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Mais ultraleve que o ar

Faz noventa anos que Santos-Dumont voou pela primeira vez com o 14-Bis. Para comemorar a data, um grupo de aviadores de São Paulo construiu uma réplica de outra invenção do brasileiro: o Demoiselle, avô dos modernos ultraleves.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 30 set 1996, 22h00

João Luiz Guimarães

Piloto vai se vestir de Santos-Dumont

Há um casulo no hangar número 20 do Parque de Material Aeronáutico de São Paulo. Dentro dele, encontra-se em gestação uma libélula de 120 quilos e 8 metros de comprimento. Calma, não se trata de um monstro alienígena. É apenas uma réplica do segundo modelo do avião Demoiselle, construído por Santos-Dumont em Paris, em 1909, dois anos depois de o 14-Bis ficar pronto. Antes do final do ano, ele vai decolar da pista do Aeroporto do Campo de Marte. O piloto será o aviador civil Jarbas de Barros Domingues, que há seis anos batalha para ver o projeto no ar. “É a realização de um sonho”, diz ele, que no dia do esperado vôo vai se vestir com roupas iguais às de seu herói, chapéu de abas caídas e tudo o mais .

Para chegar a esse ponto, Jarbas não trabalhou sozinho. Há cerca de dois anos, convenceu quatro militares e o mecânico Luiz Alvarez a participar da aventura.“Eles tinham conhecimento técnico e estrutura para fazer a coisa”, conta. Tinham também a mesma paixão por aviões. Durante um ano e meio, a equipe passou seu tempo livre debruçada sobre as plantas originais do Demoiselle 20 e algum material já pesquisado pelo Aeroclube de São Paulo. Isso sem falar no tempo gasto na conquista de recursos. Não exatamente dinheiro, mas motor, rodas, madeira, seda para as asas. No dia que for marcado para a decolagem – se possível 23 de outubro, mesma data do vôo inaugural do 14-Bis –, uma equipe de quarenta figurantes com trajes de época vai recriar o clima do início do século. Sabe-se lá o que o inventor pensaria da cena, mas a idéia, com certeza, é homenageá-lo. No ano que vem o grupo quer repetir a dose em Paris, refazendo trajetos do aviador. E a vontade da equipe é não parar por aí. “Poderemos produzir réplicas para museus daqui e do exterior”, diz Maria Antônia Loureiro, que não pôs a mão na massa, mas coordenou o projeto. É uma maneira de aproveitar a experiência, adquirida a duras penas, para reproduzir a obra do grande mestre (veja infográfico ao lado).

Superstição, excentricidades e um triste fim

“Mais pesado que o ar e inventado por um brasileiro; não pode dar certo.” O poeta Vinícius de Moraes, que morria de medo de avião, deve ter dito a frase numa hora de mau humor. Hoje ninguém duvida da genialidade de Alberto Santos-Dumont. Ele construiu na França quatro modelos de Demoiselle entre 1907 e 1909, que foram mexidos e remexidos em busca do melhor desempenho. Tinham os números 19, 20, 21 e 22. Aliás, tudo o que Santos-Dumont inventou era numerado, a começar pelos balões e dirigíveis. Ele só pulou o número 8. Por superstição, preferiu quebrar a seqüência. O mesmo motivo levou-o a construir em sua casa de Petrópolis, no Rio de Janeiro, hoje um museu, escadas com degraus recortados, impedindo que o visitante começasse a subida com o pé esquerdo. Fotos de cadeiras e mesas que foram suas revelam outras excentricidades. Elas têm pés altíssimos. Vai ver era alguma forma de compensar a altura do dono, pouco mais de 1 metro e meio.

Com o Demoiselle, Santos-Dumont visitava amigos nos arredores de Paris, como a princesa Isabel e seu marido, o conde D’Eu – representantes da nobreza recém-exilada do Brasil republicano. Também foi num Demoiselle que o inventor voou pela última vez como piloto, em 18 de setembro de 1909. Uma esclerose múltipla o impediu de continuar fazendo o que mais gostava. Para piorar, o uso de aviões com finalidades bélicas na Primeira Guerra Mundial e na Revolução Constitucionalista de 1932, no Brasil, deixou-o deprimido. Todos esses fatos devem ter colaborado para o seu suicídio, aos 59 anos, enforcando-se no chuveiro do Hotel de La Plage, no Guarujá, naquele mesmo ano de 1932.

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PARA SABER MAIS

Alberto Santos-Dumont, Orlando Senna, Brasiliense, São Paulo, 1984.

MUSEU:

Casa de Santos-Dumont, Rua do Encanto, 22, Petrópolis, RJ, telefone 0242 313011.

NA INTERNET:

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Dans L’Air – Santos-Dumont à Paris (roteiro de documentário ainda em produção sobre o inventor) https://www.tropical.com.br/nenna

1 – Leveza

Na início do século, na França, as libélulas eram chamadas de demoiselle (senhorita), numa referência à sua delicadeza.

2 – Trocadilho

A semelhança som o inseto e as asas forradas de seda, como as saias das moças da época (demoiselles), definiram o nome do avião.

3 – Nova verção

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Os ultraleves de hoje têm desenho muito parecido com o do ancestral, mas a seda das asas foi substituídas por um poliéster chamado Dacron.

Homenagem

A idéia surgiu a um ano e meio, criou asas e já está prestes a levantar vôo. Para homenagear seu herói estes cinco homens empenharam horas de folga e de sono. Mas também se divertiram bastante.

Da esquerda para direita: Gilberto Branco, Jarbas Domingues, Júlio Philot, Valmir de Sousa e Francisco Domingues

Dissecando a libélula

O maior desafio foi manter a fidelidade aos materiais usados no original.

1 – Motor

É o de um Fusca 1.6, com quatro cilindros. Ele foi serrado ao meio para ficar parecido com o Darracq francês original, de dois cilindros. A disposição simétrica, idéia do inventor, melhora a eficiência e diminui a trepidação.

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2 – Hélices

São de madeira, em forma de cimitarra (espada oriental de lâmina curva), conforme desenho de Santos-Dumont. O formato capta melhor o ar quando em rotação.

3 – Asas

Foi a parte mais trabalhosa do projeto. Para obter a curvatura do bambu, a equipe recorreu a jatos de ar quente de um soprador térmico – aparelho que mais parece um grande secador de cabelos (veja o detalhe no alto).

Os reforços de freijó, madeira leve usada em aviação, foram doados pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). O forro será de um poliéster chamado Ripstop, mais resistente do que a seda japonesa do modelo original.

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4 – Estrutura

Não se sabe qual o tipo de bambu usado por Santos-Dumont. O inventor já trabalhava com o material desde a época dos balões. A estrutura da réplica foi feita com a espécie indiana Philostaques, escolhida por cientistas do Instituto Agronômico de Campinas, em São Paulo, entre 1 200 variedades conhecidas. Foram mantidos os reforços de aço comum e o mesmo tipo de solda (veja o detalhe na foto menor).

5 – Trem de pouso

Usa rodas de bicicleta, como o original. Na época do 14-Bis, que empregava o mesmo sistema, Wilbur Wright – um dos famosos irmãos a quem se credita a primazia do vôo auto-sustentado – comentou: “Rodas num avião? Que coisa mais excêntrica!”

Ficha Técnica

Sem o piloto, o Demoiselle 20 pesava 118 quilos. Com um motor de 25 HP, sua velocidade máxima foi de 96 quilômetros por hora e ele chegou a voar por duas horas e meia. Tinha superfície de sustentação de 10,2 metros quadrados (a área das duas faces das asas) e para decolar precisava de apenas 70 metros de pista.

Com a cabeça nas nuvens

Demorou, mas, como queria Santos-Dumont, a aviação esportiva vingou

O Demoiselle pegou de cara como avião de lazer. Ele foi reproduzido cerca de 200 vezes sem a autorização de seu criador, que não costumava patentear inventos. Mas, depois dele, o esforço dos projetistas foi no sentido de criar aviões maiores e mais complexos, indo desembocar nos atuais jumbos e jatos supersônicos. Apenas na década de 70, nos Estados Unidos, retomou-se a idéia da aviação recreativa. Foi como se tivessem reinventado a roda, ou melhor, a asa, quando alguns engenheiros da Nasa tiveram a idéia de adicionar à asa delta um pequeno motor propulsor. Depois, trocou-se o modelo inteiriço por duas asas forradas com tecido impermeável, agregaram-se o assento e o trem de pouso. Pronto, ficou parecidíssimo com o Demoiselle. O americano John Mudd montou, em 1976, o primeiro modelo simples com motor Mc Culloch. O nome ultraleve (ultralight ou microlight, em inglês) foi adotado em função do baixíssimo peso dos aparelhos, quase sempre abaixo dos 100 quilos. Hoje, recebe este nome qualquer coisa voadora com motor que não passe dos 300 quilos.

Só na década de 80 a idéia aterrissou por aqui. O primeiro campeão nacional da categoria, no ano de 1986, o carioca Miguel Rosário, pilotava um aparelho projetado e construído por ele, o MIG-20, que pesava 75 quilos e era inspirado adivinhe em quê? Acertou, no Demoiselle de Santos-Dumont.

Antes do inseto, a inspiração vinha da ave

Olhe bem para a histórica foto abaixo, do 14-Bis sobrevoando os campos de Bagatelle, em Paris, no ano 1906. Pescoçudo e desengonçado, ele não lembra um pato levantando vôo? Os franceses da época achavam que sim e, como gostavam de pôr apelido em tudo, chamaram-no de Canard, que é pato em francês.

Dobradinha

O nome 14-Bis, quase tão esquisito quanto a sua estrutura com as asas atrás, tinha uma explicação. No início, ele era apenas um aparelho experimental pendurado no balão dirigível número 14.

Criatividade para dar e vender

Além do avião e do relógio de pulso, Santos-Dumont inventou muitas outras engenhocas curiosas

Deslizador aquático

Em 1907, o brasileiro testou este aparelho no Rio Sena, em Paris. Com um motor Antoinette de 100 HP de potência, o chamado número 18 antecipava a idéia do hidroavião.

Helicóptero

Desde Leonardo da Vinci, muitos se dedicaram ao experimento, que só deu certo com o russo Igor Sikorsky em 1909. Santos-Dumont, como não podia deixar de ser, também arriscou sua versão.

Propulsor para esquiador

A idéia era ajudar os esquiadores a voltar montanha acima para um novo salto. Mas o engenho, testado em 1926 pela senhorita Porgés, campeã francesa no esporte, acabou perdendo a briga para o teleférico.

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