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Narcisismo: A hora das Estrelas

Existe gente que se ama tanto, mas tanto, que se acha um sol, em volta do qual tudo deve girar. A isso os psicólogos chamam de narcisismo -- um modo de ser que parece estar na moda.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h31 - Publicado em 28 fev 1989, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Já virou lugar comum dizer que, se nos anos 60 imperava o um-por-todos, vinte anos depois passou a predominar a lei do cada-um-por-si. A chave dessa mudança estaria na redescoberta da individualidade, em prejuízo das preocupações políticas e sociais que foram a marca do comportamento de duas décadas atrás. É possível que exista um pouco de sociologia de porta de bar nesse diagnóstico. Mas é inegável que a valorização do eu vem sendo a mais recente verdade da chamada cultura de massa: a palavra da moda é narcisismo – o amor a si mesmo sobre todas as coisas.

A saudável auto-estima que cada qual deve sentir estaria cedendo lugar a um ofuscante, exclusivista culto pelo próprio umbigo, uma situação em que todos competiriam para ser a estrela mais luminosa do pedaço. Uma pesquisa aponta que, na década passada, um de cada dez livros nas listas dos mais vendidos tratava de temas relacionados a narcisismo. Aliás, temas tão diversos quanto autoconhecimento e sucesso, ginástica e etiqueta – em princípio, tudo o que pode ajudar no desempenho social atrai o narcisista, um aprendiz sedento de saber mais para aparentar melhor. Atualmente, livros sobre esses assuntos ocupam o dobro do espaço nas listas dos best-sellers, indicando que, mesmo se a valorização do eu não aumentou desde então, ao menos devem existir muito mais narcisistas comparando livros. E se suspeita que, entre eles, os jovens formam o maior contingente.

“A nova geração é narcisista”, denuncia a jornalista de TV Marília Gabriela, 40 anos, mãe de um rapaz de 17. “São os jovens que chegam na festa e dançam sozinhos”, tenta definir. Esse distanciamento do outro é, de fato uma característica de quem se preocupa mais consigo mesmo do que com o mundo a sua volta. Foi em 1914 que o psicanalista austríaco Sigmund Freud escreveu pela primeira vez sobre esse comportamento a que chamou de narcisismo, inspirado no mito grego do jovem que se apaixona pela própria imagem espelhada num lago.

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A rigor, Freud descreveu como narcisista uma fase do desenvolvimento da personalidade correspondente aos primeiros anos de vida, quando a criança se relaciona com o mundo como se ela estivesse no centro de tudo, pois basta chorar que logo chega alguém para niná-la, aliviar-lhe a dor, matar sua fome. Para ela, não existe, então, o outro, que é confundido com uma parte de si mesma – uma resposta “sua” às suas próprias manifestações de desejo. A criança só ultrapassa essa fase quando começa a amar alguém – no início, a figura paterna, no caso das meninas, ou a materna, no dos meninos.

Freud dizia ainda que a criança começa então a investir sua energia vital, ou libido, para fora de si. Em pessoas consideradas normais, essa energia permanecerá em constante movimento pela vida inteira, ora investida no próprio indivíduo – instantes de narcisismo que todos têm portanto -, ora investida no outro. Uma explicação para o possível aumento do narcisismo na nova geração é que esta cresceu mais exposta aos meios de comunicação, divulgadores dos modismos que um narciso que se preza segue religiosamente. Também a vida familiar mudou bastante e as crianças têm menos contato com os pais. “Pode ser que, por causa da ausência dos pais ou por problemas familiares, a criança não reconhece no outro o objetivo do seu amor, que passa então a ser dedicado a si própria”, supõe a psicóloga paulista Elisabete Della Rosa Pimentel. O narcisismo também poderia ser provocado por uma frustração tão forte que faz a vítima buscar refúgio num mecanismo primitivo, que já lhe proporcionou muito prazer no passado – o amor irrestrito por si mesmo. Para os psicanalistas, o narcisismo só é considerado doentio quando não há equilíbrio entre investir no outro, predominando o primeiro.

As psicoses são exemplos extremos, pois aí a pessoa não consegue estabelecer contato com os outros – estes como que existem apenas para fazer figuração num teatro escrito, dirigido e representado por ela própria. A paranóia, mais conhecida como mania de perseguição misturada a delírios de grandeza, também é uma espécie de narcisismo desvairado, porque o paranóico se acha tão importante a ponto de ter a ilusão de que todos o observam, todos só falam nele e tudo o que desejam é prejudicá-lo, ou seja, volta à condição infantil de centro do mundo. Em todas as pessoas, porém, há momentos em que o amor próprio predomina, e isso nem sempre tem a ver com a vaidade – o sentimento mais comumente ligado à idéia que as pessoas fazem de narcisismo.

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“O narcisismo moderado pode até ser fundamental para a preservação do equilíbrio psíquico”, esclarece Elisabete Pimentel. Quando alguém sofre um baque emocional, a primeira reação tende a ser fechar-se como uma concha para lamber as próprias feridas e, mal ou bem, resolver o que fazer em seguida. Esses momentos narcisistas – porque a libido está voltada para dentro – podem variar da mera introspecção à mais cava depressão. Desse ponto de vista, uma lista dos campeões de narcisismo não poderia deixar de lado o escritor francês Marcel Proust (1871-1922), que consumiu anos de sua vida refletindo sobre o tempo perdido, uma busca que resultou nos sete volumes de uma das maiores obras literárias do século.

O narcisismo também aparece na paixão: o início de um namoro, afinal, sempre é uma troca de afinidades, quando um parece refletir os gostos do outro. A diferença entre os narcisistas e os demais é que aqueles deixam de amar quando o cotidiano denuncia as pequenas diferenças; pensam então que foi tudo engano e continuam a busca interminável do príncipe encantado ou da mulher nota dez – alguém, em suma, feito à própria imagem e semelhança. Para os psicólogos, essas manifestações são mais comuns quando faltam condições adequadas de vida e escasseiam as perspectivas de progresso. Em situações sociais adversas, voltar-se para si pode ser um modo de defender-se de novas frustrações: um sintoma típico é o desinteresse pela política, a arena onde se decidem os destinos coletivos. A antropóloga Liana Trindade, da Universidade de São Paulo, observa que efetivamente os obstáculos sociais, assim como a massificação típica das sociedades modernas, fazem aumentar o narcisismo. Ela o compara ao recurso à magia: “Do mesmo modo que o bebê age como se pudesse manipular o ambiente por meio de seus atos, na magia há a crença de dominar o outro por meio de rituais”.

Talvez por isso, também na população brasileira, que já não consegue planejar a vida para o dia seguinte, parece aumentar a procura de toda sorte de jogos adivinhatórios, como búzios e tarô.

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Mas não é apenas o interesse pelo oculto que flagra o narcisismo dos últimos anos. Ele fica evidenciado também por algo aparentemente tão distante daquilo como a explosão das academias de ginástica. Para Mauro Guiselini, diretor-técnico da Companhia Athletica, um dos muitos templos paulistanos do culto à forma física, “o aspecto mais positivo desse voltar-se a si é que o homem recuperou a consciência do corpo”, pois, para ele, não há amor próprio sem amor ao próprio físico – assim como os gregos acreditavam que belos espíritos só habitavam belas moradas.

Essa preocupação com o corpo, que a princípio surgia apenas diante do espelho de cada um, agora se reflete ainda em manifestações coletivas pela saúde, como as recentes campanhas contra o fumo e a poluição. Mauro, contudo, não nega que existem os exagerados – aqueles que têm tanto prazer em cultivar suas formas que acabam perdendo o interesse pelo que lhes é diferente – o sexo oposto, por exemplo. A extrema vaidade física, aliás, foi a primeira definição de narcisismo dada pelo médico alemão Paul Näcke em 1899. Ele a usava para descrever aqueles que se excitavam diante da própria imagem no espelho. Até hoje, passado quase um século, surgem ainda definições de comportamentos rotulados de narcisistas.

“Por isso é raro encontrar quem admita merecer o adjetivo ou saiba indicar alguém merecedor”, justifica o psicanalista carioca Eduardo Mascarenhas – que as más-línguas dizem ser, ele próprio, um narcisista de marca. “Na verdade as pessoas se sentem inseguras para falar do assunto, quando não sabem qual das várias significações para narcisismo está na mente do interlocutor”. Narcisismo, por exemplo, talvez seja quem determine que todos devam se comportar de acordo com suas idéias e sua vontade, por não conseguir se imaginar na pele de outrem, não perceber o que os outros pensam ou sentem; sofre, portanto, de uma ilusão de onipotência capaz de transformá-lo em um ditador – em casa, na escola, no trabalho ou, se não houver um sistema eficiente de contrapesos, no país. Por aí pode-se ver que o narcisismo, longe de ser uma característica confinada ao íntimo de cada qual, pode interferir poderosamente nas relações entre as pessoas, embora essa interferência permaneça quase sempre mascarada.

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São narcisistas também aqueles que julgam suas próprias idéias o máximo. Os políticos, muitas vezes, servem de legenda para esse perfil. “Todos querem a vitória e a permanência no poder. E para isso têm de fazer mais do que os outros, aparecer mais, prometer o melhor”, reconhece o senador paulista e presidenciável Mário Covas, do PSDB. O problema, segundo ele, aparece quando a imagem não corresponde ao real. “Dai o político dispara acusações pessoais aos concorrentes, chamando a atenção para si, não por suas virtudes, mas a partir dos defeitos alheios”. Os narcisistas que se acham o máximo também fazem tudo para evitar maiores decepções. O mecanismo usado pela famosíssima diva do cinema dos anos 30, Greta Garbo – que se isolou do mundo no auge da carreira -, talvez não seja, guardadas as proporções, muito diferente do da moça que, numa reunião, fica repentinamente calada após a chegada de uma mulher bonita. É que esses narcisos não entram em disputa, para permanecerem invictos na sua suposta superioridade.

Sinônimo de narcisista é igualmente o conquistador, aquele que acha que com um único olhar terá o mundo a seus pés. Inevitável lembrar o roqueiro do grupo RPM, Paulo Ricardo, 26 anos, famoso por um tal “olhar 43”, presente na letra de sua canção mais popular e que ele próprio não cansa de disparar do palco. “É preciso se achar o bom mesmo. Além disso, o público gosta de ídolos”.

Os artistas, de modo geral, levam a fama de narcisistas. “Eles têm a insegurança comum a qualquer pessoa, que é o medo de não ser amado”, teoriza Roberto Talma, diretor de novelas da Rede Globo. “Mas esse sentimento pode se acentuar, exacerbando o narcisismo, porque afinal são julgados por milhões de pessoas”. Beatriz Segall que o diga. Há poucos meses, sua personagem Odete Reutmann, na novela Vale Tudo, uma egocêntrica típica, tornou-se uma verdadeira onda nacional, despertando ódios e amores.

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A propósito da relação entre fama e narcisismo, a atriz não finge modéstia: “Não deixo de gozar o prazer do sucesso. Mas não perco de vista que é apenas um momento, importando somente o que resta – o prestígio”. Aí Beatriz demonstra orgulho, um sentimento que, ao contrário da vaidade – qualidade do que é vão – expressa uma estima sedimentada nas ações que realiza. É nesse amor pelo que faz que o autodenominado criador de arte (“Odeio a palavra produtor”) Fernando Bicudo, 42 anos, ex-diretor do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, define o novo narcisismo que, na sua opinião, dominará a cena nos próximos anos: “As pessoas julgarão os problemas do mundo como sendo seus também”. Exemplo de novo narcisista? Bicudo aponta o cantor inglês Sting, belo, bem-sucedido, e que vai à luta pelos direitos humanos.

Para saber mais:

Freud explicou

(SUPER número 3, ano 1)

Um amor impossível

A mais antiga versão do mito grego de Narciso – que inspirou a teoria freudiana do narcisismo – é atribuída ao poeta romano Ovídio (43 a.C.-17 d.C.). Segundo ele, Narciso nasceu depois que a ninfa Liríope, sua mãe, se banhou nas águas do rio Zéfiro. Tão belo era o menino que a mãe ficou preocupada, pois os deuses não admitiam que um mortal fosse mais bonito do que eles, habitantes do Olimpo. Liríope ouviu então de um oráculo que o filho viveria enquanto não visse a si próprio.

Certo dia, sentindo sede, Narciso se aproxima de um lago. Mas, ao deparar na água com a própria imagem, que não sabia ser sua, sentiu irresistível paixão. Eco, uma ninfa que o seguia, ainda tentou avisá-lo de que aquele rosto era o seu mesmo. Foi em vão, porque só conseguia repetir as últimas palavras do que ouvia, vítima também ela da ira dos deuses. E Narciso, não conseguindo se afastar da imagem refletida, definha de fome e sede. Ao perceber, enfim, que aquele era o seu próprio rosto, chora ao dar-se conta de que jamais poderia abraçar o objeto amado. Suas lágrimas turvaram a água. Narciso achou que a imagem estava fugindo e morreu de desespero.

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