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Joel de Rosnay: “A vida não surgiu por acaso”

Entrevista com Joel de Rosnay, autor de um estudo clássico sobre a origem da vida.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h46 - Publicado em 30 nov 1989, 22h00

Desde Aristóteles, há 2300 anos, aos bioquímicos dos laboratórios computadorizados dos dias atuais, filósofos e cientistas – para não falar dos pensadores religiosos de todos os credos e épocas – têm procurado a resposta para aquilo que seguramente é a maior interrogação sobre a face da terra: como , quando e por que surgiu o que se chama vida? Esta portentosa pergunta, comparável apenas a indagação sobre a origem do Universo, desdobra-se numa variedade tão grande de complexas questões que chega a lembrar as assombrosas diversidade das formas vivas que povoaram este planeta.

Terá sido, por exemplo, um acidente num percurso dos componentes primitivos a matéria inanimada – o acaso, em suma, a matriz primeira da matéria orgânica? Ou, desde a formação da terra, uma lógica implacável determinou o nascimento das moléculas vitais? E que peculiaríssimo arranjo químico foi esse que, até onde a ainda precária vista humana alcança, só parece ter impregnado um único corpo celeste? Excluída a idéia da intervenção divina, pelo simples motivo de que tal resposta está além de qualquer verificação cientifica, restam as hipóteses construídas pelos próprios cientistas.
Estas não apenas são verossímeis, dado o acumulo de conhecimentos que permitiu formulá-las e testá-las, como também descrevem o que talvez seja a suprema odisséia já ocorrida nestas paragens do Cosmo. Do casamento das chamadas ciências planetárias, como a Geologia, a Climatologia e o estudo da atmosfera, com a Biologia Molecular e a Microbiologia, emergiu enfim uma explicação coerente e articulada para o enigma da vida. Poucos cientistas têm tanta familiaridade com cada tijolo dessa construção admirável quanto o francês Joël de Rosnay.

Aos 52 anos, químico de formação, ex-pesquisador do Instituto Pasteur, de Paris, e do não menos renomado Massachusetts Institute of Technology, em Cambrigde, Estados Unidos, Rosnay é autor, entre outros livros, de um clássico no assunto, Las origines de La vie, de 1965, do qual uma nova versão saiu em 1988 sob o titulo L’aventure Du vivant, ainda não editado no Brasil, assim como o anterior. Atual diretor da Cidade das Ciências, de La Villette, define-se como “um misto de administrador, cientista e comunicador”. Nesta entrevista a Dominique Simonnet, da revista francesa L’Express, que SUPERINTERESSANTE publica com exclusividade para o Brasil, Rosnay sustenta que “ a vida é o resultado de uma longa evolução”.

Já se passaram mais de vinte anos desde a publicação de seu livro As origens da vida. Nesses vinte anos o mistério original se esclareceu?

Em parte. As recentes descobertas confirmaram sobretudo uma grande idéia: a vida não apareceu por acaso. Ao contrário, ela é o resultado de uma longa evolução da matéria, das moléculas simples às primeira células. É um processo continuo intimamente ligado à evolução da própria terra. A novidade é que foi possível reproduzir em laboratório as principais etapas desse processo.

A idéia de que a vida surgiu da matéria lembra o conceito de “geração espontânea” dos nossos bisavós. Quer dizer então que eles não estavam completamente errados?

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É verdade. Mas eles acreditavam que os vermes brotavam da imundície e as moscas, da carne estragada. No século XVII, um célebre médico chegou mesmo a dar uma receita para a criação de ratos em 21 dias a partir de um grão de trigo e de uma camisa suja. Pasteur acabou com esse mito: as gerações espontâneas eram na realidade devidas aos microorganismos que proliferam num ambiente. Na época concluiu-se daí que a vida só poderia nascer da vida. Como então explicar sua primeira aparição? Só havia duas soluções: uma origem divina, mas aí já não se tratava de ciência, ou uma origem extraterrestre – meteoritos teriam trazido os germes da vida, o que tampouco resolvia o problema. A ciência ficou assim bloqueada anos a fio.

Até que finalmente ela se resignou a estabelecer a ponto entre a matéria e a vida.
Sim. Graças em parte a Darwin, que introduziu a idéia fundamental da evolução do tempo. Isso seaplica as espécies vivas, desde o primeiro organismo até o homem. Mas também, como Darwin sugeriu, às moléculas antes mesmo das primeiras células. No começo do século, os bioquímicos Aleksander Oparin e John Burdon Halden afirmaram que os componentes da vida se formaram a partir das moléculas simples que se encontravam na Terra por ocasião de sua formação, há 4,5 bilhões de anos.

Por que isso aconteceu na Terra?

Porque se trata de um planeta realmente peculiar: possui uma massa suficiente para reter gases numa atmosfera; fica a uma boa distância de uma estrela, o Sol, que irradia infravermelhos e ultravioleta capazes de desencadear reações químicas. Sob o efeito dos raios ultravioleta do Sol e dos violentos relâmpagos terrestres, as moléculas de gás da atmosfera primitiva (principalmente metano, amônia e vapor de água) se partiram e se recombinaram em elementos mais complexos: as primeiras moléculas, a que chamamos orgânicas, porque elas entram hoje na composição dos seres vivos. Durante milhões de anos, essas moléculas caíram do céu, trazidas pelas chuvas resultantes da condensação do vapor de água nas camadas frias da atmosfera. Assim se fixaram duas características essenciais do mundo vivo: sua composição química – todos os organismos são feitos de carbono, hidrogênio, oxigênio e nitrogênio: e sua fonte de energia – o Sol.

Como se descobriu isso?

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Mediante simulações em laboratório. A mais célebre foi realizada nos anos 50. Um jovem químico, Stanley Miller, fechou uma mistura de metano, amônia, hidrogênio e vapor de água (os quatro gases da atmosfera primitiva) num tubo de ensaio, que foi submetido a poderosas descargas elétricas para simular os relâmpagos e que ele havia equipado com um sistema de condenação da água para fazer as vezes das chuvas. Ao cabo de uma semana, ele obteve um liquido vermelho – alaranjado, onde encontrou notadamente aminoácidos, elementos essenciais dos seres vivos. Estava estabelecida a prova de que compostos orgânicos podiam se formar a partir de moléculas inertes.

Apesar disso, fica faltando a dimensão do tempo, è qual o senhor dá importância.

Sim, mas em laboratório sabe-se acelerar as reações e abreviar a duração. Além disso, de seu lado, os astrofísicos descobriram moléculas orgânicas no espaço, mais de setenta em quinze anos. Em 1986 a sonda Giotto encontrou tais moléculas no núcleo do Cometa de Halley. Isso mostra que antigamente a formação dessas moléculas não era um caso excepcional no Universo. Duas delas, o formaldeído e o ácido cianídrico, parecem haver desempenhado um papel importante: submetidas aos raios ultravioleta, deram origem a duas das quatro bases que compõem o DNA, o suporte de hereditariedade, ou seja, duas das quatro “letras” do código genético que caracteriza os seres vivos. Todas essas moléculas se acumularam inicialmente num gigantesco caldo de cultura, a sopa primitiva. As reações essenciais não se produziram apenas nos oceanos, como se acreditou durante muito tempo, mas também nas lagunas e nos pântanos, lugares secos e quentes de dia, frios e úmidos à noite, e sem dúvida no barro. Tais ambientes desempenharam o papel de desencadeadores das reações.

Ora, a vida nascida do barro. Reencontra-se um dos grandes mitos da criação.

Sim. Os pesquisadores israelenses e americanos que simularam em laboratório os ciclos de secamento dos mares confirmaram: em presença do barro, as famosas bases se juntam espontaneamente em pequenas cadeias de DNA e sobretudo de RNA, o outro suporte da informação genética ( que duplica o DNA da célula). Ora, segundo uma descoberta realizada em 1986 pelo americano Thomas Cech, esse RNA tem um poder extraordinário – o de auto-reproduzir. Outra experiência, esta do americano Sidney Fox, permite completar o argumento. Segundo ele, certas moléculas se aglutinaram na sopa primitiva em numerosíssimas bolinhas, as “microsferas”, de certa forma como gotas de óleo na água. Foi uma grande novidade: cada gota podia, com efeito, possuir um conteúdo químico próprio. Sabe-se que certas reações internas podem destruí-la; outras, ao contrário, podem estabelecer sua estabilidade. Resultado: aquelas que dispunham de um conteúdo favorável puderam subsistir notadamente as que colhiam as famosas cadeia de RNA, capazes de se auto-reproduzir. Essa seleção natural química durou um bom bilhão de ano. Houve portanto luta pela vida – antes da vida.

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Mas a partir de que momento existe vida

É uma questão de definição. Admite-se geralmente que um organismo vivo é um sistema capaz de assegurar sua própria conservação, de se gerir a si próprio e de se reproduzir – três propriedades que se aplicam a célula. Um cristal, ao contrário, não vive: ele é capaz de se reproduzir, mas não de metabolizar energia. O caso do vírus é mais ambíguo. Pode-se, por exemplo, transformar um vírus, como o mosaico do tabaco (TMV), em cristais, como o do açúcar comum, e conservá-lo durante anos. Ele não se reproduz, ele não se manifesta, ele não “vive”. E depois, um dia, pode-se buscar o pó, acrescentar-lhe água e despejar um pouco da solução numa folha de tabaco. A planta apresentará rapidamente sinais de infecção: o vírus reencontrou seus poderes e se reproduz a uma velocidade assombrosa. Digamos então que o vírus se situa na fronteira da vida. Segundo uma teoria original, os vírus seriam estruturas aperfeiçoadas, células que teriam evoluído livrando-se do estorvo do material da reprodução para se reduzirem a sua expressão mais simples. Em todo caso, ao contrario do que se chegou a acreditar, os vírus certamente não foram as primeiras formas de vida, pois eles necessitam de estruturas vivas para se reproduzir.

Os primeiros seres vivos foram portanto as esferas dotadas de RNA, as “gostas de vida”?

Provavelmente. Essa vida teria então invadido a terra muito depressa, ela teria contaminado como … um vírus. Talvez em menos de um ano, quem sabe. Quase nada., comparando aos bilhões de anos precedente. Não esqueça: quando uma célula se divide em duas, depois em quatro, oito dezesseis, 32 etc., chega-se muitos rapidamente a quantidades astronômicas. Além do que, naquela época não havia nada que destruísse os primeiros organismos. Hoje, qualquer tentativa de aparecimento de uma nova vida seria instantaneamente aniquilada pelos atuais seres vivos. A vida queimou as pontes atrás de si.

Quando ocorreu aquela contaminação?

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Pelo menos a 3,5 bilhões de anos, visto que os mais antigos fósseis de bactérias, descobertos na Austrália, datam desse período. Em seguida, no interior das microgotas, o jogo das estruturas químicas conduziu progressivamente ao estabelecimento de um código genético rudimentar, depois à dupla hélice do DNA – este se impôs porque apresentava vantagens sobre o RNA, principalmente uma estabilidade maior. Mas como isso se deu? Os biólogos ainda não sabem. É um dos seus principais elos perdidos.

Será que algum designo, ou alguma lógica teria conduzido a natureza a inventar o DNA?

A natureza não “inventa” nada, não tem intenções; ela procede por eliminação. A vantagem do DNA é ter permitido,, mediante o jogo das mutações, uma variedade considerável de formas vivas. Com o tempo, o ambiente criou novas condições, novas necessidades. Os organismos que não foram capazes de se adaptar a elas acabaram eliminados. Os outros proliferaram. É o principio darwiniano da seleção natural.

Mas, se existem necessidades, não se pode dizer que o acaso participe dessa história?

Alguns pensam que a vida nasceu por acaso, por um arranjo acidental nos oceanos. O que faria da vida um acontecimento exclusivamente terrestre. Mas, para a maioria dos cientistas, a primazia é da necessidade. Nesse caso, todo planeta que contenha água e se encontre a uma distância ótima de uma estrela quente pode ter acumulado moléculas da mesma maneira que a terra. E estas, ao se tornarem mais complexas, desembocaram substancias químicas com seu meio etc. assim de necessidade em necessidade, a evolução química pode acabar resultando em seres vivos rudimentares.

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Então a vida em outros planetas também se basearia no DNA?

Provavelmente. O DNA se insere numa evolução química lógica do Universo.

Depois que apareceu o DNA, o que aconteceu?

As microgotas continuaram a aperfeiçoar seu metabolismo. Depois da fermentação, a forma mais primitiva de obtenção de energia, que se produz na ausência de oxigênio, surgiram a fotossíntese e a respiração. A primeira se baseia na clorofila; a segunda, na hemoglobina. O universo de uma é verde. O da outra, vermelho. Mas essas duas moléculas são praticamente idênticas e provavelmente originarias de um mesmo “ancestral químico”. O surgimento da fotossíntese encheu o ambiente de oxigênio – o que sem duvida fez surgir na alta atmosfera a famosa camada protetora de ozônio. Produziu-se então uma separação entre aqueles que obtinham energia diretamente a partir do Sol e aqueles que absorviam as substâncias e o oxigênio rejeitados pelos outros. É a espoleta da separação entre mundo animal e mundo vegetal.

Já? Num estágio tão primitivo?

Assim se acredita. A árvore da vida ramificou muito cedo. Depois das bactérias e das algas aparecem as células ais complexas, dotadas de um núcleo e de órgãos… ? duvida Segundo uma teoria muito recente. Tais células teriam resultado de simbioses: a célula vegetal, por exemplo, seria uma célula na qual teria ido viver uma alga – e assim teria constituído nela o cloroplasto. A célula animal com núcleo teria da mesma forma, acolhido uma bactéria – que nela viria a se transformar na mitocôndria, uma espécie de minicentral de produção de energia.

Uma lógica de associação, desta vez?

Sim. Pois chegou um momento em que nenhuma dessas células pôde evoluir sozinha. Os dejetos que elas, por assim dizer, cuspiam no ambiente as envenenavam: elas também conheceram a poluição. Seu modo de sobrevivência foi se associar em sistemas, o que oferecia a vantagem de diversificar o trabalho. Então elas se diferenciaram. Vê-se ainda esse fenômeno no caso do volvox, pequena célula independente munida de flagelos: num meio pobre em substâncias nutritivas, esses organismos secretam uma espécie de gel e se colam uns aos outros formando um colônia que pode alcançar vários milhares de espécimes. Então eles se deslocam todos na mesma direção, de maneira muito coordenada, formando uma única entidade. Talvez tenha sido uma lógica parecida que tornou possível o aparecimento dos primeiros seres multicelulares. Também a sexualidade teve seu papel: é um modo de fundir o DNA, portanto, de criar variedade. Depois, a árvore da vida continuou a se ramificar: os cogumelos, as algas multicelulares, as esponjas, os corais, os peixes, os insetos, os pássaros, os mamíferos…

… e o homem, enfim. O senhor … ? duvida

Sim, se considera que a sociedade humana forma com a biosfera (ou seja, a parte viva do planeta) um gigantesco organismo que vive e continua a evoluir. As invenções do cérebro humano serão agora os equivalentes das mutações.

Mas se está muito longe das primeiras gotas de vida.

Nem tanto. O DNA guarda na memória trações da evolução biológica. No curso de seu desenvolvimento, um feto revive rapidamente algumas etapas dessa evolução. Nosso cérebro, com suas três partes – , é igualmente o resultado de um espécie de sedimentação. E a composição química de nossos tecidos permanece muito semelhante à do meio orgânico há 4,5 bilhões de anos: cada uma de nossas células é um pedacinho do oceano primitivo do qual emergiu a vida. De fato, nosso corpo inteiro continua a contar a história de nossas origens.

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