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Os donos do mundo

Escritor americano revela com histórias espetaculares que os parasitas não são caronistas insignificantes - eles mandam no planeta. Animais complexos, como os peixes e as aves - e até você -, obedecem às ordens desses minúsculos tiranos

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h48 - Publicado em 31 out 2000, 22h00

Carl Zimmer

O manguezal de Carpinteria, na costa da Califórnia, está repleto de vida – são milhares de crustáceos, moluscos, peixes e aves alimentando-se uns dos outros. Do alto de um morro, o biólogo marinho Kevin Lafferty, da Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, Estados Unidos, observa a cena. O drama que ele enxerga é invisível a olhos destreinados. Mas, para Lafferty, o verdadeiro espetáculo do manguezal está dentro dos animais, na vida de seus habitantes microscópicos – os parasitas.

Nesse momento, uma ave agarra um caranguejo que sai da toca. “Acabou de se contaminar”, diz Lafferty. Ele olha para os caramujos. “Mais de 40% deles estão infectados”, afirma. “Na verdade, não são mais caramujos. São parasitas disfarçados.” Aponta para a constelação branca de fezes de aves ao longo da margem do rio. “O que você vê são apenas pacotes de ovos de vermes.”

Todas as espécies de vida livre no planeta têm pelo menos um tipo de parasita em seu interior e muitas, inclusive os seres humanos, têm vários. Um único sapo pode carregar nematóides nos ouvidos, filárias nas veias e fascíolas nos rins, bexiga e intestino. Um papagaio mexicano acomoda 30 espécies diferentes de ácaros só nas penas. Calcula-se que o número de parasitas – que podem ser protozoários, fungos, plantas, vírus, bactérias, insetos, platelmintos ou crustáceos – seja quatro vezes maior que o de não-parasitas.

A maioria das pesquisas realizadas no último século sobre o assunto estava ligada à luta contra os microorganismos causadores de doenças humanas, como a malária, a Aids e a tuberculose. Tirando eles, os parasitas vinham sendo ignorados. De fato, os cientistas os têm tratado com desprezo, considerando-os reles caronistas na estrada da vida. Mas pesquisas recentes mostram que eles talvez sejam tão importantes para os ecossistemas quanto os predadores no topo da cadeia alimentar. Alguns castram seus hospedeiros e passam a comandá-los, outros desligam o sistema imunológico de animais. Hoje, vários cientistas acreditam que os parasitas são uma força dominante – talvez a mais importante – da evolução. Meu livro Parasite Rex está cheio de histórias que comprovam essa tese ,Conto três das mais impressionantes, a seguir.

Lobo em pele de caranguejo

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A Sacculina carcini é uma craca. À primeira vista, essa microscópica gota com perninhas não impõe respeito. Mas os biólogos estão percebendo que ela é uma usina de energia disfarçada. A saculina começa a vida como uma larva nadando no oceano. Até que a fêmea da espécie fareja, com os órgãos sensoriais das pernas, o cheiro do caranguejo. Ela vai dançando pela água até pousar na carapaça dele. Depois, sobe por um dos braços do crustáceo enquanto ele se mexe em pânico. Até que encontra, no esqueleto externo da vítima, um orifício por onde passa um pêlo. A saculina fêmea enfia, então, uma agulha oca no orifício e injeta com ela um líquido com algumas células. Na verdade, essas células são o parasita. O resto fica do lado de fora e é abandonado como uma casca vazia. Lá dentro, sobra apenas uma lesma microscópica.

A lesma penetra no caranguejo e forma um nódulo na parte de baixo da casca. Daí começa a espalhar raízes, parecidas com as das plantas, que se estendem por todo o corpo do hospedeiro. Coberta com filamentos semelhantes aos que revestem o intestino humano, essas raízes absorvem os nutrientes dissolvidos no sangue do caranguejo. Ou seja, roubam dele a comida. Por incrível que pareça, essa invasão não provoca nenhuma resposta imunológica. O crustáceo continua a passear pela rebentação tranqüilamente, alimentando o parasita com mariscos e mexilhões.

Com isso, a saculina fêmea cresce. O nódulo na casca vira uma bolota cada vez maior até que abre-se um buraco nela do tamanho da ponta de um alfinete. Um dia, uma larva macho de saculina aterrissa no caranguejo e encontra a abertura na sua carapaça. Como a passagem é pequena demais para ele, o macho faz como a fêmea: abandona parte do corpo. O que entra no caranguejo é um torpedo espinhoso, marrom avermelhado, 50 000 vezes menor que 1 centímetro. Ele penetra num canal pulsante e, depois de dez horas, vai dar dentro do corpo da fêmea. Lá ele se funde com a bolsa visceral dela e começa a soltar esperma. Cada saculina fêmea tem duas bolsas dessas e pode carregar dois machos até a morte. Os parasitas, então, se reproduzem fabricando milhares de larvas por semana.

Aos poucos, o caranguejo se transforma numa criatura que existe só para servir ao parasita. Não consegue mais fazer coisas que gastam energia – trocar de casca, crescer, recuperar garras perdidas, se reproduzir. Em resumo, só faz o que interessa à saculina: comer. A craca, então, toma emprestada a bolsa que a fêmea do caranguejo usa para carregar os futuros filhotes e guarda lá seus ovos. Se o bicho infestado for um macho, não faz mal. A craca muda o formato do abdome dele, tornando-o capaz de transportar ovos.

A vítima cuida inocentemente da bolsa, livrando-a de algas e fungos, até que as larvas chocam e precisam se soltar. O caranguejo, então, acha uma pedra alta e começa a mexer-se para liberá-los. Depois abana maternalmente as garras para produzir uma corrente que leve os filhotes do parasita para um lugar seguro. Ou seja: o caranguejo solta na água uma nova geração de parasitas que vão contaminar outros caranguejos…

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Vodu na cabeça da formiga

A saculina tem um ciclo de vida simples – passa apenas de um caranguejo para outro. Outros parasitas passeiam por várias espécies. Muitos têm um controle extraordinário sobre os hospedeiros, mudando o aspecto ou o cheiro do animal para que ele atraia um predador. Podem até alterar seu comportamento e obrigá-lo a entrar no caminho do hospedeiro seguinte.

Um tipo de verme – o Dicrocoelium dendriticum, do gênero das fascíolas (veja o ciclo acima) –, quando adulto, se aloja no gado e em outros ruminantes. Caramujos famintos engolem as fezes das vacas e acabam chocando os ovos da fascíola. Os parasitas fazem túneis na parede do intestino do caramujo e se instalam na glândula digestiva. Lá, eles dão à luz sua cria, que vai para a superfície do corpo do molusco. Para tentar se defender, o caramujo envolve o parasita com bolas de muco e as cospe na grama.

É a hora das formigas, que engolem o muco com centenas de fascíolas perfurantes. Os parasitas penetram no intestino do inseto e perambulam por seu corpo. A maioria deles vai morar no abdome da formiga, onde formam cistos, mas um ou dois se alojam na cabeça da vítima. Lá acontece o mais assustador: os parasitas fazem um vodu no hospedeiro. Eles ficam numa posição tal que o cérebro comanda o inseto para, quando a tarde cair e o ar esfriar, ele se afastar de suas colegas e subir em folhas de grama. Presas nas pontas das folhas, sem poder controlar a própria vontade, as formigas esperam ser devoradas por uma vaca ou outro animal herbívoro.

Se a formiga passar a noite inteira sem ser comida e o sol se levantar, as fascíolas deixam-na abandonar a folha e voltar para o formigueiro. Durante o dia todo, ela se comporta como um inseto normal. É que o sol direto mataria o hospedeiro, e o parasita junto com ele. No fim da tarde, quando volta a escuridão, a pobre formiga se transforma de novo em zumbi e vai para cima da folha. Até que um dia ela consegue ser devorada. E fecha-se o ciclo. Lá está a fascíola de novo no estômago de uma vaca.

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Os cientistas vêm descobrindo um número cada vez maior de parasitas com mecanismos complexos como esse e estão chegando a uma conclusão alarmante: talvez eles sejam uma das forças motrizes mais poderosas da natureza. Muito mais do que se imaginava.

O dono do mangue

No manguezal de Carpinteria, aquele descrito no começo da matéria, Kevin Lafferty estuda como os parasitas podem afetar a ecologia de uma região inteira. Ele descobriu que uma única espécie de fascíola – a Euhaplorchis californiensis (veja o ciclo na página ao lado) – tem um papel crítico na organização do equilíbrio natural do mangue.

Aves marinhas soltam ovos da californiensis em suas fezes. Os excrementos acabam comidos por caramujos. Depois, os ovos chocam e as fascíolas resultantes castram o molusco – isso mesmo, elas desligam o seu sistema reprodutor. Em seguida, dão origem a uma prole, que deixa o hospedeiro e começa a explorar o manguezal em busca da próxima vítima, um peixe chamado killifish-da-Califórnia. Quando o encontram, as larvas se prendem às suas guelras, depois nadam pelas veias até o cérebro. Lá se instalam, formando uma camada fina de uma gosma parecida com caviar. Os parasitas, então, esperam que o peixe seja comido por uma ave marinha e retornam ao intestino de onde partiram.

Em sua pesquisa, Lafferty tentou responder a uma pergunta: será que Carpinteria seria a mesma sem as fascíolas? Começou examinando os caramujos. Geneticamente, os caramujos infectados estão mortos, porque não podem mais se reproduzir – para a evolução, só contam aqueles indivíduos capazes de passar os genes para a frente. Mesmo assim, eles continuam comendo algas para alimentar as fascíolas que carregam. Isso os coloca em concorrência direta com os caramujos não infectados. Essa competição é tão dura que faz com que falte comida para os moluscos saudáveis e que eles tenham dificuldade para se reproduzir. Lafferty descobriu que, sem as fascíolas, a população de caramujos seria quase o dobro. Isso reduziria o tapete de algas e faria com que a população dos peixes que comem caramujos explodisse. Ou seja, a simples ausência de um verme desequilibraria todo o ecossistema.

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A seguir Lafferty estudou o killifish. À primeira vista, não havia indícios de que as fascíolas prejudicassem o peixe: elas sequer acionam seu sistema imunológico. Mas o biólogo marinho desconfiou que as fascíolas no cérebro estavam num lugar muito suspeito. Para tirar a dúvida, pegou 42 peixes do manguezal, colocou-os num aquário no laboratório e deu a Kimo Morris, seu aluno, a tarefa de ficar de olho neles. Morris observava atentamente cada peixe durante meia hora, anotando seus movimentos. Percebeu que muitas vezes eles se contorciam mostrando a barriga, nadavam de lado e chegavam perto da superfície – comportamentos perigosos se houver alguma ave por perto procurando comida. Depois de cada observação, Morris tirava o bicho do aquário e o dissecava para ver se o cérebro estava coberto pelo “caviar”.

Quando foram checar os dados, Lafferty e Morris mataram a charada: nos peixes colonizados por parasitas, aqueles comportamentos arriscados eram quatro vezes mais comuns do que nos saudáveis. Ou seja, as fascíolas no cérebro estavam interferindo nos impulsos nervosos e forçando o peixe a se expor ao predador, para assim fechar seu ciclo.

Os cientistas, então, colocaram peixes infectados e saudáveis em cercados. Após três semanas, fizeram as contas. O resultado foi estarrecedor: a chance de os peixes com parasitas virarem almoço de ave era 30 vezes maior do que a dos normais. Predadores como as aves costumam tomar cuidado com o que comem. Por que, então, elas escolhem peixes que transmitem um parasita que suga a energia do hospedeiro? Porque isso é mais do que compensado pelos benefícios que eles trazem – tornam muito mais fácil encontrar alimento.

As conseqüências do resultado surpreenderam os cientistas. “Será que teríamos tantas aves assim se fosse 30 vezes mais difícil pescar?”, pergunta o biólogo marinho Armand Kuris, também da Universidade da Califórnia. “Os parasitas não só modificam comportamentos individuais. Talvez comandem grande parte da ecologia das aves .”

O tipo de fascíola que Lafferty estudou é apenas um entre muitos parasitas. Cada ecossistema da Terra tem um imenso número deles e todos exercem um controle enorme sobre seus hospedeiros, dando-lhes doenças, castrando-os ou alterando seu comportamento. Cientistas como Lafferty estão apenas começando a descobrir o poder exato desses habitantes ocultos, mas a sua pesquisa revoluciona nossa compreensão da Biologia.

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Quando Copérnico tirou a Terra do centro do universo e Darwin tirou do homem o privilégio da semelhança divina, continuamos pelo menos a sonhar que estávamos acima dos outros animais. Mas somos apenas uma coleção de células trabalhando juntas, cuja harmonia é mantida por sinais químicos. Se um organismo, por mais insignificante, é capaz de controlar esses sinais, pode nos escravizar. A conclusão é inescapável: os parasitas dominam o mundo.

Matéria adaptada do livro Parasite Rex, de Carl Zimmer, publicado nos EUA em 2000 pela Editora Free Press, do grupo Simon & Schuster. Zimmer, autor de À Beira D’Água, é escritor especializado em evolução

Inseto zumbi

Verme põe formiga na boca da vaca

1. O Dicrocoelium dendriticum vive no fígado da vaca e solta seus ovos com as fezes dela

2. O caramujo come as fezes com os ovos. Os parasitas nascem e são cuspidos pelo molusco numa bola de muco

3. Uma formiga come o muco com o verme. Ele vai até o cérebro e comanda a formiga para subir numa folha de grama, onde acaba comida por uma vaca

Peixe suicida

O killifish infectado se exibe para o predador

1. O Euhaplorchis californiensis bota os ovos no intestino de uma ave marinha, que os elimina quando defeca

2. Um caramujo do manguezal come os ovos e os parasitas crescem dentro dele. Depois saem e infectam um peixe chamado killifish-da-Califórnia

3. O verme vai para o cérebro do peixe e o faz exibir-se para aves predadoras. O killifish acaba devorado e a ave, contaminada

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