos consumidores de analgésicos fazem assim, o que explicaria o tamanho do problema da dor de cabeça no Brasil. Pesquisa realizada no ano passado pela professora de enfermagem Cibele Andrucioli Pimenta, da Universidade de São Paulo, constatou que esse sintoma está no topo da lista de dores crônicas, um incômodo que atinge 27% da população brasileira. Na época, o presidente da Sociedade Brasileira de Cefaléia, Pedro Moreira, considerou a situação preocupante, mas a verdade é que os números do problema aqui não são nada, se comparados ao que vem ocorrendo nos Estados Unidos. Desde 1998, pelo menos 4 milhões de americanos viciaram-se em sedativos e estimulantes, boa parte deles depois que as farmácias passaram a vender versões sintéticas de opiáceos.

Não se trata de gente que se automedicou e criou uma complicação para si, mas de pacientes receitados em hospitais e clínicas que se tornaram dependentes químicos involuntariamente. O abuso de analgésicos, que em passado recente levou o cantor Michael Jackson a internar-se numa clínica de desintoxicação, está fazendo vítimas em série entre artistas de Hollywood, como é o caso do ator Matthew Perry, do seriado Friends, e da atriz Melanie Griffith, mulher do galã Antonio Banderas, que admitiram ser dependentes de opiáceos sintéticos.

Entre os fármacos responsabilizados por essa nova epidemia estão o Darvon e o Vicodin, remédios que combinam narcóticos com a aspirina e o acetominofen, respectivamente, para turbinar sua ação, e em pouco tempo podem provocar efeitos colaterais complexos e crises de abstinência que incluem dores musculares, câimbras e elevação da pressão arterial. O Darvon e o Vicodin ainda não estão à venda no Brasil, mas um de seus ingredientes, o acetominofen, é bem conhecido por aqui por ser o princípio ativo do analgésico Tylenol. Estudo recente da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, mostrou que mulheres que usaram o Tylenol de um a quatro dias por mês tiveram um aumento de 22% no risco se tornarem hipertensas.

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Médicos e terapeutas concordam numa coisa: é preciso agir com cautela diante de toda manifestação de dor. “Nunca deveríamos eliminar a dor exclusivamente, sem atuar na sua causa, exceto nas raras ocasiões em que essa causa é intratável”, afirma Alexandros. Isso exige do médico a plena consciência do papel da dor aguda, aquela que, segundo Onofre, jamais deveria ser suprimida antes de um diagnóstico apurado do fator desencadeante. O especialista, no entanto, não vê motivo para que a dor crônica, fonte de sofrimento permanente – com ou sem identificação da causa – não seja atacada com o arsenal bioquímico disponível para alívio do paciente. “A dor aguda tem a função de alertar a pessoa a procurar cuidados específicos, mas a dor crônica, depois de feito o diagnóstico, é um sofrimento desnecessário”, afirma.

Neste ponto começa o conflito entre médicos convencionais, de formação biomédica, e correntes terapêuticas alternativas, como a dos higienistas, que enfatizam o combate aos desequilíbrios orgânicos que estariam por trás das doenças e da dor. Para os higienistas, ambas têm uma raiz comum: os hábitos nocivos adotados pelo homem, principalmente os relacionados à alimentação não natural, e às situações estressantes. A supressão artificial da dor, sem a eliminação de sua causa, diz a doutrina higienista, será sucedida por uma reação fisiológica do organismo ainda mais forte, cuja conseqüência é o doente ingerir mais remédios, precipitando-se num quadro de dor reativa e de dependência química.

Na verdade, na maioria das vezes a identificação da causa da dor é fácil, óbvia até, e a sua preservação só se explica por negligência do médico ou por opção do paciente. Num jovem, lembra Onofre, a dor abdominal que se inicia ao redor do umbigo e se propaga para o lado direito pode ser um sinal de apendicite. Muitas dores de cabeça, tonturas, dificuldades respiratórias e problemas gástricos têm origem no desvio do eixo da coluna vertebral, provocado por má postura. O sedentarismo e o estresse, que contribuem para um corpo flácido e envenenado pela sobrecarga de hormônios como o cortisol, gerado nos momentos de irritação, estão por trás de dores na cabeça, nas costas e nas articulações. Não é à toa que a lombalgia aparece em segundo lugar na lista de dores crônicas da pesquisa de Cibele.

O mesmo estudo mostrou ainda que, ao contrário do que se imagina, não são os idosos, mas os jovens, o segmento da população que mais sofre com a dor crônica (51% dos adultos com mais de 60 anos contra 63% de jovens), outra sinalização da influência dos hábitos na experiência dolorosa. É que os moços se expõem com mais freqüência a movimentos repetitivos, a situações limite e também ao sedentarismo e à má postura diante da TV e do computador.

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A dor, enfim, segundo alguns estudiosos, exibe também uma dimensão emocional – o elemento principal do sofrimento –, que, não raro, funciona como um círculo de causa e efeito. A capacidade cognitiva dos humanos antecipa a dor, diz Frank Vertosick. Ele lembra o episódio de Jesus no horto do Getsêmani, pouco antes de ser preso. A expectativa da morte na cruz fez Cristo suar sangue. No homem comum, o medo de conviver com a dor pode ser um fator decisivo na percepção da sensação dolorosa – um fenômeno explicado, há quatro anos, por uma pesquisa da Universidade Oxford, na Inglaterra. Segundo o estudo, algumas áreas do cérebro são afetadas pela expectativa de dor e costumam gerar um efeito de antecipação e aumento da sensação. É o caso, por exemplo, daquelas pessoas que só ao escutar o barulho do motor do dentista já começam a sentir dor no dente a ser alcançado pela broca.

Na época, testes realizados com voluntários submetidos a ressonância magnética indicaram que tais áreas estão localizadas na região frontal do cérebro e no córtex insular, próximo à área cerebral onde a dor é efetivamente sentida.

A variável cultural é outro item considerável. Veja-se o caso da dor do parto. Ela pode ser mais intensa que a provocada pelo câncer e assemelha-se à da amputação de uma perna ou de um braço sem anestesia. No entanto, argumenta Vertosick, milhões de mulheres preferem o parto natural e outros milhares pagam para evitar a anestesia no momento em que darão à luz um filho. Segundo o especialista, tais mulheres simplesmente sabem como devem agir para eliminar a dor: deixar a criança nascer. Da mesma forma, meninos aos quais foi explicado o sentido de ir ao dentista sentem menos ou nenhum incômodo quando estão na cadeira temida por tantos adultos. Deduz-se daí que, educada ou estimulada, a mente pode controlar e até suprimir a dor sem as desvantagens dos fármacos que atuam em processos químicos do sistema nervoso.

A demonstração mais ostensiva desse poder mental ocorreria no uso da hipnose em pacientes com dores insuportáveis. A sensação diminui bastante. Outros recursos, alinhados com o objetivo de estimular a capacidade de autocura do organismo, têm sido recomendados até por médicos alopatas e aplicados em hospitais da medicina convencional. O Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, um centro de referência no tratamento do câncer em Nova York, foi um dos primeiros hospitais a incluir a meditação como terapia complementar para alívio da dor. A prática está disseminada por centenas de hospitais americanos e já foi adotada em alguns hospitais brasileiros. Em outubro passado, em Maryland, Estados Unidos, um simpósio de profissionais especializados em dor crônica concluiu que o problema é complexo demais para ser atacado apenas no aspecto sintomático e deu sinal verde para as terapias holísticas, especialmente a acupuntura.

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A idéia é que, mesmo quando a terapia não passa de placebo (algo inócuo do ponto de vista farmacológico), ela pode contribuir para alterar a percepção psíquica da dor, ajudando na melhoria do estado do paciente.

“A dor é uma companhia indesejada, mas inevitável em nossas vidas. É uma mestra que pode nos ensinar o que preferiríamos aprender de outro modo”, afirma Vertosick. Uma visão polêmica, sem dúvida, em um mundo habituado e equipado para exorcizar toda manifestação dolorosa. Nessa perspectiva, restaria o consolo de que, dependendo da atitude individual, o aprendizado amargo pode ser rápido. “A dor é um processo de exoneração do que nos prejudica”, diz a terapeuta Norma Tresbach, homeopata com formação em medicina tradicional chinesa. “Mas não estamos aqui para sofrê-la, e sim para viver prazerosamente.” Segundo Norma, o simples de fato de ouvir a dor e chegar à consciência de sua causa às vezes é o suficiente para eliminá-la sem remédio algum, nem mesmo as bolinhas açucaradas da homeopatia. É quando você, advertido pelo alarme, expulsaria o ladrão e reforçaria a fechadura da casa.

 

Para saber mais

NA LIVRARIA

Why We Hurt: The Natural History of Pain, Frank T. Vertosick, Harcourt, Estados Unidos, 2000

A Dor, João Augusto Figueiró, Publifolha, São Paulo, 2001

 

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