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Caôfunding: quando um projeto de financiamento coletivo não é o que parece ser

Eles levantaram US$ 160 milhões para criar uma empresa sem chefe e sem burocracia, para competir com as maiores do mundo. Até a malandragem pôr tudo a perder

Por Marcela Donini, Alexandre de Santi e Bruno Garattoni
Atualizado em 28 abr 2021, 07h53 - Publicado em 1 out 2016, 17h23

Texto originalmente publicado pela Super em 2016

Era sábado à noite, 14 de maio, e Christoph Jentzsch estava jantando na casa de amigos. Seu celular vibrou trazendo uma mensagem – com a melhor notícia da vida de Christoph. Seu projeto de crowdfunding acabara de ultrapassar a marca de US$ 100 milhões em doações. Não só tinha dado certo, como já era o maior projeto de financiamento coletivo da história. Foi tanta emoção que Christoph passou mal e não conseguiu terminar o jantar.

Até então, ele era um engenheiro de software praticamente desconhecido. Junto com o irmão, Simon, e mais um sócio, em setembro de 2015 ele havia fundado uma empresinha chamada Slock.it para desenvolver plataformas de dinheiro digital (como a moeda virtual Bitcoin). Até que os três resolveram pensar grande. E se, em vez de simplesmente mexer com dinheiro virtual, criassem uma corporação virtual? Uma empresa totalmente robótica, capaz de operar e se gerenciar sozinha? Eles foram adiante e inventaram o conceito de DAO: Organização Autônoma Descentralizada, em inglês.

A DAO é uma entidade virtual –que pode ser uma empresa ou uma ONG – administrada pelos chamados contratos inteligentes. Esses contratos definem como a empresa vai operar, as regras dela. E são escritos em linguagem de software. Depois que um humano redige as regras, basta colocá-las para rodar no computador: e aí a DAO começa a funcionar. Como se fosse uma empresa normal, só que totalmente automática. O lema da DAO é “o código manda”, ou seja, o software tem autonomia.

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A The DAO foi criada por cerca de 10 mil acionistas, que juntos têm 22 mil contas. São todos anônimos.

Como isso funcionaria na prática? Christoph e os sócios tiveram a ideia de lançar cadeados inteligentes, que poderiam ser instalados em bicicletas, carros e até imóveis para que eles fossem compartilhados, vendidos ou alugados por acesso remoto. Digamos que a sua bicicleta fique parada em frente ao seu trabalho por oito horas e você queira alugá-la nesse intervalo. Basta que alguém faça o pagamento pela internet. Quer alugar seu apartamento? Não precisa nem entregar a chave do cadeado para o inquilino: o app vai liberar o acesso automaticamente após o pagamento. Hoje em dia, esse tipo de serviço depende de atravessadores, como o Airbnb, o Uber e as empresas de cartão de crédito, que gerenciam os pagamentos. Na visão de Christoph, eles não existiriam. Cada pessoa teria sua própria DAO, que se comunicaria com as DAOs das outras para fazer negócio. Tudo seria pago em moeda virtual, com os contratos sendo gerenciados por meio da plataforma Ethereum (que gerencia contratos inteligentes e existe desde 2015). Tudo sem intermediários nem impostos, e muito mais barato do que os Airbnbs e Ubers da vida – cujas comissões estão, sempre, embutidas nos preços que você paga. Governos e empresas convencionais também poderiam criar as próprias DAOs, revolucionando a economia como um todo.

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(Fido Nesti/Superinteressante)

Christoph resolveu liberar o software-base, que pode ser usado para criar DAOs, de graça na internet. Um mês depois, em maio de 2016, surgiu o projeto “The DAO”, que buscava financiamento coletivo. Seus autores nunca se identificaram, então não se sabe se Christoph é um deles. Mas ele tinha todos os motivos para torcer a favor, afinal, a The DAO iria catapultar sua tão sonhada economia compartilhada. O projeto não é exatamente uma DAO – e sim uma espécie de fundo de investimento, que recolhe e distribui dinheiro para as DAOs propriamente ditas.

Se você quiser montar uma, pode propor a ideia aos investidores da The DAO, que aí decidirão, numa votação online, se você leva a grana ou não. O projeto queria levantar US$ 500 mil. Arrecadou US$ 160 milhões, doados por 10 mil pessoas. Algo sem precedentes na história do crowdfunding. Recuperados do susto inicial, Jentzsch e sua turma comemoravam. A cotação do ether (moeda virtual da plataforma Ethereum) só subia, a The DAO gerava entusiasmo, as coisas iam maravilhosamente bem. “Todo mundo queria fazer parte dessa revolução”, diz Griff Green, participante da The DAO. Iriam ter uma bela surpresa.

“The Attacker”

Na manhã de 17 de junho, ethers passaram a ser transferidos, com muita rapidez, da The DAO para uma outra DAO recém-criada. Sete horas depois, mais de 3 milhões de ethers haviam sido desviados. O projeto estava sendo saqueado.

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Ao pedir para sair da The DAO, o sócio pode pegar seu dinheiro de volta. Mas, por um defeito no software, era possível pedir essa restituição várias e várias vezes. Foi assim que a The DAO perdeu mais de US$ 55 milhões, cerca de 30% do seu caixa. Outros ataques de menor valor se seguiram. “Foi um bug meio burro”, diz o brasileiro Alex Van de Sande, designer de interfaces da Fundação Ethereum e membro da The DAO.

Uma falha banal, que poderia ter sido evitada. O software deveria primeiro pegar os tokens (créditos) do usuário que deseja sair da The DAO e só depois liberar o dinheiro. O problema havia sido detectado em 12 de junho, mas os desenvolvedores achavam que tinham corrigido a falha. Não tinham.

Ficou todo mundo tentando descobrir quem era o ladrão. Até que, em 18 de junho, o responsável – que se identificou apenas como “The Attacker” (O Agressor) – publicou uma carta aberta na internet. Disse que não cometeu crime, só explorou uma brecha no sistema. “Eu obtive 3,6 milhões de ethers de forma legal, e quero agradecer à DAO por isso”, escreveu. “Meu advogado me disse que estou completamente dentro da lei”, completou. “Tomarei medidas legais contra quem tentar pegar ou congelar meus ethers”, advertiu. O Agressor se explicou com a seguinte lógica: se na DAO as regras são código de computador, e ele não reprogramou o código, então não cometeu crime.

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Há uma forte concentração: apenas 50 contas depositaram 57% de todo o capital do projeto. Nas primeiras duas semanas, o valor das cotas subiu 60%. Depois, com os saques, perderam tudo.

A tese é aceita por vários experts. Patrick Murck, pesquisador da Universidade Harvard e advogado especialista em bitcoin, considera que não houve roubo, já que a brecha fazia parte do código. Para Gabriel Aleixo, coordenador de projetos do Instituto de Tecnologia & Sociedade do Rio de Janeiro, também faz sentido. “Faltou considerar os fatores humanos. O problema não foi só o bug, mas a discussão que não permitiu uma solução rápida”, diz.

Roubo ou não, o fato é que a perda do dinheiro instalou o caos na The DAO. “Foi uma tragédia. Todos queriam ajudar, mas ninguém sabia como. Não havia muito o que fazer”, conta Green. Com a confusão, o ether caiu 30% e as cotas de participação na DAO perderam 60% do valor. Os saques continuaram, até que um grupo de hackers disse basta: aproveitou a mesma brecha para pegar o resto do dinheiro e depositar em uma nova organização autônoma.

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Agora, a comunidade da The DAO tenta decidir o que fazer para recuperar a confiança dos participantes. O pessoal do Slock.it defende um hard fork, ou seja, a criação de um novo sistema. Ele teria uma cópia exata de todas as DAOs, com duas grandes diferenças: o dinheiro que foi desviado voltaria para as mãos dos antigos donos, e uma nova moeda seria criada.

Nas primeiras duas semanas, o valor das cotas subiu 60%. Depois, com os saques, perderam tudo.

Mas por que não fizeram isso até agora, você deve estar se perguntando. Porque quem manda é o código, lembra? Murck, o pesquisador de Harvard, acusa os autores da The DAO de querer mudar as regras do jogo, até então baseado na soberania e transparência do código. Assim como ele, muitos usuários acreditam que o hard fork abriria um precedente para novas intervenções humanas, que desvirtuariam a essência das DAOs. Afinal, quem manda? O código ou os humanos?

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Apesar dos debates e das incertezas, é consenso que a The DAO, como foi concebida, morreu. Mas foi uma lição e tanto para quem sonha em transformar a sociedade. “Estamos evoluindo. A primeira versão de uma coisa nunca é sua melhor versão”, diz Safiri Felix, diretor da corretora de moedas virtuais CoinBR.

Green, Van de Sande e boa parte da comunidade também acreditam que novas DAOs surgirão, mais fortes. Para Aleixo, caminhamos a passos largos para que, um dia, a economia compartilhada se consolide, e a reputação de cada pessoa valha mais do que seu saldo bancário – se é que nesse cenário ainda existirão bancos. É um futuro fascinante, mas com algo de utópico também. Porque, para que ele aconteça, será preciso, mais do que aperfeiçoar as máquinas, corrigir as fragilidades dos homens.

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