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Evolução humana: Prato do dia

Novas evidências mostram que a evolução humana foi moldada a dentadas por grandes predadores - de felinosa crocodilos - cuja refeição favorita éramos nós

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 30 set 2005, 22h00

Texto Reinaldo José Lopes

Você já deve ter visto a cena pela TV: leões cercam em silêncio gazelas ou zebras que bebem água tranqüilamente num lago qualquer da África. De repente, o grupo percebe a presença do predador e sai em disparada. Mas os leões avançam em velocidade, até que uma patada certeira rasga a pele de um dos animais – em geral o mais fofinho do grupo, o filhote frágil e inexperiente. A seguir, uma mordida no pescoço tira a vida da presa, que em questão de minutos está reduzida a uma carcaça que alimenta urubus.

Agora imagine que, em vez de zebras e gazelas, as vítimas fossem pessoas como nós. Então você estaria diante de uma história que relata não uma exceção trágica na história humana, mas a regra da vida de hominídeos e seus ancestrais por milhões e milhões de anos, a ponto de o terror de ser devorado por bichos munidos de dentes afiados ter moldado muito do que somos hoje – do fascínio por leões e tigres à mania de viver em grupo. Quem afirma isso é uma dupla de primatologistas americanos. Esqueça a velha imagem do valente homem das cavernas varando monstros com sua lança e trazendo carne para casa. O ser humano, quase sempre, não foi o caçador. Foi a caça.

Churrasquinho de gente

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A tese está no livro Man the Hunted (“Homem, o Caçado”, sem versão brasileira), lançado neste ano nos EUA. Nele, Donna Hart, da Universidade de Missouri, e Robert W. Sussman, da Universidade Washington, em Saint Louis, reuniram uma coleção de fatos saborosos (mais para os predadores do que para nós) sobre hominídeos ancestrais e nossos parentes mais próximos, os primatas. As conclusões não deixam muita margem para dúvida: na maior parte dos 7 milhões de anos que separam o homem de hoje do primeiro macaco que aprendeu a andar com duas pernas, nós fomos a comida do jantar.

O debate, diga-se de passagem, não é exatamente novo. “As idéias sobre a caça como uma força importante durante a evolução da humanidade tendem a ser bastante cíclicas”, diz o paleoantropólogo Bill Leonard, da Universidade Northwestern, EUA. Até os anos 70, a visão dominante era a de que, desde os primórdios, a humanidade aprendeu a virar o jogo contra os predadores. Nas palavras do lendário Louis Leakey, antropólogo do Museu de História Natural do Quênia e um dos maiores caçadores de fósseis humanos da história, “nossos ancestrais não eram comida de gato”. Para Leakey e outros figurões da época, a habilidade de caçador e o apetite por carne fresca eram parte do “desejo de matar” da espécie, que explicaria boa parte do comportamento humano nos dias de hoje, como a guerra, a opressão das mulheres e, quem sabe, a paixão por futebol.

De lá para cá, alguns estudos reinterpretaram radicalmente fósseis que antigamente eram considerados a prova das atividades sanguinolentas dos hominídeos. O que Hart e Sussman afirmam ter feito é dar o golpe de misericórdia no mito. Para isso, os duas começaram demonstrando que primatas são – e sempre foram – uma bela refeição no mundo animal. As pesquisas reuniram um calhamaço de dados sobre macacos e assemelhados – dos lêmures de Madagascar aos orangotangos – que foram parar no papo de predadores. “Obviamente não queremos dizer que a predação dos lêmures ou dos macacos sul-americanos tem ligação direta com a dos hominídeos. Nossa idéia foi colocar os primatas dentro do reino das presas”, afirma Hart.

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O resultado dessa megacompilação é de deixar qualquer chimpanzé de pêlo em pé: nada menos que 176 espécies de predadores apreciam um primata no espeto. A lista começa nos grandes felinos, como os leões e leopardos, e passa por dezenas de aves, répteis e até tubarões do Sudeste Asiático que se alimentam de macacos reso que nadam no mangue. A relação segue com alguns integrantes quase inimagináveis, como tucanos, gambás e calangos. Hart e Sussman afirmam que nenhuma espécie de primata estudada, nem os musculosos gorilas, escapam de virar comida – aliás, uma das relíquias mais arrepiantes desenterradas pela dupla é um dedão inteiro de gorila achado entre as fezes de um leopardo. A conclusão é que, para macacos e companhia, ser devorado está longe de ser uma tragédia excepcional. Na verdade, a taxa média de primatas predados gira em torno de 10% da população ao ano, a mesma que afeta o que poderíamos apelidar de espécies-almoço – aquelas presas típicas dos filmes no Discovery Channel, como antílopes, zebras e gazelas.

Pior ainda, alguns grandes predadores parecem ser especialistas em infernizar nossa família. Felinos e aves de rapina são os campeões dessa categoria. A atuação deles ajudou a derrubar um dos principais mitos sobre o “Homem Caçador”. Tudo começou nos anos 20, quando o professor de anatomia Raymond Dart se pôs a estudar misteriosos fósseis pré-humanos na África do Sul, com idade entre 2 milhões e 3 milhões de anos, batizados de Australopithecus africanus. Com base na infinidade de buracos, ranhuras e traços de violência que encontrou nos ossos, Dart propôs que os australopitecos se envolviam em muitos combates e banquetes canibais. Na mesma caverna, foram encontrados restos de babuínos e antílopes com as mesmas marcas – os especialistas achavam que essas ossadas provariam as habilidades de caçador dos hominídeos.

Bastou uma pancadinha, no entanto, para pôr abaixo o castelo de cartas de Dart. Análises mais cuidadosas das caveiras esburacadas dos hominídeos mostraram que os furos foram abertos pelos dentes afiados de leopardos pré-históricos. O encaixe é tão perfeito que dá para pegar a mandíbula de um bicho desses e juntá-la sem problemas ao crânio dos australopitecos. Na verdade, tudo indica que o felino dava um jeito de se esgueirar para dentro das cavernas que os primatas usavam para passar a noite e os devorava, como ainda acontece até hoje com os babuínos que moram lá. Outra possibilidade é que os leopardos carregassem o cadáver da vítima para o alto de uma árvore e lá o devorasse sossegadamente. Depois, restos caíam no chão e rolavam até a caverna. Ao fim de milênios, criava-se um belo fricassê de australopiteco fóssil. Ou seja, aqueles fósseis não eram restos de refeições humanas. Eram as sobras do banquete de algum felino – e nossos ancestrais não passava do prato principal. “As evidências que vêm da África do Sul sugerem que os hominídeos eram o foco da predação, assim como os babuínos e antílopes”, resume Scott Simpson, paleontólogo da Universidade Case Western Reserve, em Cleveland, EUA.

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O perigo, às vezes, vinha do ar. Uma das coisas mais esquisitas encontradas num fóssil de bebê devorado que foi localizado na atual África do Sul é que sua mandíbula continuava no lugar original, coisa rara em animais que servem de alimento para outros. Os ossos também apresentavam ranhuras por todo lado, como se a carne tivesse sido retirada com uma faca afiada. Uma boa olhada nos macacos regularmente devorados pela águia-coroada, ave de rapina de grande porte da África, ajudou a elucidar o enigma. O bicho segue uma etiqueta cheia de frescuras na hora de se alimentar: com as garras, desbasta devagarzinho a face da vítima para aproveitar o máximo de carne.

Quando se avança mais na história até uns 400 mil anos atrás, chegamos à caverna chinesa de Zhoukoudian, habitada pelo Homo erectus. Para os pesquisadores que costumavam classificar os humanos primitivos como caçadores e assassinos de mão cheia, a gruta era o paraíso: um conjunto de crânios horrivelmente mutilados, com a face toda detonada e a base arrancada – a imagem sugeria aos especialistas que os homens antigos construíram ferramentas de pedra para extrair e comer o cérebro de seus inimigos assassinados. De novo, a análise mais cuidadosa mostrou que esse cenário de pesadelo era bobagem: na verdade, as fraturas provavelmente foram obra de um tipo gigantesco de hiena, capaz de colocar a cabeça inteira de um ser humano na boca. O bicho despedaçava a cara da vítima para comer-lhe a língua e quebrava a base do crânio para chegar ao cérebro, gorduroso e nutritivo.

Marcas do passado

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O que essa coleção de cenas humilhantes ensina sobre as nossas origens e o nosso comportamento hoje? Os primatologistas Hart e Sussam acreditam que boa parte do comportamento e da fisiologia das pessoas de hoje nasceu da necessidade de não virar ração de leopardo. O primeiro exemplo é a vida em grupos sociais relativamente grandes e flexíveis. Isso ajudava um bocado a nos proteger de ataques de predadores, seja pela regra básica de que a união faz a força (juntos, os membros do bando podem até ter alguma chance de afugentar um felino ou águia), seja pelo fato um tanto cínico de que se enfiando no meio do grupo você corre menos riscos de ser o escolhido. Dá menos trabalho ao predador abocanhar quem está nas bordas do aglomerado do que quem está no centro.

Por outro lado, a capacidade de andar sobre duas patas, a única característica que realmente distinguiu a linhagem humana dos outros primatas na maior parte dos milhões de anos de nossa evolução separada, deu-nos mais mobilidade e mais visão do terreno na savana e, de quebra, nos ajudou a parecer maiores e mais ameaçadores diante de predadores. Além disso, um macaco bípede tem mais chances de dar o alarme para o bando ao enxergar um dentes-de-sabre (que, apesar do que dizia o velho apelido, não são tigres coisa nenhuma, mas parentes distantes dos felinos modernos). A estrutura dos braços e pernas também nos permite escalar árvores com relativa facilidade – bela estratégia de defesa contra a maioria dos predadores.

Outro efeito do medo de ir para o espeto: ao contrário dos demais primatas, nossos “bandos” têm vários machos adultos, que costumam se unir por laços de companheirismo e amizade, recurso-chave na hora de ameaçar ou, em última instância, enfrentar o perigo. E os laços de amizade e cooperação entre os machos e também entre machos e fêmeas, tão comuns e complexos entre seres humanos, teriam sido essenciais para que os membros do grupo pudessem contar uns com os outros e escapar (pelo menos na maioria dos casos) de virar aperitivo.

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É um quadro no mínimo intrigante, mas que não convence todos os pesquisadores. “É verdade que a predação moldou de alguma forma todas as espécies que existem. Mas não me parece que os hominídeos apresentem qualquer adaptação anatômica especial para evitá-la”, diz Scott Simpson, da Universidade Case Western Reserve. Seja como for, uma coisa é certa: toda vez que você sentir um frio na espinha ao ouvir o latido de um cachorro ou passar pela jaula dos tigres ou leões no zoológico, lembre-se de que você pode estar diante de um desses traumas mal resolvidos. Nosso reinado (quase) absoluto na Terra é bem recente.

Para saber mais

Man the Hunted – Donna Hart e Robert W. Sussman, Westview Press, EUA, 2005

Com fome, seu lobo?

Todo esse papo sobre australopitecos, Homo erectus e babuínos significa que virar almoço é coisa de fóssil ou de macaco, certo? Bem, que tal dizer isso à geóloga americana Cynthia Dusel-Bacon? Em 1977, ela fazia seu trabalho de campo no Alasca quando foi atacada por um urso. O bicho comeu um de seus braços e tentou esmagar seu crânio, sem sucesso. Enquanto o animal dava uma tempinho antes de continuar o lanche, Cynthia conseguiu chamar um colega pelo rádio. Mas o urso ainda teve tempo de comer o outro braço antes que o resgate chegasse.

Essa historinha de arrepiar, contada em Man the Hunted, é só mais um exemplo de como nas áreas onde ainda existem grandes predadores em número razoável, os humanos podem virar comida. Na Tanzânia, por exemplo, leões causaram 560 mortes nos últimos 15 anos. Na Índia e em Bangladesh, leopardos e tigres podem colocar a zona rural de certas regiões em pânico – os leopardos são capazes de arrancar bebês do colo de mães que estão dormindo sem serem ouvidos.

E quanto às lendas sobre lobos maus que comem criancinhas? Bem, o zoólogo holandês Hans Kruuk estudou casos modernos na Estônia, Holanda e França. Descobriu que, sim, esses bichos têm uma preferência por “filhotes de gente”. Kruuk sugere que a maioria dos ataques acontece no verão europeu, quando os filhotes de lobo estão sendo desmamados e precisam começar a comer carne. As assassinas, aparentemente, seriam lobas solitárias.

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