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Vaidade: Espelho, espelho meu

Cuidar do corpo é uma atitude saudável e ajuda a aumentara auto-estima. Quando a busca pela beleza se torna obsessiva, porém, ela vira uma doença que exige tratamento

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 28 fev 2006, 22h00

Texto Maurício Oliveira

B.C. era uma bela mulher de 33 anos, com o corpo esculpido por duas horas diárias de academia, prática de várias modalidades esportivas e uso freqüente de recursos como lipoaspiração e drenagem linfática. Os constantes elogios não a convenciam, no entanto. Ela nunca se satisfazia com os resultados do esforço, que chegava a consumir 30 horas por semana. Considerava-se menos dedicada do que o necessário e ficava em pânico com a idéia de passar dois dias sem exercícios físicos. Também se sentia incomodada cada vez que via o rosto no espelho. Concluiu que o maior problema era o formato do nariz, embora ninguém notasse nenhuma imperfeição ou desproporção nele. Decidiu submeter-se a uma cirurgia plástica. Não aprovou o resultado e fez outras três cirurgias, sempre procurando corrigir a anterior. Durante um ano e meio, deixou os demais aspectos da vida em segundo plano para tentar resolver o problema que ela mesma havia criado. Quase não saía de casa, angustiada por constatar que a perfeição com a qual sonhara parecia cada vez mais distante. Na quarta cirurgia, aconteceu o pior. Teve uma infecção, perdeu parte do nariz e ficou deformada.

B.C. é apenas um exemplo (real) de uma mulher exageradamente obcecada pela beleza física. Você, provavelmente, conhece alguém com esse perfil. É claro que, até certo ponto, a preocupação com a própria imagem é saudável, pois contribui para aumentar a auto-estima, ajuda a preservar a saúde e até mesmo facilita a ascensão profissional, como muitas pesquisas já comprovaram ao associar a boa aparência à conquista de cargos e salários mais altos nas empresas. A partir de determinado estágio, no entanto, esse comportamento deixa de ser motivo de orgulho e realização pessoal e passa a gerar sentimentos como ansiedade e tristeza – indícios de um distúrbio psíquico, que os especialistas chamam de transtorno da imagem corporal (TIC), também conhecido com distúrbio dismórfico corporal (DDC). Pesquisadores de todo o mundo trabalham para definir com mais precisão as causas e os sintomas desse distúrbio com o objetivo de facilitar o diagnóstico e o tratamento. Para explicar o que ocorre com as pessoas afetadas, alguns especialistas costumam recorrer à metáfora da sala de espelhos dos parques de diversões: quem entra na sala só se vê deformado; apenas quem está ao lado consegue ver a pessoa como ela realmente é.

Normal ou doentio?

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Um dos esforços brasileiros no sentido de conhecer melhor o transtorno vem da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde uma equipe liderada pelo psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, alarmada com a maior incidência de problemas relacionados à dificuldade de alimentação e à obsessão por dietas e exercícios físicos, desenvolveu um questionário sobre o tema (leia mais no quadro da próxima página). O objetivo é identificar se o paciente atravessou a fronteira entre a preocupação normal com a aparência e o comportamento doentio. As respostas resultam em uma pontuação que revela a existência do distúrbio e define se o estágio é moderado, médio ou grave. B.C. foi uma das pacientes diagnosticadas com TIC, um mal que, evoluindo silenciosamente e sem terapia, pode levar a sérios problemas de saúde, como a bulimia e a anorexia.

Chega a ser surpreendente, porém, que alguém alcance os estágios mais graves sem que os parentes, amigos e colegas de trabalho percebam que há algo errado. Os indícios são facilmente perceptíveis. Uma pessoa que vive dizendo que precisa emagrecer mesmo estando muito magra, que só sabe conversar sobre dietas e exercícios, que reluta em comer um mero bombom (e fica com drama de consciência por tê-lo feito), que prioriza as sessões na academia diante de qualquer outro tipo de programa e que faz do culto ao corpo um caminho para a alienação e a futilidade, sem se preocupar com o enriquecimento cultural ou com a realidade política e social ao redor, é possivelmente alguém que precisa de ajuda especializada.

A preocupação ainda pontual com o transtorno de imagem corporal faz com que não existam estatísticas confiáveis sobre a incidência, mas a impressão geral dos especialistas é que os casos vêm aumentando a cada ano. “O maior número de casos parece estar diretamente relacionado à crescente valorização social da beleza e da juventude”, ressalta Silveira. Ele lembra que a pressão pela boa aparência, fortemente reforçada pela mídia, contribuiu nas últimas décadas para a banalização dos recursos da medicina, um perigo a mais para quem transforma a beleza em obsessão. “Muita gente passou a achar simples demais fazer uma lipo ou uma cirurgia plástica para se aproximar dos padrões de beleza vigentes, mas é preciso lembrar que mesmo as mais simples intervenções envolvem riscos”, diz o psiquiatra.

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Embora a insatisfação com a própria imagem e a busca obstinada pela beleza seja um fenômeno mundial, o Brasil exerce papel de protagonista. Por ser um país tropical, em que o corpo permanece à mostra o ano todo, os brasileiros (e especialmente as brasileiras) não convivem bem com quilos a mais e pequenas imperfeições físicas que costumam ser encaradas com naturalidade em outros países. Não por acaso, o Brasil tornou-se campeão mundial de cirurgias plásticas – foram 400 mil procedimentos em 2005 –, deixando para trás nações com renda per capita superior. É um indício de que, aqui, a preocupação com a beleza já saiu do rol dos supérfluos (enquanto os livros, por exemplo, continuam sendo algo para comprar apenas quando sobra dinheiro).

Doutor, opera minha filha!

A supervalorização do corpo freqüentemente gera exageros. “Outro dia, recebi no consultório uma mãe que havia levado a filha adolescente para fazer uma cirurgia plástica completamente desnecessária e ainda por cima contra a vontade da menina. Por sorte, o cirurgião plástico percebeu algo errado e encaminhou o caso para a gente”, descreve Silveira. Esse exemplo demonstra que a obsessão pela beleza pode vir de casa – há muitos casos de mães que planejam a carreira de modelo para as filhas, por exemplo. Os especialistas dizem que os jovens que são cobrados pelos pais no sentido de não engordar têm maior chance de desenvolver algum problema psíquico em relação à aparência física. A fase mais delicada é justamente a da adolescência, porque já está naturalmente associada a dúvidas de todo tipo e a mudanças no corpo. “Mas mesmo as crianças estão sendo contaminadas por esse modelo. Ao imitar o comportamento dos pais, elas acabam se envolvendo com temas que não deveriam fazer parte do universo infantil”, diz a psicóloga Suely Murdocco, que coordena grupos de psicoterapia para obesos em São Paulo.

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Talvez não haja local mais apropriado para a triagem de pessoas com distúrbios de imagem do que os consultórios de cirurgiões plásticos. Hoje, muitos deles já estão atentos para a necessidade de identificar os casos que precisam de orientação psicológica, mas ainda há os que não querem perder pacientes e topam realizar qualquer cirurgia – basta o paciente querer. “É uma questão ética muito delicada”, diz o cirurgião Paulo Jatene, de São Paulo. De cada dez pacientes que o procuram, ele costuma dispensar três, por julgar a cirurgia desnecessária. “Mas não acredito que essas pessoas desistam. Provavelmente saem à procura de outro cirurgião que faça a operação”, lamenta. Para decidir quem deve se submeter à cirurgia, Jatene se guia por um critério simples: ele só opera quando estiver convicto de que poderá melhorar a aparência do paciente. Certa vez, recorda-se, ele foi procurado por uma mulher que queria operar os seios. “Mas eles eram perfeitos, o que me fez encaminhá-la a um psicólogo antes de levar o caso adiante”, diz Jatene. O psicólogo descobriu então que a mulher havia sido abusada pelo pai na infância e concluiu que, ao desejar mudar o formato dos seios, ela estava tentando na verdade se livrar do trauma. Um caso para terapia, certamente – e não para um cirurgião plástico.

Beleza inatingível

Mesmo com a ascensão do metrossexual, o homem excessivamente preocupado com a aparência (cujo ícone é o jogador inglês de futebol David Beckham), as grandes vítimas da pressão social pela beleza continuam sendo as mulheres. Pela amostra obtida na primeira aplicação do questionário desenvolvido pela Unifesp, uma em cada cinco mulheres sofre de transtorno da imagem corporal. A antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mirian Goldenberg, organizadora do livro Nu & Vestido (Record, 2002) e autora de De Perto Ñinguém É Normal (Record, 2004), em que tratou da obsessão pela beleza, lembra que o fenômeno ganhou proporções muito maiores a partir dos anos 90, quando top models macérrimas passaram a ditar os padrões da moda. “A partir daí, as mulheres entraram em um labirinto do qual ainda não conseguiram escapar: a busca infinita pela perfeição, pela beleza inatingível”, descreve. Ela sugere que as mulheres se inspirem no exemplo da atriz Leila Diniz (1945-72), ícone da liberdade feminina nos anos 60, para buscar a “libertação”. “Leila prezava a liberdade, o prazer de viver, o exercício pleno da sexualidade, sem ligar para padrões e conceitos. Ela desafiava as convenções e criou o seu próprio padrão de comportamento”, diz Mirian. “É um belo exemplo para quem vive fazendo regimes malucos, torrando dinheiro com produtos ineficazes, vestindo roupas de adolescentes mesmo depois dos 40 anos, pintando os cabelos de loiro ou tentando imitar o peito siliconado ou os lábios carnudos da modelo ou atriz do momento.”

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Ao longo de seis anos, Mirian aplicou questionários sobre sexualidade a quase 1300 homens e mulheres com idade entre 17 e 50 anos, todos com nível universitário e moradores da cidade do Rio de Janeiro, tida como a meca do culto ao corpo no Brasil. Surpreendeu-se ao constatar as diferenças de ponto de vista entre homens e mulheres. “Os homens dizem que se atraem em primeiro lugar pela beleza da mulher, mas o que mais invejam nos outros homens é a inteligência. Com as mulheres ocorre exatamente o contrário: elas dizem se atrair em primeiro lugar pela inteligência do homem, mas o que mais invejam nas outras mulheres é a beleza.” Outro ponto de divergência entre homens e mulheres é o conceito de beleza feminina. Eles demonstram que preferem mulheres cheias de curvas, como a dançarina Scheila Carvalho, enquanto elas valorizam o padrão esguio de Gisele Bündchen. “As mulheres querem seduzir os homens com um corpo que está longe da preferência masculina”, diz Mirian.

O maior desejo

A psicóloga Suely Murdocco lembra que, há alguns anos, uma revista feminina norte-americana fez uma enquete pedindo às leitoras que escolhessem uma entre três realizações: um encontro romântico com o homem dos sonhos, uma noite divertida com um amigo querido que não encontravam havia tempo ou emagrecer 10 quilos. A maioria escolheu – adivinhe? – a terceira opção. “As mulheres estão conquistando posições de importância na política e no trabalho, mas ainda persiste a idéia perniciosa de que o nosso maior poder é a beleza e a juventude. Acreditamos que mais cedo ou mais tarde perderemos nosso poder para mulheres mais belas e mais jovens”, critica Suely.

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Para ela, uma mudança de mentalidade só seria possível a partir da nova geração. Ao ressaltar a influência da mídia, Suely defende uma campanha de conscientização direcionada às adolescentes. “A mulher brasileira é a mais bonita e sexy do mundo e não precisa imitar os modelos europeus, das loiras com olhos claros e cabelos lisos. Já é hora de quebrar a ditadura do manequim 36.”

Elas sofrem mais

Pesquisa mostra que transtornode imagem atinge mais asmulheres do que os homens

Ao testar o questionário sobre transtorno da imagem corporal em 164 estudantes de medicina, a equipe do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) confirmou a suspeita: as mulheres estão muito mais sujeitas ao distúrbio do que os homens. Das jovens pesquisadas, 20% se enquadraram nos sintomas do distúrbio, em menor ou maior grau. Entre os rapazes, o percentual foi de 7%. Ou seja, para cada homem com o problema, há três mulheres. Desenvolvido a partir do projeto de mestrado da psiquiatra Mônica di Pietro, o questionário, com 41 perguntas, prevê quatro níveis de resposta para as situações propostas (de “nunca” a “sempre”), utilizando como referência de tempo as quatro semanas anteriores. Alguns exemplos de questões:

• Ao ingerir uma refeição completa e sentir o estômago cheio, você se preocupou em ter engordado?

• Você deixou de participar de eventos sociais por se sentir mal com relação à sua forma física?

• Ver seu reflexo fez você sentir-se mal em relação ao seu físico? “O questionário é um aliado para diferenciar quem é apenas vaidoso daqueles que realmente precisam de tratamento”, diz o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, coordenador da equipe e orientador da dissertação de mestrado de Mônica di Pietro. Com base nos resultados e no acompanhamento dos pacientes, boa parte deles encaminhada por cirurgiões plásticos, a Unifesp está desenvolvendo um banco de dados para compreender melhor os transtornos de imagem e evitar que muitos casos se agravem a ponto de se tornar uma ameaça para a vida.

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