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Vida no subterrânea: Viagem ao centro da Terra

O solo parece um lugar inóspito e desabitado. No entanto, debaixo dos nossos pés vive a maior parte dos seres do planeta. Sem esses milhões de criaturas invisíveis, a vida aqui em cima não seria possível

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h50 - Publicado em 30 jun 1993, 22h00

Uilson Paiva, Adriano Sambugaro

Para nós, que vivemos na superfície do planeta entre plantas exuberantes e bichos que andam, nadam e voam, o mundo subterrâneo parece feito apenas para sustentar o nosso peso, além de servir de abrigo para uns poucos seres algo esquisitos, como as minhocas. Mesmo as plantas, que retiram dali sua sobrevivência, mantêm acima do solo a folhagem, as flores e as cores, enfim, a sua parte mais vistosa e conhecida. O chão parece ser um lugar de sombras, trancafiado no reino mineral.

Não pode haver imagem mais enganosa. A terra sob os nossos pés não só abriga mais vida que toda a superfície, como também guarda boa parte dos segredos que permitem a nossa existência aqui, a céu aberto. E as mais recentes descobertas mostram que podem estar ali, enterradas, as chaves de alguns mistérios da ciência.

A biomassa subterrânea, a soma da matéria viva existente sob a terra, supera, em volume e diversidade, tudo o que existe aqui em cima, todos os animais e plantas da superfície juntos, segundo cálculo de Thomas Gold, publicado na revista da National Academy of Sciences. Pelas suas contas, há 200 trilhões de toneladas de seres vivos vivendo sob o chão. Só que a gente não os vê, porque eles são, em sua maioria, microscópicos. Numa única pitada de terra, tirada do jardim de casa, há mais de um bilhão de organismos.

Sem essa turma trabalhando ali embaixo, a vida sobre a Terra não teria a menor chance. Para começar, essas criaturas nos mandam, lá do seu universo encardido, ingredientes imprescindíveis para a conservação da vida em todo o planeta, como o nitrogênio. Abundante no universo, o nitrogênio é vital para todos os organismos – tanto quanto o carbono, o oxigênio e o hidrogênio. As proteínas e os genes, por exemplo, são feitos com esse ingrediente. Mas, apesar da sua abundância, não conseguimos absorver o nitrogênio diretamente da natureza, como o sangue faz com o oxigênio. Isso é tarefa possível apenas para um pequeno número de micróbios – cerca de 200 espécies. Eles vivem nas raízes das plantas e ali realizam um dos processos mais importantes e universais da natureza, ao lado da fotossíntese: a fixação de nitrogênio, pela qual captam o elemento e com ele produzem amônia, que, a partir daí, entra na cadeia alimentar de forma digerível pelos outros seres.

Em troca, recebem dos vegetais produtos da fotossíntese, como carbono e açúcares ricos em energia. Sim, o mundo de cima e o de baixo da terra dependem um do outro. Nenhum deles resiste sozinho.

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Um exemplo dessa interação é a intrincada rede existente entre as raízes das plantas. “Se nos fosse possível testemunhar o que ocorre sob nossas florestas e outros ecossistemas naturais, uma das coisas mais impressionantes que veríamos é a vasta rede de fungos interligando raízes de plantas de diferentes espécies”, afirma David W. Wolfe, da Universidade de Cornell, autor do livro Tales from the Underground (Contos do subterrâneo, inédito no Brasil).

Essa simbiose entre fungos e plantas está entre as mais antigas da história do planeta. Na verdade, foi ela que permitiu a expansão da vida no planeta, no mar e na terra. Quando as primeiras algas marinhas se aventuraram em terra, foram esses fungos do subterrâneo que permitiram a elas receber os nutrientes necessários no novo ambiente. Em troca, os fungos recebiam os produtos da fotossíntese. Os descendentes dessas algas logo evoluíram para plantas primitivas com raízes, mas o casamento com os fungos persistiu. “Hoje, 400 milhões de anos depois, você pode encontrar descendentes desses fungos em quase todas as plantas”, afirma Wolfe. Mais de 90% das 248 000 espécies de plantas precisam deles para viver.

Esses fungos, chamados de mycorrhizae, formam dutos que permitem a troca de nutrientes como fósforo, potássio e zinco – que não podem ser adquiridos facilmente pelas raízes. O tamanho dessas intrincadas conexões subterrâneas é desconhecido. Mas sabe-se que esses fungos estão entre as maiores e mais antigas criaturas na Terra. Um indivíduo desses, descoberto em 1992, numa floresta americana, tinha área equivalente a mais de 1 000 campos de futebol, pesava o equivalente a uma baleia azul e contava 1 500 anos de idade.

Parte dessa riqueza subterrânea já é objeto de estudo humano. Para a indústria farmacêutica, por exemplo, o solo é uma mina de ouro. Pouca gente sabe, mas a maior parte dos antibióticos naturais hoje existentes derivaram de micróbios do solo. Um dos primeiros antibióticos – a estreptomicina, usada especialmente no combateà tuberculose – foi descoberto em 1943 por um biologista do solo, Selman Waksman, que recebeu o Prêmio Nobel por seu achado. Com a moderna capacidade de pesquisa de substâncias químicas, os cientistas esperam desenterrar novas fórmulas de medicamentos nos próximos anos.

A agricultura também deve se beneficiar com as pesquisas. “Com o que estamos aprendendo sobre a biologia do solo, poderemos ajudar os agricultores a melhorar a produtividade das lavouras de maneira sustentada e com o mínimo de químicos”, diz Wolfe. No campo, há várias utilidades para os micróbios, desde biocontrole de pragas até melhoria da qualidade dos nutrientes do solo.

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A verdade é que ainda sabemos pouquíssimo a respeito da vida sob o solo. A maioria dos micróbios, fungos e bactérias que vivem ali ainda permanece desconhecida. Parte desse fato se deve à fragilidade da cadeia alimentar subterrânea, que torna difícil sua reprodução em laboratório. Mesmo nos mais modernos centros de pesquisa, cientistas têm sorte se conseguem cultivar 1% dos micróbios existentes numa porção de solo, porque esses organismos, por serem interdependentes, não vivem isolados uns dos outros.

Um exemplo da nossa ignorância a respeito do que se passa sob o solo é a descoberta dos extremófilos, um tipo de micróbio especial, descoberto recentemente e cujo nome vem das condições ambientais em que vive: a 3 quilômetros de profundidade, num lugar tão profundo que chega a ser afetado pela radiação e pelas erupções do magma – a massa de rocha derretida que recheia o planeta. A descoberta, feita em 1998, espantou os cientistas. Até então, acreditava-se que não existia vida a mais de 2 metros de profundidade. Sem luz e oxigênio, submetidos a altíssima pressão, os extremófilos suportam temperaturas de até 112ºC.

Os extremófilos foram descobertos em uma das mais profundas escavações do planeta, a mina de ouro de Driefintein, na África do Sul, de onde foram coletadas amostras de rocha. A análise dos fragmentos, concluída no ano passado, mostrou comunidades de até um milhão de micróbios por grama de solo. O mais impressionante, contudo, é o metabolismo dessas criaturas. Sem oxigênio por perto, os extremófilos retiram seu alimento de resíduos, poluentes ou toxinas, transformando ferro, cobalto ou urânio em comida. Por essa capacidade, eles estão sendo usados para despoluição de regiões contaminadas por óleo e outros produtos químicos.

Mas há mais seres estranhos para serem estudados, como os metanogênicos. Com uma constituição genética única, esses organismos inauguraram um novo reino na natureza, o das arqueobactérias (bactéria antiga, em latim). Seu nome vem do fato de que, em seu processo digestivo, eles exalam gás metano – conhecido aqui na superfície como gás natural, um combustível fóssil. Na verdade, eles são responsáveis por quase todos os depósitos subterrâneos de metano no planeta. A análise de seus genes foi um trabalho minucioso e árduo, desenvolvido pelo cientista americano Carl Woese, na década de 70. Sem os modernos recursos de manipulação e análise genética, ele demonstrou que, apesar de parecer uma bactéria, geneticamente os metanogênicos eram totalmente diversos de todas as formas de vida que até então haviam sido catalogadas. E mais: havia outras supostas bactérias que se enquadravam na nova categoria genética.

Essas descobertas colocaram o mundo científico de cabeça para baixo – ou pelo menos com a cabeça mais perto do chão. A vida no planeta, então, passou a ser dividida em três reinos: bactérias, eucariotes (que inclui plantas, animais e fungos) e arqueobactérias. “As descobertas subterrâneas das últimas duas décadas mostraram que o nicho ocupado pela nossa espécie é mais frágil e menos central do que imaginávamos”, afirma o professor Wolfe.

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Outra criatura impressionante descoberta foi o lithotrophs, apelidado de “rock-eater” (comedor de rocha), que protagoniza uma espécie de fotossíntese para obter carbono a partir de dióxido de carbono – sem ter, para isso, a ajuda da luz solar. No futuro, o domínio desse talento pela ciência pode gerar uma fonte de energia alternativa à energia solar.

Além disso, o ecossistema dos lithotrophs indica que é possível, sim, haver vida nos subterrâneos de Marte. Estima-se que lá, como aqui, há uma combinação de rochas basálticas, água líquida e bicarbonato (dióxido de carbono dissolvido). “Se esses organismos acham essas condições confortáveis aqui, por que não achariam o mesmo do subterrâneo de Marte, Plutão ou de Europa, a lua de Júpiter?”, pergunta o professor Wolfe.

O interesse supera o campo das especulações. Recentemente, a Nasa, a agência espacial americana, criou um instituto de astrobiologia para estudar, entre outras coisas, a vida nos hábitats extremos da Terra. Além de especular sobre a vida em outros mundos, as pesquisas na Nasa poderão pôr à prova uma das mais surpreendentes teorias sobre o mundo subterrâneo: a de que a vida na Terra teve início lá – e não no mar, como pregam as teorias mais comumente aceitas. “Quando a vida começou, há bilhões de anos, o subterrâneo era um lugar bem mais seguro para se estar do que na superfície do planeta, onde havia constantes bombardeamentos de meteoros, erupções vulcânicas e ainda não existia a camada de ozônio para proteger as criaturas das radiações ultravioleta”, afirma Wolfe, que sustenta essa hipótese. “Nós estamos recém-começando uma nova e revolucionária era de descobertas na ciência, a partir da vida subterrânea.

Algo semelhante em importância ao que ocorreu depois da descoberta do microscópio, no século XVII”, diz ele.

Assim como a Terra, que foi moldada lentamente de dentro para fora (como uma esfera de argila, esculpida camada após camada), teria sido graças aos habitantes subterrâneos que a vida, gradualmente, colonizou a superfície do planeta. Mas como e do que teriam surgido esses seres? Eis a tese: numa época em que tudo ainda era apenas hidrogênio, oxigênio, carbono e nitrogênio, superfícies de grãos de barro, carregadas eletrostaticamente, teriam propiciado a primeira biossíntese do planeta.

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A hipótese é bastante controversa, mas a idéia não é nem um pouco nova. Está na Bíblia, no livro do Gênesis: o homem veio do barro. O nome Adão, a propósito, origina-se de adama, palavra hebraica para solo ou barro. E o prefixo latino homo, usado para a designação Homo sapiens, deriva de humus (que significa do solo ou da terra).

Daqui para a frente, pisemos o chão com mais respeito.

Num punhado de terra retirada do quintal há um bilhão de organismos

Sob a superfície pode estar enterrada a cura de muitas doenças

Na livraria:

Tales From Underground, David W. Wolfe. Perseus Publishing, 2001

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The Secret Life of the Dust, Hannah Holmes, John Wiley & Sons Inc. 2001

The Formation of Vegatable Mould Through the Action of Worms, With Observations of Their Habits, Charles Darwin

O PRIMEIRO ESTÁGIO

Fica imediatamente abaixo da superfície. É formado por materiais orgânicos, restos de animais e folhas.

Habitantes – Além de bactérias, fungos e outros seres, é aqui que vivem as minhocas, seres essenciais para a renovação do solo, porque comem as folhas caídas e as transformam em excrementos nutritivos para micróbios. Seu hábitat vai a camadas mais profundas

CAMADA A

Mistura de areia, barro e argila, contém muita matéria orgânica (raízes de plantas e organismos vivos e decompostos).

Habitantes – Animais grandes que habitam tocas, como tatus e lagartos, e seres minúsculos como fungos, bactérias e ácaros. Entre eles estão os tardígrados, que passam a vida em fios de água. Se o solo seca, eles desidratam e hibernam por até cem anos

CAMADA B

Composta de argila e restos decompostos de vegetais e animais, conhecidos como húmus. Há também raízes de árvores.

Habitantes – É aqui que se encontram as bactérias rhizobium. Vivendo nas raízes das plantas, elas captam o nitrogênio, fundamental para a vida, e o fornecem às plantas, em troca do açúcar produzido pela fotossíntese

CAMADA C

Rochas desgastadas por chuvas, ventos ou marés. Esse desgaste é que formou as camadas superiores.

Habitantes – Aqui praticamente só há micróbios. Mas, nos estratos superiores, há uma rede de microtubos formados pelo fungo mycorrhizae, que interligam as raízes das plantas. Por meio deles, as plantas trocam nutrientes entre si

CAMADA R

É a rocha em estado bruto.

Habitantes – Aqui vivem os extremófilos, micróbios de altíssima resistência ao calor, à falta de luz e à alta pressão. Entre eles, destacam-se os metanogênicos, micróbios anaeróbicos que exalam gás metano

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