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Meu escritório é nos Andes

O montanhista Max Kausch quer escalar os últimos picos virgens da cordilheira sul-americana. Para revelá-los ao mundo, registra seus avanços no Google Earth

Por Caio Vilela, da Cordilheira dos Andes
Atualizado em 22 jun 2017, 00h24 - Publicado em 21 jun 2017, 18h37

Escalando uma crista açoitada por rajadas de vento, o meio argentino, meio brasileiro, Maximo Kausch e a britânica Suzanne Imber dividem um feito inédito. Em 13 de outubro de 2016, a dupla alcança, pela primeira vez na história, o ponto culminante da Sierra de Aliste, 5.167 metros acima do nível do mar. O cenário ao redor é a paisagem inóspita da Puna do Atacama, planalto no sudeste do famoso deserto, onde um cinturão de montanhas com mais de 6.000 m marca a fronteira entre Chile e Argentina. Sob um céu intempestivo e temperaturas negativas, eles traçam a primeira via de escalada dessa montanha, equipados com crampons (solados metálicos dentados, anexados a botas para aderir à montanha), piquetas (picaretas de escalada) e um GPS.

Vizinhos dali, os picos Sierra Nevada, Tridente, Piedra Parada e pelo menos mais quatro montanhas fronteiriças permanecem intactas – e na mira da dupla.

Sentado em um mirante privilegiado, Max aponta para os nevados em volta, discorrendo sobre suas características e levantando hipóteses para viabilizar a chegada até o topo deles. “Há 104 cumes com mais de 6.000 m nos Andes. Todos já foram alcançados. Hoje, cerca de 70 montanhas com mais de 5.000 m permanecem virgens, muitas delas sem nome”, afirma o guia, carregado de familiaridade com o terreno.

Max e Suzanne alcançam o ponto culminante da Sierra de Aliste, pico nunca antes escalado e medido durante a expedição. (Caio Vilela/Reprodução)

Seu cálculo não foi feito ali, de cabeça nas nuvens, mas se fundamenta em uma pesquisa desenvolvida por ele desde 2011. O estudo, focado na análise do relevo dos Andes, mapeamento de rotas e medição de cumes, é feito justamente para traçar objetivos concretos para as investidas dele.

No topo da Aliste, os escaladores realizam uma rotina metódica de registros com GPS de alta precisão, o mesmo procedimento realizado em todos os picos. As informações coletadas alimentam as comunidades científica e esportiva por meio da publicação de relatos, imagens e coordenadas geográficas precisas, tudo online. “Um verdadeiro serviço voluntário de fomento ao montanhismo” – na opinião de Ronaldo Ribeiro, editor da revista National Geographic Brasil, um entusiasta do projeto.

Cascata do rio Juncalito, a 4.700 m de altitude, na aproximação ao pé da Sierra de Aliste. (Caio Vilela/Reprodução)

Não se foi o tempo da ladeira

Desde 2008, Maximo já realizou 12 expedições a porções remotas dos Andes. Em cada uma dessas empreitadas autônomas, seu objetivo foi subir e medir diversos picos durante uma mesma viagem. Nesse ritmo, colecionou 70 picos com mais de 6.000 m no Andes, além de registrar ascensões inéditas em quatro picos de mais de 5.000 m. Na maioria das expedições, viajou com parceiros, mas, por outras três vezes, encarou os Andes sozinho, equipado com uma motocicleta.

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A experiência de Max com as maiores montanhas do mundo, como Kilimanjaro, Elbrus e Aconcágua, o credencia a trabalhar guiando grupos de 20 ou mais pessoas a cumes famosos dos Andes e do Himalaia. Com o passar do tempo, sua reputação como guia rendeu apoio financeiro permanente.

Desde o início de 2016, seu projeto Unnamed 5000+ tem sido patrocinado pela SPOT Brasil e pela Mount Everest Foundation, um fundo ligado à Royal Geographic Society, do Reino Unido, destinado a projetos de cunho exploratório e científico. O nome do projeto é uma referência aos picos com mais de 5.000 m ainda não explorados.

Guanacos pastando a 4 mil metros de altitude, perto de Maricunga, fronteira entre Chile e Argentina. (Caio Vilela/Reprodução)

O lastro financeiro lhe permitiu somar forças com a física Suzanne Imber, 34 anos. Ela ajudou a aprofundar o viés científico das expedições. “Um de nossos objetivos é identificar elevações com independência topográfica suficiente para serem consideradas como uma única montanha”, ressalta.

Nascida e criada na Inglaterra, Suzie é exímia atleta e cientista: além de participar das equipes britânicas de lacrosse e de remo, é PhD em física, professora da Universidade de Leicester e colaboradora da Nasa em pesquisas sobre plasma espacial. Já esteve nos cumes do Aconcágua; no Monte McKinley, no Alasca; e no respeitado Ama Dablam, um pico vizinho ao Everest, no Nepal – conhecido por oferecer uma escalada técnica e cinematográfica. Foi neste último cenário que ela conheceu Max, em 2010.

Juntos, eles desenvolveram um método para analisar proeminências topográficas e seus graus de destaque na paisagem, permitindo identificar conjuntos de relevos independentes. “Nosso trabalho em campo é sistemático: a via de escalada é traçada no GPS conforme o progresso da ascensão, e os dados cadastrados automaticamente no Wikiloc – a Wikipedia das trilhas, que contém mais de 5,6 milhões de trajetos cadastrados – e no Google Earth. Para complementar, vistas de 360º são registradas em fotos e vídeo”, detalha Suzie.

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A pesquisa científica, somada à experiência em campo, levou-os a corrigir as altitudes de diversos cumes andinos, digamos, “secundários”, quando comparados a algumas das montanhas mais famosas da região – e já exaustivamente escaladas – como o San Francisco e o Ojos de Salado. As medidas desses cumes já haviam sidos calculadas pela primeira vez pelo francês Pierre Pissis (que dá nome à terceira montanha mais alta dos Andes), e depois por topógrafos militares de Argentina e Chile, nos anos 1930, durante a árdua missão de definir a extensa fronteira entre os dois países. Posteriormente, foram mapeados por sucessivas missões espaciais, porém nunca medidos in loco.

“Os dados produzidos por satélites são bastante úteis, porém imprecisos”, explica Max. “As imagens mais aproximadas têm 90 m de lado e não registram com precisão a forma de um acidente topográfico pontudo como a crista da Sierra de Aliste, por exemplo.” Quando envolve grandes massas de gelo (glaciares) numa encosta montanhosa a 60º de inclinação, por exemplo, o sinal enviado pelo satélite não volta à origem e se perde. Quando isso ocorre, o modelo digital gerado fica com uma lacuna no registro da topografia dessa região.

“No Peru, para se ter uma ideia, há montanhas como o Pucajirca, o Caraz, o Contrahierbas e outras que nenhuma missão topográfica espacial conseguiu medir com precisão. A única forma de saber se esses topos têm ou não mais de 6.000 m, é indo até lá”, ressalta Max.

Max, Jovani, Pedro e Suzie no cume da Sierra de Aliste, com a Puna ao fundo. (Caio Vilela/Reprodução)

Após tirar algumas fotos sobre a crista (chamada assim por causa do relevo do cume, semelhante a uma lâmina), a equipe inicia a descida do Aliste rumo ao refúgio de montanha da Laguna Santa Rosa, onde planejam passar a noite. Max e Suzie caminham acompanhados de outros dois andinistas: o geógrafo Pedro Hauck, parceiro de escalada de Max desde a adolescência, e o mecânico gaúcho Jovani Blume. Os parceiros prestam apoio logístico ao projeto. Além de acompanhar nas escaladas, eles viabilizam a aproximação à base das montanhas com dois veículos 4×4 equipados para funcionar sob o clima hostil. Pedro relata em detalhes cada etapa da expedição em seu blog, e em artigos publicados em sites especializados como o Alta Montanha. Jovani fornece suporte técnico aos carros, e opera ocasionais resgates.

Na metade do caminho, o grupo é castigado pela tempestade de vento anunciada nos boletins meteorológicos recebidos no telefone via satélite de Pedro. Após quatro horas de descida, os escaladores chegam ao acampamento pré-ataque (última parada antes de chegar ao cume), que se encontra devastado. As rajadas de 150 km/h rasgaram as barracas e carregaram boa parte da comida e dos equipamentos, que são avistados pela equipe rolando encosta abaixo. Correndo a favor do vento, Suzie e Pedro recuperam boa parte do prejuízo e se trancam no carro, sentindo as mãos dormentes sob -7 ºC.

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A viagem rumo ao abrigo de madeira que serve de base para a expedição, segue a bordo dos veículos tracionados. Rodando fora da estrada por mais de 100 km, olhos grudados no GPS, Pedro dirige atento sob a tempestade, até chegar a uma cabana de madeira. “Aqui na Puna do Atacama, onde a maior parte das restantes montanhas virgens se encontra, o isolamento geográfico é um dos maiores perigos”, adverte o geógrafo. “Se houver qualquer problema com os carros, estamos a centenas de quilômetros de qualquer sinal de civilização”, diz o mecânico Jovani. “Navegação, rastreamento e armazenamento de dados em tempo real via satélite são fundamentais”, diz Pedro, seguido por um riso nervoso e sincronizado do quarteto.

As últimas sete virgens

Sob um céu estrelado, os escaladores se preparam para o pernoite à margem da Laguna Santa Rosa, situada a 3.762 m de altitude. Dentro do refúgio, Maximo prepara um puchero – cozido andino de carne com legumes – em seu fogareiro, cantarolando clássicos da argentina Mercedes Sosa.

Os escaladores saboreiam o ensopado feito pelo líder e cozinheiro oficial da expedição, enquanto os ventos se intensificam do lado de fora, assoviando através de frestas das janelas de madeira e vidro. Alguns guardas florestais chilenos dividem o espaço do abrigo e, durante as conversas, revelam serem seguidores dos passos de Max e sua trupe no Google Earth.

Após o jantar, Max e Suzie retomam a pesquisa em um laptop alimentado de energia por meio de placas solares. Atentos a um conjunto de imagens em 3D, eles buscam padrões incomuns, que chamem atenção na textura do terreno visto de cima.

A partir dessa análise prévia, pontos específicos são marcados para futura checagem em campo. As pistas conduzem a descobertas arqueológicas que passaram a fazer parte da rotina dos escaladores. “Eventualmente encontramos pircas (ruínas incas) intactas durante as escaladas. No início do ano fotografamos um complexo conjunto de muros em um flanco do Cerro Lomas Coloradas, a 5.300 m. Devido à localização remota, a maioria desses sítios nunca foi escavada, e segue esperando por arqueólogos capazes de acessar esses achados”, relata Maximo, empolgado.

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Acampamento na base do vulcão Copiapó, com carros protegendo as barracas do vento, um dia antes da ascensão. (Caio Vilela/Reprodução)

Debruçados sobre o mapa, Pedro e Jovani planejam a aproximação ao próximo gigante da lista: o vulcão Copiapó, com 6.072 m de altitude e menos de dez ascensões registradas.

A ambição do grupo é movida pelo ineditismo de suas escolhas. Nenhum dos escaladores está preocupado em erguer bandeiras nos cumes. “Nosso apetite é por estar onde ninguém esteve. Escalar e mapear picos ainda pouco conhecidos. Bem distantes das multidões que superlotam as montanhas mais famosas”, reforça Suzie.

Ao fim da primavera de 2016, Max e companhia alcançaram 12 cumes na região da Puna – quatro desses picos jamais haviam sido escalados. Entre eles, o de uma montanha ainda sem nome, com 5.845 m, que era, até então, o cume não escalado mais alto dos Andes.

A jornada de volta para o Brasil é feita em quatro dias ininterruptos de estrada após 50 dias nas alturas. Morro abaixo, o time de escaladores traça planos ainda mais ambiciosos para o futuro. Se tudo seguir conforme o planejado, ao realizar mais uma temporada no Atacama, prevista para o segundo semestre de 2017, Maximo terá mapeado e registrado a primeira ascensão em sete montanhas virgens. São as últimas com altitude acima de 6.000 m ainda inexploradas na região. Com o feito, Max Kausch entrará para o Guinness com duas marcas: será o primeiro escalador a subir todos os picos com mais de 6.000 m da Argentina, do Chile e do Peru; além disso, se tornará o único a alcançar todos os 104 picos com mais de 6.000 m dos Andes. Um recorde à altura da cordilheira.

 

Cartógrafo dos cumes


Nas horas vagas, Max escala picos virgens nos Andes. Seu ganha-pão é guiar expedições a cumes sde até 8.000 m, nos Andes e no Himalaia. Seus realtos de escalada estão nos sites Alta Montanha e Gente de Montanha.

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