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Amigos imaginários ajudam a desenvolver a personalidade

E são mais comuns do que se pensa. Conheça (ou relembre) estes companheiros invisíveis

Por Juliana Cunha
Atualizado em 12 set 2017, 12h04 - Publicado em 29 nov 2010, 22h00

Os amigos Mac e Blu se conhecem desde pequenos. O primeiro é mais quieto, o outro mais travesso – se Mac matar aula, pode apostar que foi coisa do Blu. Mac tem 7 anos e cabelos castanhos; Blu é azul e não existe. Convencido pela mãe a largar o amigo imaginário, Mac busca ajuda especializada. Nada de psicólogo: Blu é levado para uma feira de adoção em que crianças vão encontrar um companheiro invisível pra chamar de seu. Pelo menos é assim que acontece no desenho animado Mansão Foster para Amigos Imaginários, do início dos anos 2000. Na vida real, a coisa é um pouquinho diferente.

A amizade imaginária não é exclusividade da criança mais solitária do playground. Eles estão presentes entre os 3 e os 7 anos da maioria das infâncias – “dois terços”, afirma a psicóloga Marjorie Taylor, que estuda o assunto na Universidade do Oregon, nos Estados Unidos, e garante que o terço restante também experimenta o que ela chama de “dose saudável de esquizofrenia, fundamental para a construção da personalidade”.

“Antes de ter um amigo de carne e osso, a criança precisa treinar a experiência da amizade”, diz o psicanalista Enrique Mandelbaum, especialista no tema. “Se as ações forem simuladas antes de realizadas, o desafio de conviver é facilitado.” Pesquisas mais recentes indicam que aquelas crianças que convivem com companheiros invisíveis desenvolvem antes suas capacidades psicológicas e linguísticas, e tendem a ser melhores alunos. Em alguns casos – OK, agora estamos falando dos solitários do playgroud -, o parceiro inventado exerce a função de confidente e conselheiro, preenchendo a função que a psicologia chama de “muro de elocubração” – ou, como canta o Oasis, wonderwall.

Diálogo interior

Amigos imaginários costumam surgir assim que passamos a ter algum domínio da linguagem oral. Seja para organizar pensamentos, seja para se entreter, a criança desata a falar consigo mesma. Filhos únicos e primogênitos são mais propensos a esse tipo de comportamento, já que tendem a passar os primeiros anos de vida sem um companheiro real de sua faixa etária por perto.

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Nesses primeiros anos, os amigos imaginários são como rodinhas para a bicicleta do monólogo interior. Ele opina, claro, em nossas primeiras reflexões de fôlego. Afinal, se antes a criança só pensava em maneiras de dizer “tô com fome” e “mãe, olhe pra mim”, agora ela precisa eleger a comida preferida e decidir se é melhor pedir para a mãe ou o pai, e necessita da opinião de um especialista.

Outra função importante do amigo inventado é o treino para diálogos reais. Esse, aliás, é um hábito que ultrapassa a infância: adolescentes são capazes de planejar uma conversa inteira ao telefone, e quem simplesmente vai até a mesa do chefe pedir um aumento? Quando percebe que a forma de dizer altera a resposta, a criança escala o parceiro invisível como companheiro de palco e ensaia a cena que vai representar diante de quem pode satisfazer o seu desejo.

O amigo imaginário pode ser outra criança, um personagem de ficção e até Deus (veja o quadro abaixo). Mas dificilmente tem presença física, como no conto Tio Wiggily em Connecticut, de J.D. Salinger, em que ele come, brinca, assiste à TV e até dorme com uma menina – que se espreme em um canto da cama para não esmagá-lo. No entanto, esse não é o tipo mais comum. “Quando perguntamos a fundo, a criança costuma concluir que sente a presença do amigo, mas não exatamente o enxerga. Pleitear um lugar à mesa costuma ser uma forma de exigir que a família o reconheça”, diz Mandelbaum.

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Amigos com benefícios

Para os pais, flagrar o filho no meio de um “monólogo exterior” pode surpreender, mas os especialistas garantem: é normal, saudável e aconselhável. Inclusive, Roberto Andersen, educador brasileiro membro da Academia de Ciências de Nova York, adverte que limitar a imaginação (o que inclui dizer “acabou esse tal de amigo imaginário!”) é um incentivo ao déficit de atenção, déficit de cognição e memória parcial. Se você achou a opinião de Roberto muito radical, saiba que Freud, pai da psicanálise, e Piaget, papa da pedagogia, também defendiam que, por via das dúvidas, era melhor que o companheiro invisível participasse do jantar.

Tanto amigos particulares quanto aqueles mais coletivos, como Papai Noel, Coelho da Páscoa e vampiros, ajudam no desenvolvimento mental. Essa fantasia ajuda a capacidade de abstração, o que vai trazer benefícios em futuros boletins. Uma pessoa condicionada a acreditar somente no que enxerga sente mais dificuldade para entender o que é um átomo ou uma raiz quadrada, por exemplo.

Além de defender que 2 entre 3 crianças têm amizades imaginárias, Marjorie Taylor sugere que, por confrontarem constantemente suas opiniões com a do amigo, sacam mais cedo que as outras pessoas têm crenças, desejos e intenções próprias. Outros cientistas descobriram que crianças de 4 a 8 anos que têm amigos imaginários produzem frases mais complexas do que as que não têm.

E tem mais: o trabalho dos psicólogos Evan Kidd e Anna Roby, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, sugere que os amigos dos amigos imaginários trabalham melhor em equipe. Atenção, recrutadores de RH: a pesquisa mostra que as crianças com companheiros invisíveis são melhores na hora de fornecer informações que podem ajudar alguém – em outras palavras, ver o problema do ponto de vista do outro. É como se a criança quisesse dar um bom exemplo ao amigo imaginário na hora em que lembra ao pai que a TV está ligada ou que a vovó ligou. A dupla de pesquisadores acredita que os amigos imaginários são como que terapeutas, que dão ao pequerrucho egocêntrico uma nova perspectiva da mesma situação que antes passaria batido.

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Como lembra o pediatra Mário Cordeiro, autor do Livro da Criança, a esperteza desencadeada pelas amizades imaginárias pode, eventualmente, se voltar contra os pais. No meio da brincadeira, podem de vez em quando surgir declarações como: “Não diz isso, amiga! Não diga assim, a mamãe não está gorda”. Ué, foi a amiga imaginária quem disse.

Gêmeo mau

Até aqui tudo muito fofo. Mas o fato é que muitas vezes o amigo imaginário é também bode expiatório, leva a culpa pelo que a criança fez sabendo que não deveria. “A mente da criança trabalha por oposições. Rapidamente, ela divide o mundo entre bons e maus e, evidentemente, quer se filiar ao lado bom. Quando suas atitudes não agradam, não podem ter partido dela: precisam ser do outro”, diz Mandelbaum.

A criança também utiliza o companheiro inventado para fazer perguntas que não tem coragem de fazer em seu próprio nome, chamar atenção, dizer palavrão – atitudes que provavelmente serão repreendidas pelos responsáveis. Também serve para justificar atitudes: pode ser aquele que disse que era legal bater no colega ou o que insiste no presente fora de hora.

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Se isso é feito com comedimento, pode ser positivo. Permite, por exemplo, que a criança faça as perguntas que quer com menos constrangimento. Em um caso de divórcio familiar, o amigo imaginário pode fazer perguntas sobre o futuro da família que a criança não teria coragem de fazer “sozinha”. No entanto, quando o amigo imaginário passa a ser um inimigo imaginário, que incita atitudes ruins e fora do padrão, está na hora de levar imaginador e imaginado para o psicólogo, ou pelo menos para o serviço de orientação da escola.

Existem muitas formas de praticar análise infantil – exatamente como existem muitas formas de praticar análise em adultos. Uma das mais consagradas é o método da psicóloga Melanie Klein, que efetivamente trouxe a brincadeira (e, consequentemente, os amigos imaginários) para o trabalho psicanalítico com crianças. Segundo Mandelbaum, “as crianças vêm ao consultório e trazem os amigos imaginários”. Através da “voz” dos companheiros invisíveis, é possível entender o que está se passando.

Para a especialista em educação especial e em psicopedagogia Maria Irene Maluf, os amigos imaginários são importantes e estimulam a imaginação, mas os pais precisam permanecer atentos. “Se a criança deixa de brincar com as outras, se ela se fecha em um mundo só dela e do amigo que ela criou, está na hora de interferir.” Amigos imaginários são importantes, mas jamais devem ser a relação prioritária.

A hora do adeus

A celebridade das revistas. A anti-celebridade dos quadrinhos. O menino mais bonito do colégio. A ex a quem mentalmente submetemos nossas atitudes. O desconhecido que seguimos no Twitter. São muitas as figuras que passam temporadas no que já foi o lar do amigo imaginário.

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Se o diálogo com um interlocutor imaginário nunca desaparece, é fato que ele sofre drásticas transformações e perda de espaço com o passar da idade, seja porque pega mal na escola, seja porque foi substituído por amigos reais. Mais ou menos aos 7 anos, ele já não é tão comum. Aos 10 já é estranho. Se ele sobreviver até os 12, é algo preocupante – bem mais que a “dose saudável de esquizofrenia” receitada pela doutora Taylor.

Mas vamos nos deter na média: para o português Mário Cordeiro, após os 6 anos de idade os pais já podem dar um empurrãozinho para a despedida, para que a criança realmente entenda o amigo como ficção. “Uma boa ajuda seria pedir que a criança fizesse um desenho ou escrevesse uma história com esse personagem. Esse será o momento em que ela vai enviar os amigos para o mundo da fantasia, em paz e com as contas saldadas”, afima.

Geralmente, a gente deixa os amigos imaginários assim como esquece os amigos da escola antiga. Sem se dar conta, conversa cada vez menos com eles até que caem no esquecimento – a ponto de alguns nem se lembrarem que um dia tiveram um companheiro invisível. Por isso mesmo, ficar o tempo inteiro interrogando a criança para saber se o tal fulano que não existe ainda existe só vai atrapalhar o processo de desapego e esquecimento.

Os pesquisadores de Manchester contam o caso de um menino que encontrou uma maneira exótica e serena de lidar com o problema. Aos 5 anos, ele já pretendia se livrar do amigo imaginário, mas não sabia como fazê-lo sem ferir os sentimentos de Shrek – “não o Shrek do filme; eles só têm o mesmo nome”, esclareceu. Pois calhou de o garoto ser levado pela primeira vez a um funeral, que ele interpretou como uma forma socialmente aceita de se despedir de alguém. No dia seguinte, pediu que a mãe lhe vestisse com roupas escuras e foi para um canto do jardim. No jantar, anunciou: “O Shrek morreu. O funeral foi hoje. Tem refrigerante?”

O outro
O tipo mais comum de amigo secreto é outra criança, geralmente para suprir a ausência de um irmão ou de um amigo da mesma idade. Em casos mais extremos, é um membro da família, com vontades e lugar à mesa. Muitas vezes, a criança nem concebe sua aparência física.Amigo da moda
Geralmente personagem do cinema ou da TV. (Não são os brinquedos, cuja vida intelectual é só um recurso na hora de brincar.) Pode ser o Mickey, o Ben 10 ou um dos Backyardigans, muito populares entre os pequenos. O posto é rotativo, conforme a popularidade do personagem. Se ele cair no ibope, deixa de ser amigo – aliás, é como agem certos adultos.Se eu quiser falar com Deus
Ele está em toda a parte, mas não é visto. Por que não pode ser amigo imaginário? No papel de Grilo Falante, não deixa de ser uma versão infantil da doutrina que recomenda aos jovens americanos sempre perguntar: “O que Jesus faria?”

Para saber mais
O Brincar e a Realidade
Donald Winnicott, Editora Imago.

A Psicanálise de Crianças
Melanie Klein, Editora Imago.

Nove Estórias
Jerome David Salinger, Editora do Autor.

Náufrago
Direção: Robert Zemeckis. Por causa do Wilson.

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