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Entre sapos e cobras: A vida noturna dos Animais

Morcegos, sapos, cobras, lobos, corujas, gambás - uma infinidade de animais desperta para a luta quando a noite cai. Graças a atributos especiais, tomam conta de um mundo onde o homem vale pouco.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h28 - Publicado em 28 fev 1989, 22h00

Quando a noite cai, centenas de sapos iniciam seu costumeiro e ensurdecedor coro na lagoa de uma floresta. Silenciosamente alguns morcegos se aproximam. Os sapos, então, param de coaxar. Os morcegos hesitam alguns instantes e depois vão embora. Tão logo a sinfonia recomeça, os morcegos voltam. De repente, um deles solta um guincho e arremete contra a água. Ao retornar, traz na boca um sapo. Essa cena, incomum aos olhos humanos, foi registrada pelo zoólogo americano Merlin D. Tuttle, numa estação de pesquisa da Smithsonian Institution, no Panamá, graças a uma lente infravermelha que permitiu que ele enxergasse em plena escuridão.

Os sapos são, provavelmente, os mais barulhentos representantes das inúmeras formas de vida que se distinguem por preferir a noite ao dia. Assim que escurece, coaxam para chamar as fêmeas e os outros companheiros. Cada espécie tem um modo próprio de fazê-lo – e, o que é ainda mais peculiar, uma hora certa para se manifestar. O anoitecer é também quando eles saem para caçar insetos e são caçados por outros bichos, seus parceiros de boêmia, como os morcegos. O Trachops cirrhosus fotografado por Tuttle é uma espécie que tem nos sapos seu alimento preferido. Mamíferos, os morcegos são famosos por sua excepcional adaptação à escassa luz noturna. Como se sabe, eles possuem uma espécie de radar sonoro embutidos que lhes permite localizar obstáculos pelo retorno das ondas curtas que emitem quando guincham, estalando a língua.

Ao colidir com algo, a onda sonora é refletida em forma de ecos, que por assim dizer balizam o caminho entre o morcego e o obstáculo. Os morcegos podem emitir até 300 ondas por segundo; quando estas retornam, são captadas pelas enormes orelhas e por um sensibilíssimo receptor no cérebro. Dessa forma, eles conseguem caçar na mais negra das noites. Esses animais certamente figuram entre os seres mais detestados e temidos pelo homem – o que, segundo os especialistas, é uma rematada asneira. A eles se relacionam toda sorte de histórias macabras. O que talvez se explique pelo fato de se tratar de animais de pelagem escura que durante o dia se escondem em cavernas e à noite saem guinchando por aí.

O cinema herdou da literatura de terror, inspirada em lendas medievais, a imagem do morcego como repugnante monstro. Em 1897, o irlandês Bram Stoker escreveu o clássico Drácula, a arrepiante história do conde que de dia dorme num caixão e nas noites de lua cheia se transforma em vampiro, atacando as pessoas – que, por sua vez, assim também se tornam vampiros. Na verdade, vampiro é o nome pelo qual se designam as raras espécies de morcegos hematófagos, ou seja, que se alimentam de sangue. Com seus caninos afiados cortam a carne das vítimas e lambem o sangue – sugar sangue é uma exclusividade do fictício conde Drácula; neste caso, a vida não imita a arte. À parte dos hematófagos, os morcegos se alimentam de frutas e insetos e não atacam o homem.

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Ao contrário das lendas, a sua condição de insetívoros os torna aliados dos humanos, pois é sabido que os insetos são os maiores concorrentes do homem na face de Terra. De fato, do milhão e meio de espécies que circulam pela superfície do planeta, mais da metade aproximadamente é constituída de insetos. “Não há outro animal que se compare aos morcegos em termos de adaptação e exploração do meio ambiente”, resume o zoólogo Ladislau Deutsch, especialista em mamíferos, que durante dezesseis anos trabalhou no Zoológico de São Paulo e atualmente se dedica a implantar projetos de parques, reservas e novos zôos. Os morcegos são até capazes, por exemplo, de distinguir um sapo venenoso de um não venenoso. Os sapos venenosos, ao contrário das cobras, não inoculam peçonha, mas se forem comidos por outros animais o envenenamento é certo.

Desse fascinante e misterioso mundo noturno, os seres humanos estão virtualmente excluídos. Quando se aventuram numa floresta escura só conseguem ouvir algo, como o pio das corujas, o coaxar dos sapos, o cricrilar dos grilos ou os esturros de uma onça. Enxergar, então, nem se fala. É que os diurnos humanos não possuem os equipamentos corporais necessários para se movimentar na ausência da luz; portanto, dependem quase exclusivamente dos olhos, que funcionam à base de impulsos luminosos. Já os animais se valem de outras formas de investigação do ambiente, como cheirar, tatear, ouvir e degustar.

No homem esses atributos são precariamente desenvolvidos, se comparados aos bichos da noite. Também o sistema auditivo humano é inapto para captar os sons da noite. Ainda bem, pois do contrário os tímpanos seriam bombardeados pelo ensurdecedor barulho dos morcegos que, como já se registrou pode atingir até 160 decibéis – muito mais do que o produzido por uma turbina de avião e cerca de 40 decibéis acima do limite suportável pelo ouvido humano. Entretanto, graças ao desenvolvimento de sofisticados recursos de pesquisa, tornou-se possível aos cientistas espionar os bichos da noite em seu hábitat sem perturbá-los. Amplificadores eletrônicos, microfones de ultra-som e radares são alguns dos equipamentos capazes de revelar sons antes inacessíveis. Para tanto, os pesquisadores capturam alguns daqueles animais e neles colocam um pequeno transmissor antes de devolvê-los à liberdade.

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O mesmo princípio permite monitorar à distância o pulso, a freqüência respiratória e a temperatura corporal dos habitantes da noite. Também as lentes infravermelhas, como as utilizadas pelo zoólogo Tuttle para a foto do ataque do morcego ao sapo, são valiosos instrumentos no estudo do comportamento da fauna noturna.

Mas, afinal, o que levou alguns animais a se adaptarem à vida noturna e outros à diurna? Segundo o biomédico Luiz Menna Barreto, da USP, “as condições ambientais, embora tendam a ser as mesmas para todos os seres vivos, acabam por influenciá-los de formas diferentes”. Ou seja, à medida que a evolução favorece a diversidade, promovendo mutações e espécies diferentes, cada uma delas desenvolve sua própria maneira de interagir com o ambiente para sobreviver; se para algumas espécies a luz é fundamental, já outras dependem da temperatura e da umidade. Assim, pode-se dizer que a preferência pela noite ou pelo dia foi determinada tanto por pressões internas como externas.

As primeiras são de natureza genética e consistem no conjunto de características que um animal desenvolve. Ele pode ter, por exemplo, um olfato excepcional, mas se orientar mal pela luz. Para um bicho assim, as probabilidades de sobrevivência são maiores à noite. Já as pressões externas são representadas pelos predadores – para escapar de seus inimigos mais fortes, alguns animais esperam que eles durmam, para só então começar a viver. É por essa razão que animais de hábitos diferentes podem conviver no mesmo nocho ecológico, porém em turnos diferentes.

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Um bom exemplo da influência das pressões internas e externas é o dos atuais mamíferos. Seus antepassados mais remotos, do tamanho dos ratos e semelhantes aos gambás, coexistiram com os dinossauros há cerca de 100 milhões de anos. Pequenos e indefesos, deviam procurar proteção à noite para escapar a seus colossais predadores de hábitos diurnos. Já as aves desenvolveram hábitos diurnos porque, dotadas de asas, podiam voar para o alto das copoas das árvores, um abrigo tão ou mais seguro do que o da escuridão. Nada mais natural, então, que preferissem o dia.

A exceção fica por conta das corujas, que de dia se escondem e à noite caçam roedores. Entre as muitas espécies de corujas, a mais comum é a Tyto alba, conhecida como coruja- das-torres. De uma altura de 10 metros, ela distingue na escuridão qualquer coisa que se movimente no solo. Além de possuir uma visão cem vezes melhor que a dos homens, a coruja-das-torres consegue enxergar com apenas 10 por cento da luz que o olho humano necessita para distinguir alguma coisa. É que ela tem olhos enormes em relação ao seu tamanho, e a forma alongada (ao contrário do esférico sistema ótico humano) se alarga em direção à retina, abrindo espaço entre a pupila e o cristalino. Também os gambás, mamíferos noturnos, são dotados de grandes olhos para captar o máximo de luz possível.

Para os bichos que dependem da temperatura ou mesmo da umidade, a noite tem seus atrativos: a pressão do ar e a umidade se modificam drasticamente, proporcionando melhores condições de sobrevivência, especialmente àqueles animais que simplesmente se ressecariam após algumas horas de exposição ao sol, como é o caso dos sapos, pererecas e rãs. Por outro lado, o calor das regiões tropicais e de desertos torna grande parte dos animais adaptados e ativos à noite. Não seria exagero dizer que o dia e a noite são mundos totalmente diferentes, embora o cenário seja o mesmo. Num dia de verão, por exemplo, o calor do solo aquece o ar que se eleva na atmosfera e provoca uma circulação vertical na qual os odores, representados por moléculas de substâncias químicas, se expandem rapidamente.

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À noite, no entanto, o ar refresca, a circulação diminui e os odores permanecem por mais tempo. Quem se aproveita disso são as mariposas, borboletas noturnas: os machos localizam as fêmeas pelos cheiros que elas emitem para a fecundação. Iguaria preferida de muitas espécies de morcegos, com o tempo as mariposas foram criando defesas contra tais predadores. Elas acabam por desenvolver uma percepção auditiva capaz de identificar o radar dos morcegos, permitindo-lhes assim escapar aos seus botes. Mecanismos de defesa desse ou de outros tipos são comuns no mundo da noite. Para sobreviver, os animais noturnos criaram sistemas de percepção altamente complexos.

Especialmente notáveis são os termômetros corporais que as cobras venenosas desenvolveram. Rainhas da noite, elas se distinguem das não venenosas pelos dois orifícios que possuem atrás das narinas – as fossetas loreais, que captam o calor dos animais próximos. Guiadas pelo foco de calor, as cobras chegam às suas vítimas. Pesquisadores da Universidade da Califórnia descobriram que as cascavéis têm nas fossetas uma concentrada carga de 150 mil células nervosas sensíveis ao calor – cinco vezes mais que a quantidade de “termômetros” distribuídos pelo corpo humano.

Esse conglomerado celular permite às cobras medir não apenas o calor irradiado por um ser vivo mas também avaliar o tamanho aproximado e a forma do bicho. Se este for grande demais para enfrentar, dá tempo de fugir. Sem as fossetas, pode-se dizer, uma cobra não é nada. Para provar isso, os mesmos pesquisadores da Universidade da Califórnia fizeram a seguinte experiência: cobriram as fossetas de uma cascavel com um esparadrapo e soltaram-na no meio de uma dúzia de camundongos. Após alguns dias, a cobra não capturara um ratinho sequer. Era como se estivesse cega, embora os olhos enxergassem perfeitamente.

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Além dos morcegos e das cobras venenosas, as onças (malhadas ou pretas) são os bichos da noite mais temidos pelo homem. Mas elas não costumam atacar; preferem até as regiões onde a presença humana é menos freqüente. As onças são importantes no controle da população de roedores porque se alimentam de capivaras, pacas e cutias. No entanto, à medida que os humanos concorrem com elas, caçando seus alimentos, acabam por atacar animais que normalmente não fariam parte de seu cardápio predileto, como os bezerros. Existem, enfim, mamíferos de hábitos diurnos, como raposas, lebres, veados e porcos selvagens que se vêem obrigados a se adaptar à vida noturna, seja para escapar aos transtornos provocados por tratores e máquinas agrícolas em geral, seja para fugir à ação predatória do homem. Nesse processo de trocar o dia pela noite, o homem é uma poderosa influência capaz de provocar mudanças nos hábitos de outras espécies.

Para saber mais:

A hora do pulo do sapo

(SUPER número 3, ano 7)

Corujas, rainhas da escuridão

(SUPER número 12, ano 4)

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