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Uma estrela na linhagem humana: a descoberta do Homo naledi

Ele foi encontrado na África do Sul e preenche uma das muitas lacunas existentes na nossa árvore familiar. A cada passo dado em direção ao passado, fica mais clara a nossa evolução - e mais confusa também.

Por Camila Almeida
Atualizado em 4 nov 2016, 19h01 - Publicado em 6 nov 2015, 16h15

Na-le-dí. “A palavra se desenrola de um jeito bom da língua”, diz o geólogo Paul Dirks, com a paixão digna de um romance. Significa estrela, no africano sesotho. O batismo faz alusão à caverna Estrela Nascente, no Berço da Humanidade, famoso sítio arqueológico da África do Sul a cerca de 50 quilômetros de Joanesburgo. A região ganhou esse nome porque existem cada vez mais indícios de que, ali, viveu boa parte dos nossos ancestrais. Há vários registros da passagem de hominídeos por lá, desde a metade do século 20. Em setembro, ficamos sabendo que o Homo naledi foi um deles. A nova espécie acaba de entrar para o clube do gênero humano, ao qual nós, sapiens, também pertencemos. Só que com o privilégio de sermos os únicos viventes nestes tempos. Pelo menos por enquanto.

Paul Dirks, da Universidade James Cook, foi o responsável por fazer o mapeamento geológico da caverna e, especialmente, da Câmara das Estrelas (Dinaledi Chamber), local exato onde o novo hominídeo foi encontrado. Foram coletados cerca de 1.550 ossos do Homo naledi. Crânios, costelas, vértebras, dentes. Esse número foi suficiente para reconstruir o esqueleto de pelo menos 15 indivíduos; e contando, porque o potencial das escavações na câmara está longe de ser esgotado.

Um mapa geológico funciona como uma certidão de evolução, onde são catalogadas todas as rochas e os sedimentos ali presentes. E é a partir desse mapa que nascem as hipóteses de como os hominídeos foram parar naquele local – um dos maiores mistérios a serem desvendados. “Precisamos explicar por que tantos indivíduos naledi entraram nessa câmara isolada e distante, por uma rota difícil, no escuro. E eles entraram inteiros. Não há evidências de traumas, canibalismo ou do ataque de carnívoros”, conta Dirks. “Os sedimentos da câmara são distintos dos do resto da caverna, então eles não foram carregados pela água até ali. Também não há evidências de habitação.”

Até agora, existem apenas possibilidades. Uma opção é que os naledi tenham ido até ali para depositar seus mortos. Outra é que eles tenham sido levados até lá e tenham acabado presos numa emboscada. Um jeito de testar essas possibilidades é avaliar a idade dos indivíduos. Se o que aconteceu foi uma morte em massa, por eles terem ficado presos, é mais provável que tenham todos idades semelhantes. Se a câmara funcionava como cemitério, podem existir também idosos e crianças.

O problema é que isso envolve outro mistério: ainda não é possível precisar a idade de ninguém, nem há quantos milhares (ou milhões) de anos eles viveram. “Nós vamos ter que voltar para a caverna para recolher mais material para datação. O material que temos não é ósseo, são sedimentos”, afirmou o geólogo. Fazer a datação é absolutamente urgente e, para isso, é necessário recolher substâncias radioativas, como o urânio. Com elas, é possível determinar a idade do material (do mesmo jeito que acontece com o carbono 14, presente nos ossos, mas que só é confiável para amostras de até 70 mil anos).

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Toda coleta dos fósseis é liderada pelo paleoantropólogo Lee Berger, da Universidade de Witwatersrand (Wits), na África do Sul. Ele foi quem organizou a expedição para a caverna, após ser informado por dois escavadores amadores que existiam fósseis de hominídeos ali, em 2013. A equipe que Berger reuniu tem cerca de 60 pesquisadores, sem contar os estudantes que ajudam nas pesquisas. Apesar do time robusto, a missão de desbravar o território só poderia ser realizada por pessoas muito específicas, e isso não teve a ver só com competência. A passagem para a Câmara das Estrelas é tão absurdamente estreita que só um corpo muito esbelto consegue alcançá-la. Berger, então, decidiu lançar uma campanha no mínimo bizarra no Facebook: “procura-se pesquisadores magros”. E foram as seis mulheres selecionadas, todas altamente qualificadas e com experiência em escavação, que deram à luz o Homo naledi.

Primitivo e moderno

Quando essas pesquisadoras entraram na câmara, as ossadas não estavam nem ao menos escondidas. Vários fósseis estavam ali, na superfície, inclusive de partes importantes para identificar uma espécie, como uma mandíbula com dentes e parte de um crânio. “Foram os primeiros fragmentos ‘espetaculares’ recuperados”, lembra Dirks. Naquele momento, ainda não podiam dizer com o que estavam lidando, mas já sabiam que era algo especial e completamente novo.

Tudo era muito surpreendente até mesmo para Berger, que trabalha com escavações desde o início dos anos 1990 e já registrou outra espécie de hominídeo: o Australopithecus sediba, que viveu há 1,9 milhão de anos. Ele era um parente distante da Lucy, de 3,2 milhões de anos, que foi a primeira integrante encontrada do gênero. O primeiro fóssil sediba foi achado pelo filho de Berger, durante uma exploração com o pai, em 2008. Ele não acreditou quando viu o menino de 9 anos com uma clavícula de hominídeo nas mãos.

Desde então, o paleoantropólogo tem deixado a comunidade acadêmica, digamos, desconfortável. O próprio sediba já era um bom candidato à transição do Australopithecus africanus para o Homo habilis, o primeiro “homem hábil”, mas de feições bem primitivas. O artigo de Berger, publicado em 2010, garantiu ao novato vários desafetos, enciumados pela descoberta. Agora, meros cinco anos depois, ele reaparece com outro exemplar em mãos – desta vez, um pertencente à nossa árvore familiar.

Polêmicas não têm faltado. O Homo naledi é ambíguo. As mãos e os pés mostram semelhanças importantes com os homens modernos, enquanto o tamanho do cérebro é pequeno e o rosto, primitivo como os dos primeiros ancestrais. Mas o formato dos dedos deixa claro que ele era um usuário de ferramentas. E é essa a principal característica que separa o gênero Homo dos australopitecos: a capacidade de produzir instrumentos que facilitem a vida.

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Possivelmente, em algum momento, será necessário dividir o gênero Homo em algo novo”,
Brian Richmond, PhD em evolução humana

Essa ambiguidade tem feito pesquisadores questionarem os critérios de classificação das espécies. “Ele pertence ao Homo, sim, pelo menos tal como o gênero está definido. Alguns estudiosos acreditam que a linha que separa os Homo e os Australopithecus foi esticada demais”, aponta Brian Richmond, PhD em evolução humana e curador do Museu de História Natural de Nova York. “Possivelmente, em algum momento, será necessário dividir o gênero Homo em algo novo”, pondera. O antropólogo Jeffrey Schwartz, da Universidade de Pittsburgh, é mais radical: ele defende que a taxonomia atual seja jogada fora e que se refaça a linhagem humana do zero.

Mas com que critério? “A resposta vale milhões de dólares”, salienta. “Muitas espécies foram aglomeradas no gênero [Homo gautengensis, ergaster, antecessor…] e chegamos ao ponto em que nada une todos eles. Então, eu defendo definirmos bem o Homo sapiens e, em seguida, ampliar as comparações com outros espécimes, esquecendo do que eles têm sido chamados, para ver as semelhanças que emergem naturalmente”, defende Schwartz. Isso porque ele acredita que segregar os hominídeos de acordo com quem tem ou não a habilidade de confeccionar ferramentas é um tanto elitista. “Isso se baseia na noção de que nós, Homo sapiens, somos tão únicos que só aqueles dotados dessa inteligência merecem estar conosco no mesmo gênero.”

Fora isso, já existem evidências de que primatas muito mais antigos que os nossos ancestrais também tenham tido essa habilidade. Ferramentas manufaturadas descobertas em 2014, na África Oriental, foram datadas com 3,3 milhões de anos – 700 mil anos mais velhas do que as ferramentas mais antigas que conhecíamos. “Isso significa que diferentes gêneros também fizeram ferramentas. Essa é, certamente, uma forma mais razoável de ver nossos parentes distantes.”

O geólogo Paul Dirks argumenta, no entanto, que a classificação do Homo naledi não foi aleatória e é compatível com a literatura formal. “Nós fizemos um workshop com um número muito grande de pesquisadores. Decidimos coletivamente classificá-lo como Homo e isso nem ao menos foi levantado como um ponto sério a ser discutido ao longo do processo”, lembra. “Agora que é público, não é surpresa que o debate sobre taxonomia se reacenda”. Ainda mais se lembrarmos que, dependendo do membro avaliado, ele pode lembrar mais um australopiteco mesmo. Mas, como o tamanho do cérebro não é o critério (apesar de já ter sido), não vale a pena perder tempo nessa discussão. Berger e seu time estão focados nos próximos passos: retomar as escavações, datar os fósseis e, enfim, poder dar um pouco mais de humanidade para o Homo naledi, que já tem nome, sobrenome e está só à espera de alguém que consiga retirar da terra a sua história.

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Linha evolutiva 

Ainda não é possível precisar em que época o Homo naledi viveu. Porém, sua anatomia revela evolução intermediária entre os australopitecos e o Homo erectus, ancestral que começa a se aproximar mais dos humanos modernos.
 
Australopithecus
Espécies viveram entre 3,9 e 2,5 milhões de anos atrás
 
Homo naledi
Idade ainda não definida
 
Homo erectus
Viveu entre 1,8 milhão e 300 mil anos atrás

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