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Quem precisa do genoma?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 16 Maio 2018, 13h18 - Publicado em 9 dez 2004, 22h00

Felipe Bandoni de Oliveira*

No curso de biologia da USP, tradicionalmente os veteranos dão uma aula inaugural repleta de bobagens para receber os calouros. Este ano aceitei, com muita honra, o convite para ser o professor dessa “aula-trote”. Um dos tópicos foi a “Genética de aves de altitude”. Essa suposta linha de pesquisa teria como objetivo o melhoramento genético de urubus para obter uma espécie que não voasse tão alto, evitando assim o choque com aviões.

Foi aí, então, que um dos calouros perguntou: “Se eu estou entendendo”, disse ele, “vocês querem fazer melhoramento genético de urubus.” “Isso mesmo”, respondi. “Mas não seria mais fácil”, retrucou, “buscar alguma solução nos aviões para que os urubus não entrem nas turbinas?” Como não podia dar o braço a torcer, respondi que os engenheiros não tinham uma solução aerodinamicamente viável e, como o problema persistia, os biólogos entraram em ação.

Trotes à parte, no dia seguinte fui surpreendido pela notícia de que cientistas brasileiros estão sendo festejados por terem identificado genes do verme Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose, que poderiam servir como vacina contra essa doença. Conforme o que foi divulgado, cobaias vacinadas retêm 50% a menos de vermes e, como convém às pesquisas de destaque, o resultado acabava de ser publicado em renomada revista internacional, e a devida patente dos genes já estava sendo requerida nos EUA.

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A pesquisa mereceu atenção sobretudo porque a doença, conhecida também como barriga d’água, atinge 10 milhões de pessoas só no Brasil. É típica de países subdesenvolvidos e de locais sem saneamento básico, pois o verme chega ao corpo humano após o contato com as chamadas “lagoas de coceira”, onde vivem os caramujos que abrigam o verme.

O trabalho baseou-se no seqüenciamento do genoma do Schistosoma e consumiu milhões de dólares dentro e fora do Brasil. Ele, contudo, parece não ter como objetivo principal erradicar a doença, e, em certa medida, segue o mesmo raciocínio absurdo do melhoramento genético de urubus. Não seria mais fácil investir em outro ponto?

Sendo a doença um problema de saneamento, não seria mais fácil investir no tratamento da água? Ainda que isso não fosse possível, não seria mais fácil esclarecer a população quanto à relação de causa e efeito entre nadar em lagoas de coceira e ficar barrigudo? Não valeria a pena estudar maneiras de como reduzir as populações de caramujos, de maneira parecida com o que é feito com o mosquito transmissor da dengue? Há muito tempo existem pessoas trabalhando nessas áreas, mas seu financiamento é infinitesimal quando comparado ao dos projetos que envolvem seqüenciamento.

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Isso mostra que a motivação maior de alguns cientistas não é erradicar a doença, mas sim fazer a pesquisa da moda, publicar artigos, fazer uma carreira brilhante resolvendo problemas que não existem. Poder-se-ia argumentar que se trata de pesquisa básica, em que estão sendo desenvolvidas técnicas que podem lançar luz nas teorias da biologia. Entretanto, nem esse ponto de vista é aceitável, pois o seqüenciamento é meramente uma técnica, que em boa parte pode ser executada por qualquer pessoa bem treinada e na qual não deveríamos desperdiçar nossos graduandos e pós-graduandos. Estes deveriam pensar em problemas reais e não apenas em publicar artigos e fazer carreira com pesquisas sem objetivo.

Mas o pior de toda a história é que as agências de fomento à pesquisa, como CNPq, Capes e Fapesp, entraram nessa onda: projetos que incluem os termos “genoma” ou “seqüenciamento” parecem ter chances maiores de conseguir financiamento, mesmo que seus objetivos não sejam muito claros. Esse tipo de pesquisa incrementa os “indicadores científicos” do Brasil, como número de doutores “formados”, artigos publicados etc. Mas nem sempre atende aos interesses do país.

E a imprensa tem sido pouco crítica em relação a essa situação. O sensacionalismo impera, decifrar o genoma é a panacéia. Apesar de muita coisa seqüenciada, poucas são as soluções teóricas ou aplicadas. Será que decifrar genomas é o caminho para os cientistas tupiniquins?

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* Mestre em biologia e professor do ensino fundamental

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