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Guantánamo: “Bem-vindo ao inferno”

Em uma base militar no Caribe, fica a prisão mais dura do mundo. Conheça a vida no pior lugar da Terra.

Por Reportagem: Larry Siems, da revista Slate. Edição e tradução: Bruno Garattoni
Atualizado em 26 jul 2023, 10h21 - Publicado em 26 set 2013, 22h00

Suspeitos de terrorismo levados para Guantánamo podem ficar presos para sempre, sem direito a julgamento. Dos 166 detentos, 130 faziam greve de fome quando esta reportagem foi escrita. E um deles conta, pela primeira vez, como as coisas são ali.


 

Mohamedou Ould Slahi se apresentou voluntariamente à polícia de seu país natal, a Mauritânia, em 20 de novembro de 2001. Foi preso, e uma semana depois, a pedido do governo dos EUA, transferido para a Jordânia.

Slahi era acusado de ligações com um atentado frustrado no aeroporto de Los Angeles, em 1999. Por sete meses, foi interrogado pelas autoridades jordanianas, que não acharam nada que o incriminasse. Insatisfeita, a CIA buscou Slahi e o levou até uma base militar americana no Afeganistão.

Em 4 de agosto de 2002, ele foi encapuzado, algemado, drogado e colocado num voo com 30 outros detentos, para uma viagem de 36 horas até a base de Guantánamo, em Cuba, de onde só foi libertado em outubro de 2016.

Slahi escreveu um livro de 466 páginas contando sua história. Em 2012, o governo dos EUA permitiu a publicação do texto, com trechos sensíveis censurados. Você irá ler a seguir o que foi divulgado. As passagens em itálico foram adicionadas pela SUPER para facilitar a compreensão do caso.


O interrogatório

Os gritos dos outros presos me acordaram.

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Enquanto os guardas serviam comida, nós nos apresentávamos. Não podíamos ver uns aos outros, mas era possível ouvir as vozes. “Eu sou da Mauritânia.” “Eu sou da Palestina.” “Síria.” “Arábia Saudita.”

“Como foi o voo?”

“Eu quase congelei até morrer”, gritou um cara.

“Eu dormi a viagem toda”, respondeu .

Nós nos chamávamos pelos números de identificação que tínhamos recebido. O meu era 760. Na cela à esquerda estava , de . Na cela à direita, havia um cara de . Ele falava mal árabe e dizia que tinha sido capturado em Karachi [no Paquistão], onde frequentava a universidade. Nas celas em frente à minha, colocaram dois sudaneses.

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O café da manhã foi modesto, um ovo cozido, um pedaço de pão duro e uma outra coisa que não sei o nome. Foi minha primeira refeição quente desde a Jordânia. O chá foi reconfortante.

Eu considerei a chegada a Cuba uma bênção, e disse aos meus irmãos. “Como vocês não estão envolvidos em crimes, não têm o que temer. Eu vou cooperar, porque ninguém vai me torturar.” Eu erroneamente acreditava que o pior tinha passado. Eu confiava demais no sistema judicial americano.

“, disse um dos soldados enquanto segurava longas correntes nas mãos. A palavra é um código, significa que você será levado para um interrogatório. Eu prudentemente obedeci às ordens, e eles me levaram até o interrogador.

O nome dele era , e ele vestia um uniforme do Exército dos EUA. Falava árabe decentemente, com um sotaque de . Ele me disse que é de e costumava trabalhar como intérprete para os .

era um cara amigável. Ele queria que eu contasse mais uma vez toda a minha história. Quando cheguei à parte sobre (o que tinha passado) na Jordânia, ele disse que sentia muito.

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“Esses países não respeitam os direitos humanos. Eles até torturam gente.” Me senti confortável por essa crítica a métodos cruéis de interrogatório; significa que os americanos não fariam algo do tipo.

Depois que terminou suas perguntas, me mandou de volta [à cela].

Eles obviamente viam o quão doente eu estava. Eu parecia um fantasma (registros oficiais indicam que Slahi, de 1,70 m, pesava apenas 49 quilos ao chegar à base). No meu segundo ou terceiro dia em Guantánamo, eu desmaiei. Os médicos me tiraram da cela. Vomitei tanto que fiquei completamente desidratado.

Recebi primeiros socorros e uma sonda intravenosa. Foi terrível, eles devem ter colocado algum remédio ao qual sou alérgico. Minha boca secou, e minha língua ficou tão pesada que eu não conseguia falar para pedir ajuda. Com gestos, pedi aos guardas que tirassem a sonda, e eles tiraram.

Mais tarde, os guardas me levaram de volta à cela. Eu estava tão doente que não conseguia subir na cama. Dormi no chão o resto do mês. O médico me prescreveu Ensure (suplemento nutricional) e um remédio para hipertensão. Quando eu tinha crises de nervo ciático, os guardas me davam Motrin (anti-inflamatório).

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Embora eu estivesse fisicamente muito fraco, os interrogatórios não pararam.


Nos primeiros meses em Guantánamo, Slahi foi interrogado por agentes do FBI e da Marinha, que utilizavam métodos tradicionais. Mas, em maio de 2003, começou seu “interrogatório especial” – termo que os militares americanos utilizam para se referir ao uso de técnicas mais fortes, que incluem certos tipos de tortura. Slahi foi transferido para a solitária.


A escolta apareceu na minha cela. “Mexa-se.”

“Para onde vou?”

“Não é problema seu”, disse com raiva o guarda . Mas ele não era muito esperto, pois tinha anotado meu destino em sua luva.

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era [um lugar] reservado para os piores presos da base. Se você fosse transferido para , muitas pessoas deveriam ter autorizado, talvez (até) o presidente dos EUA. As únicas pessoas que eu conhecia que tinham passado algum tempo em eram  al Kuwaiti e outro detento de .

Ao chegar ao bloco, a coisa começou. Tiraram todos os meus objetos, exceto por um colchonete e um cobertor muito fino, pequeno e velho. Fui privado dos meus livros. Fui privado do meu Corão. Fui privado do meu sabonete. Fui privado da minha pasta de dentes. Fui privado do rolo de papel higiênico que eu tinha.

A cela – ou melhor, a caixa – era refrigerada, o que me fazia ficar tremendo a maior parte do tempo. Fui proibido de ver a luz do dia. De vez em quando, eles me davam um tempo de recreação (fora da cela), à noite, para que eu não visse nem interagisse com ninguém.

Não me lembro de ter dormido direito uma noite; pelos 70 dias seguintes, eu não saberia o que era dormir. Interrogatórios 24 horas, três turnos, às vezes quatro turnos por dia. Eu raramente tinha um dia de descanso.

“Nós sabemos que você é criminoso.”

“O que eu fiz?”

“Me diga você, e reduzimos a sua sentença para 30 anos. Se você não cooperar, vamos colocar você num buraco e apagar seu nome da nossa lista de detentos.”

Quando eu não dei a resposta que ele queria ouvir, ele me fez levantar. Fiquei com as costas arqueadas (para trás), porque minhas mãos estavam acorrentadas a meus pés e ao chão.

sempre me deixava sofrendo durante seu almoço, que demorava duas a três horas. Ele gostava de comida; nunca pulava o almoço. Fiquei pensando, como pode ter passado no teste físico do Exército [tendo uma forma física tão ruim]?

Como nunca me deixavam ver a luz (do dia), eu “gostava” do curto trajeto entre minha cela gelada e a sala de interrogatório. Era uma bênção quando eu sentia o sol morno de Guantánamo. Sentia a vida voltando a cada centímetro do meu corpo.

“Como você está?”, disse um dos guardas porto-riquenhos.

“Ok, obrigado, e você?”

“Não esquenta, você vai voltar para sua família,” ele disse. Quando ele falou isso, eu não consegui evitar o . Eu tinha me tornado tão vulnerável. Uma mera palavra de conforto neste oceano de agonia era o suficiente para me fazer chorar.

Em , nós tínhamos uma divisão de porto-riquenhos. Eles eram diferentes dos outros americanos. Não eram tão vigilantes e hostis. Às vezes, levavam presos para tomar banho . Todo mundo gostava deles. Por causa de sua atitude amigável e humana com os presos, arranjavam problemas com os chefes da base.

“Hoje nós vamos falar sobre “, disse depois de me empurrar uma cadeira de metal.

“Eu já disse o que sei sobre .”

“É mentira. Você vai nos dizer mais?”

“Não, não tenho mais o que dizer.”

puxou a cadeira e me derrubou.

“Vamos lhe ensinar sexo americano. Levante”, disse .

Assim que eu levantei, os dois tiraram as blusas e começaram a falar todos os tipos de baixaria que você possa imaginar.

se encaixou em mim pela frente, e o se encaixou por trás, esfregando o corpo todo no meu. Enquanto faziam isso, eles falavam coisas sujas comigo e brincavam com minhas partes sexuais. Vou poupar você das coisas nojentas e degradantes que eu tive de ouvir do meio-dia até 10 horas da noite.

Para ser honesto e justo, os não tiraram minhas roupas em nenhum momento; tudo aconteceu comigo vestido. O sênior estava assistindo. Fiquei rezando o tempo todo.

“Para de rezar, porra. Você está fazendo sexo com americanos e está rezando? Como você é hipócrita!”, disse raivosamente ao entrar na sala. Eu continuei rezando.

Durante essa sessão, eu me recusei a comer ou beber, embora eles tenham me oferecido água algumas vezes. Eu queria desmaiar para não ter de sofrer; essa era a principal razão da minha greve de fome.

Eu sei que pessoas como eles não se impressionam com uma greve de fome. Claro que eles não queriam que eu morresse, mas eles sabem que há muitas etapas até que alguém morra.

“Você não vai morrer, nós vamos alimentar você pelo rabo,” disse .


Registros oficiais mostram que, em julho de 2003, mais de um mês após o início do “interrogatório especial”, Slahi foi questionado durante uma semana por um novo interrogador, mascarado.


“Tragam de volta o filho da p…”, gritou , uma celebridade na equipe de tortura. Ele tinha 1,80 de altura, era atlético e .

Conforme fui conhecendo  melhor, pensei em como um homem tão inteligente quanto ele poderia aceitar um trabalho tão degradante, que com certeza irá perturbá-lo para o resto da vida.

Tempos depois, perguntei a alguns dos guardas porque eles tinham executado a ordem de me impedir de rezar, que é ilegal. “Eu poderia ter (ignorado a ordem), mas meu chefe teria me dado um cargo de merda, ou me transferido para um lugar ruim.”

“Você não está ajudando o “, continuou enquanto me arrastava até uma sala escura. Com ajuda dos guardas, ele me jogou no chão sujo. A sala estava escura como o ébano. começou a tocar uma música muito alto. Muito alto mesmo. A música era Let the Bodies Hit the Floor (da banda de heavy metal Drowning Pool). Talvez eu jamais me esqueça daquela música.

ligou umas luzes coloridas que machucavam os olhos. “Se você dormir, eu vou machucar você”. Eu tive de escutar aquela música sem parar até a manhã do dia seguinte.

“Bem-vindo ao inferno”, disse o guarda . Eu não respondi, não valia a pena. Mas pensei, “você merece o inferno mais do que eu, porque você está trabalhando arduamente para ir ao inferno!”

“Vou trazer umas pessoas para me ajudar a interrogar você”, falou , sentado a poucos centímetros de mim.

me ofereceu uma cadeira de metal. O convidado se sentou, quase tocando meu joelho. começou a me perguntar alguma coisa de que não lembro.

“Levanta, filho da p…”, gritaram ambos. Então uma sessão de tortura e humilhação começou.

colocou o ar-condicionado no máximo para me congelar. Esse método era praticado na base pelo menos desde agosto de 2002. Eu vi pessoas que foram expostas à sala de congelamento dia após dia, como .

Os interrogadores queriam que o ar-condicionado chegasse a zero grau, mas obviamente o aparelho não é projetado para matar. Na sala, bem isolada, o ar chegou a 9,4 graus Celsius – muito, muito frio, especialmente para alguém que teve de ficar ali por mais de 12 horas, não tinha roupa de baixo, tinha um uniforme muito fino, e vem de um país quente.

Os interrogadores se vestiam adequadamente. Por exemplo, estava vestido como alguém que vai entrar num frigorífico. Além disso, eles não ficavam muito tempo com os detentos.

Os interrogadores ficavam se movimentando na sala, o que significa circulação sanguínea, o que significa se manterem quentes enquanto o detento estava o tempo todo, de pé a maior parte do tempo. Tudo o que eu podia fazer era mexer meus pés e esfregar as mãos. Mas o marine impediu que eu esfregasse as mãos. Ele trouxe uma corrente especial que prendia minhas mãos nas laterais do quadril.

O homem (líder) do show começou a jogar cadeiras, me deu uma cabeçada e me descreveu com todos os tipos de adjetivo, sem motivo. O cara era maluco; ele me perguntou coisas das quais não tenho ideia e nomes que nunca ouvi.

“Eu estive em “, ele disse, “e sabe quem foi nosso anfitrião? O presidente! Foi agradável lá no palácio.” O marine fazia perguntas e respondia ele mesmo. Ele trouxe água gelada e encharcou todo o meu corpo. Minhas roupas grudaram em mim. Era horrível, eu tremia como um paciente de Parkinson. Eu não conseguia mais falar. O cara era burro, ele estava literalmente me executando devagar. mandou ele parar de jogar água em mim.

mandou ele parar porque estava com medo da sindicância que (resultaria) em caso da minha morte. Ele encontrou outra técnica; trouxe um CD player com amplificador e começou a tocar um rap. Eu não liguei para a música porque ela me fez esquecer minha dor; na verdade, a música era uma bênção disfarçada, eu fiquei tentando entender as palavras.

Só entendi que a música era sobre amor, você acredita? Amor! “Escuta isso, filho da p…!”, disse o convidado ao sair, fechando violentamente a porta. “Você vai ter a mesma m…. dia após dia, e sabe o quê? Vai piorar. É só o começo”, disse . Eu continuei rezando e ignorando o que eles estavam fazendo.

“Ó, Alá, me ajude… Ó, Alá, tenha piedade”, ridicularizava minhas rezas. “Alá… Alá … Não existe Alá. Ele te abandonou!”

Entre 10 e 11 da noite, ordenou aos guardas que me colocassem numa sala especialmente preparada. Era muito fria e cheia de fotos mostrando as glórias dos EUA: arsenal, aviões, fotos de G. Bush. “Não reze, você insulta o meu país se você reza durante o meu hino nacional. Nós somos o maior país do mundo livre, e temos o presidente mais inteligente do mundo”, disse . A noite inteira eu tive de ouvir o hino dos EUA.

De qualquer forma, eu odeio hinos. Tudo o que consigo lembrar é o começo, “Oh say can you see …”, repetido e repetido.

Entre 4 e 5 da manhã, me soltou, para algumas horas depois recomeçar a mesma coisa.

A viagem de barco


Em 24 de agosto de 2003, Slahi foi tirado da cela e levado numa viagem de barco de três horas pelo Caribe.


Eu mal tinha acabado de comer, quando de repente e eu ouvimos uma confusão, guardas gritando alto, “Eu avisei, filho da p…”. Ouvi gente pisando forte no chão, um cão latindo, portas fechando com força. Eu fiquei paralisado.

Subitamente um grupo de três soldados e um pastor alemão entraram. me socou violentamente, o que me fez cair de cara no chão, e o segundo cara continuou a me socar em todo o corpo, principalmente no rosto e nas costelas. Ambos estavam mascarados.

“Eu avisei, você já era!”, disse . O parceiro dele continuou a me socar sem dizer nada; ele não queria ser reconhecido. O terceiro homem não estava mascarado, ele ficou na porta segurando a guia do cachorro, pronto para soltá-lo em mim.

“Quem mandou vocês fazerem isso? Vocês estão ferindo o detento”, gritou , que estava tão assustado quanto eu.

“Vendem o filho da p…! Ele está tentando olhar.” Um deles me acertou com força no rosto e rapidamente colocou óculos nos meus olhos, abafadores nos ouvidos, e um pequeno saco na minha cabeça. Eles apertaram as correntes nos meus tornozelos e pulsos; eu comecei a sangrar. Achei que eles iriam me executar.

O outro guarda me arrastou e me jogou num caminhão, que começou a andar. A sessão de espancamento duraria as próximas três a quatro horas, depois do que eles me entregariam para outro time, com técnicas diferentes de tortura.

“Para de rezar, filho da p… você está matando pessoas”,  disse, e me socou com força na boca.

e ficaram cada um de um lado e começaram a me socar e me bater contra o metal do caminhão. Um dos caras me bateu (com tanta força) que minha respiração parou e comecei a engasgar. Era como se eu estivesse respirando pelas costelas.

Várias vezes percebi esguichando amônia no meu nariz. O engraçado é que era ao mesmo tempo um (torturador e) “salva-vidas”, como os guardas com os quais eu lidaria no ano seguinte; todos tinham permissão para me medicar e dar primeiros socorros.

Depois de 10 a 15 minutos, o caminhão parou na praia. Meu time de escolta me arrastou e me colocou numa lancha. Continuaram a me bater. Dentro do barco, me fez tomar água salgada, acho que direto do mar. Eu vomitei. Eles colocaram um objeto na minha boca e gritaram, “engole, filho da p…!” .

e estavam me escoltando na viagem de lancha. O objetivo dessa viagem, primeiro, era torturar o detento e dizer que ele “se feriu durante o transporte”, e, segundo, fazer o detento pensar que está sendo transferido para alguma prisão secreta muito, muito longe.

Era noite. Minha venda não me impediu de ver umas lâmpadas fortes.

“Nós felizes por isso (sic). Talvez nós levamos ele pro Egito, ele diz tudo”, disse um sujeito cuja voz eu nunca tinha ouvido, com um forte sotaque egípcio. O inglês dele era ruim e pronunciado errado.

“Talvez depois”, disse .

Eu me afundei em pensamentos. Senti vergonha que o meu povo [árabe] estava sendo usado para esse trabalho horrível por um governo que se diz o líder do mundo democrático. O que o americano médio pensaria se ele ou ela soubesse o que seu governo está fazendo com alguém que não cometeu nenhum crime?

Depois de uns 40 minutos, instruiu o time árabe a começar. Os dois caras me pegaram e, como eu não conseguia andar sozinho, me arrastaram até o barco.

“Senta!”, disse o egípcio, o que mais falava. O egípcio se sentou do meu lado direito. Um jordaniano sentou à esquerda.

Eles me puseram uma espécie de jaqueta grossa, que me prendia à cadeira. Era uma sensação boa – mas que também tinha um lado horrível. Meu peito ficou tão apertado que eu não conseguia respirar. Eu não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas alguma coisa estava errada.

“Puxe o ar”, disse secamente o egípcio. Eu estava literalmente sufocando.

Eles encheram o espaço entre minhas roupas e eu com cubos de gelo, do pescoço até os tornozelos, e conforme o gelo derretia eles colocavam mais cubos. De vez em quando, um dos guardas me batia, geralmente no rosto. O gelo servia tanto para me castigar quanto para eliminar marcas (hematomas no corpo).

E se me mandassem para o Egito? Como o interrogatório seria? Eu esperava choques elétricos. Quanta eletricidade meu corpo poderia aguentar?

[Mas] a festa terminou, e os árabes me devolveram para a equipe americana. Eles me arrastaram para um caminhão. Quando o caminhão parou, e seu colega forte me pegaram e arrastaram por alguns degraus. E eles me jogaram de cara no chão de metal da minha nova casa.

“Não se mexa, não apronte comigo, filho da p…!”, disse , com a voz enfraquecida. Ele estava obviamente cansado, e foi embora.

Pouco tempo depois, senti alguém tirando (o capuz) da minha cabeça. Quando a venda foi tirada, eu vi um . Concluí que era um médico, mas por que diabos ele está se escondendo atrás de uma máscara, e por que é do Exército, sendo que a Marinha é a responsável pelos cuidados médicos dos presos?

“Se você se mexer, eu vou machucar você!”

Fiquei pensando como eu poderia me mexer, que mal eu poderia fazer. Eu estava acorrentado, e cada centímetro do meu corpo doía. Ele saiu e logo voltou com algumas coisas médicas. Eu reparei no relógio dele; era 1h30 da manhã.

O médico começou a limpar o sangue do meu rosto com uma gaze. Depois disso, ele me colocou num colchão – o único item da cela – com ajuda dos guardas. “Não se mexa”, disse um guarda.

O médico colocou muitas cintas elásticas em volta do meu peito e costelas. Depois disso, eles me fizeram sentar. Eles me mexiam como um objeto. Mais tarde eles tiraram as correntes, e um dos guardas me jogou um cobertor pequeno e fino, e isso era tudo o que eu teria na cela.

Demorou um tempo até que a medicação fizesse efeito, e aí eu apaguei, e só acordei quando um dos guardas chutou violentamente a porta. “Levanta, seu merda!”. O médico mais uma vez me deu remédios e examinou minhas costelas.

“Já terminei com o filho da p…”, disse, e saiu em direção à porta. Eu fiquei chocado ao ver um médico agindo assim.


Slahi continuou em total isolamento durante setembro e outubro. Em 17 de outubro de 2003, um interrogador enviou um e-mail para um psicólogo militar. “Slahi me disse que está ouvindo vozes”. O psicólogo respondeu que a “privação sensorial (como a experimentada na solitária) pode causar alucinações”.


Pelas primeiras semanas eu não tive banho, troca de roupa, nem pude escovar os dentes. Não era permitido dormir. Para garantir isso, me davam garrafas com 740 ml de água a cada uma ou duas horas, dependendo do humor dos guardas, por 24 horas.

As consequências eram devastadoras. Não conseguia fechar os olhos por dez minutos, porque passava a maior parte do tempo no banheiro (privada da cela). Mais tarde, perguntei a um dos guardas. “Por que essa dieta de água? Por que vocês não me mantêm acordado me obrigando a ficar de pé, como em ?”

“Acredite, você não viu nada. Nós já mantivemos detentos presos embaixo do chuveiro por dias, comendo, urinando e defecando no chuveiro!”

Eu comecei a alucinar e ouvir vozes claras como cristal. Ouvi minha família numa conversa casual. Ouvi leituras do Corão com uma voz celestial. Ouvi música do meu país.

Mais tarde os guardas tentaram se aproveitar dessas alucinações, e ficavam falando com vozes engraçadas pelo encanamento, me encorajando a tentar fugir.

Eu percebi que estava à beira de enlouquecer. Comecei a falar sozinho. Ouvia vozes constantemente, dia e noite. Eu não sabia quando era noite, mas assumia que era quando o ralo ficava escuro.

Reuni minhas forças, estimei a direção de Meca, me ajoelhei, e comecei a pedir a Deus. “Por favor me guie. Eu não sei o que fazer. Estou cercado de lobos.” Quando estava rezando, eu caí em lágrimas, mas abafei para que os guardas não ouvissem.

“Senhor,” eu disse, quando terminei minha reza. Um dos guardas apareceu usando uma máscara de Halloween.

“Quê?”, disse friamente o guarda.

“Eu quero falar com o .”

Confissões são como contas de um colar, se a primeira cai, as demais seguem.

“Nós gostaríamos que você escrevesse suas respostas no papel, nos dá muito trabalho registrar o que você fala, e você pode se esquecer de coisas quando fala conosco”, disse .

“Claro!”, eu respondi. Eu gostei da ideia, porque preferia falar com um papel do que com ele. Pelo menos o papel não iria gritar ou me ameaçar. Depois disso, me afundou numa pilha de papéis, que eu obedientemente preenchi com minha escrita. Era bom deixar sair minha frustração e depressão.

“Nós vamos dar a você uma tarefa relacionada a . Ele está preso na Flórida e eles não conseguem fazê-lo falar. Ele fica negando tudo. É bom que você nos dê uma prova contra ele”, disse .

Eu fiquei tão triste. Como eu poderia fornecer uma prova sobre uma pessoa que eu mal conhecia?

Ele me deu alguns papéis e voltei para minha cela. Peguei a caneta e escrevi todo tipo de mentiras incriminatórias sobre um pobre sujeito, que estava tentando obter asilo no Canadá e ganhar algum dinheiro para começar uma família. E ele é aleijado.

Eu me senti tão mal, ficava rezando em silêncio, “nada vai lhe acontecer, irmão”. Dizer a verdade sobre ele estava fora de questão, pois já tinha me dado as instruções.

 está esperando o seu testemunho contra  com extremo interesse!”

Eu dei o papel para , e depois da avaliação vi sorrir pela primeira vez. “O que você escreveu sobre Ahmed foi muito interessante, mas nós queremos que você forneça informações mais detalhadas”, disse ele.

“Como eu estou cooperando, o que vocês vão fazer comigo?”, perguntei a . “Depende, se você nos fornecer muita informação que nós não tenhamos, isso será considerado na sua sentença. Por exemplo, a pena de morte seria reduzida para perpétua, e a perpétua para 30 anos”, ele respondeu.

“Isso é ótimo”, respondi.

Me senti mal por todos que feri com meus falsos testemunhos. Eu tinha de vestir o terno que os EUA cortaram para mim, e foi exatamente isso o que fiz.

A família


Os interrogatórios violentos prosseguiram pelos últimos meses de 2003. Slahi continuava em completo isolamento.


“Sabe o que você é?”, disse .

“Hã.”

“Você é um terrorista”, continuou.

“Sim, senhor.”

“Se nós matarmos você uma vez, não será suficiente. Nós temos que matar você 3 mil vezes. Mas em vez disso, nós o alimentamos!”

“Sim, senhor.”

Ao longo de algumas semanas, eu fiquei com os cabelos brancos. Na minha cultura, isso é considerado um sinal extremo de depressão.

Aí, aos poucos, os guardas receberam ordens para 1) permitir que eu escovasse os dentes, 2) me dar mais refeições quentes, 3) me dar mais banhos.

foi quem tomou os primeiros passos, mas tenho certeza que eles decidiram isso numa reunião. Todos na equipe perceberam que eu estava a ponto de enlouquecer, depois de tanto tempo em isolamento.

“Eu trouxe este presente para você”, ele disse, e meu deu um travesseiro. Sim, um travesseiro. Eu recebi o presente com uma felicidade enorme – não porque estivesse morrendo de vontade de ter um travesseiro, mas porque o interpretei como um sinal de que as torturas físicas parariam.

Eu não tinha nada na cela. Na maior parte do tempo, eu recitava o Corão. O resto do tempo, eu falava sozinho e pensava sobre minha vida, e as piores coisas que poderiam acontecer comigo. Contava os furos da gaiola em que estava. Eram cerca de 4.100. Quando me deram o travesseiro, eu ficava lendo a etiqueta sem parar.

“Levante! Coloque as mãos pela porta!”, disse com voz hostil um guarda. Depois que me acorrentaram, eles me levaram para fora do prédio, onde estava me esperando.

Foi a primeira vez que vi a luz do dia. As pessoas não dão valor a ela, mas, se você for proibido de vê-la, lhe dará valor. O sol me atingiu misericordiosamente com seu calor. Eu estava apavorado e tremendo.

“Nós trouxemos você para que possa ver o sol. Nós teremos mais recompensas como esta.”

Não importa quão duros sejam os seus interrogadores, forma uma relação com eles. É uma relação familiar, com todas as vantagens e desvantagens. Você não escolheu sua família, nem cresceu com ela. Mas é uma família.

“Eu vou embora logo”, disse .

“É mesmo, por quê?”

“Está na hora. Mas o outro vai ficar com você.”

Isso não era exatamente confortador. Eu fiquei inquieto, e não conseguia pensar num argumento para convencer a ficar.

“Nós vamos ver um filme juntos antes de eu ir embora”, disse .

saiu. Ele voltou alguns dias depois, com um laptop e dois filmes.

“Você pode escolher qual deles quer ver.”

Eu escolhi Falcão Negro em Perigo (filme de 2001 sobre uma ação militar dos EUA na Somália), não lembro do outro. O filme era violento e triste. Eu prestei mais atenção nas emoções de e dos guardas do que no filme em si.

estava calmo. Ele pausava o filme de vez em quando para me explicar determinadas cenas. Os guardas quase ficaram loucos de emoção, porque viam muitos americanos sendo mortos. Depois que terminamos de ver o filme,  fechou seu computador.

“Ei, a propósito, você não me disse quando vai embora!”

“Você não vai mais me ver!” Eu congelei. Ele não tinha me dito que iria embora tão cedo. Eu achava que talvez demorasse um mês, três semanas, algo assim, mas hoje? Era como se a morte estivesse devorando um amigo seu, e você não pudesse fazer nada.

“Puxa, tão cedo. Estou surpreso! Você não me disse. Adeus. Desejo tudo de bom para você.”

“Eu tenho de seguir ordens, e deixo você em boas mãos.” E foi embora. Voltei à minha cela e comecei a chorar em silêncio, como se eu tivesse perdido um e não alguém cuja função é me ferir e extrair informação.

“Posso ver meu interrogador, por favor?”, pedi aos guardas, esperando que conseguissem alcançá-lo antes que ele chegasse ao portão principal.

“Vamos tentar.”

Logo depois, apareceu na porta da minha cela. “Não é justo, você sabe que eu fui torturado, e não estou pronto para outra rodada.”

“Você não foi torturado. Você tem de confiar no meu governo. Enquanto você estiver dizendo a verdade, nada de mau vai acontecer a você!”

“Eu só não quero começar tudo de novo com novos interrogadores”, eu disse.

“Isso não vai acontecer,” disse . “Além disso, você pode me escrever. Prometo que vou responder todos os seus e-mails”, ele continuou.

“Não, eu não vou escrever.”

“Ok. Você está bem?”

“Não, mas você pode ir embora.”

“Eu não vou embora até você me garantir que está tudo bem”, disse.

“Eu falei o que tinha para falar. Tenha uma boa viagem. Que Alá guie você. Eu vou ficar bem.”

“Tenho certeza que vai. Em no máximo uma semana você terá me esquecido.”

Eu não falei [mais nada] depois disso, apenas deitei. ficou ali durante mais alguns minutos, repetindo, “Eu não vou embora enquanto você não me garantir que está tudo bem.”

Eu sempre agi como se não soubesse onde estava. Os guardas diziam que eu estava “no meio do nada”. Eles ficavam tentando descobrir se eu sabia de algo, e eu sempre respondia, “só sei que estou sendo detido pelo DoD [Ministério de Defesa dos EUA], o lugar não importa.”

Até que veio falar comigo. “Tenho de informar a você, contra a vontade de muitos membros da nossa equipe, que você está em Guantánamo. Você tem sido honesto, e nós devemos o mesmo a você.” Agi como se [a informação] fosse novidade. Fiquei feliz, porque terem me contado significava muito para mim.


Em 2005, a situação de Slahi tinha mudado completamente. Ele passou a receber privilégios, e viver com outro preso num anexo, onde eles têm permissão para plantar, escrever e pintar.


Os guardas queriam ser batizados com os nomes de Star Wars.

“A partir de agora nós somos os , e você vai nos chamar assim. O seu nome é Travesseiro”, disse . Mais tarde, eu aprendi que são os caras do bem, que lutam contra as forças do mal. Eu representava as forças do mal, e os guardas, a força do bem.

 tinha 40 e poucos anos, era casado e com filhos, baixo, mas forte. Ele passou um tempo trabalhando em , e então acabou fazendo uma missão especial para .

“O seu trabalho terminou. Eu estou quebrado”, eu disse.

Embora seja um cara duro, ele é humano.  entende o que muitos guardas não entendem. Se você fala e diz aos interrogadores o que eles querem ouvir, você tem de receber alívio.

“Meu trabalho é fazer você ver a luz”, disse enquanto eu comia minha refeição.  sempre gritava e me assustava, mas nunca me bateu. Acho que o sonho da vida dele é se tornar um interrogador. Que sonho dos infernos.

“Você é meu inimigo”, ele disse.

“Sim, senhor.”

“Então vamos falar de inimigo para inimigo.”

Durante nossas conversas, ele sorrateiramente tentava me fazer assumir coisas que eu não pratiquei. “Qual foi seu papel no 11 de Setembro?”

“Eu não participei do 11 de Setembro.”

“Mentira!”, ele gritou. Eu percebi que não seria uma boa parecer inocente, pelo menos não por enquanto.

Então eu disse, “Eu estava trabalhando para AQ (o grupo terrorista Al Qaeda), em telecomunicações.”

Ele pareceu mais feliz com a mentira. “Qual era o seu cargo?”.

“Eu era tenente.”

Eu odiava e gostava quando era o turno dele. Eu odiava o interrogatório, mas gostava porque ele me dava mais comida e uniformes novos.

Ele começou a me ensinar lições, e me fez treiná-las. As lições eram provérbios e frases que eu deveria memorizar e praticar na minha vida. Eu ainda me lembro de algumas lições. “1) Pense antes de agir. 2) Não confunda generosidade com fraqueza” etc.

Meu relacionamento com  melhorava a cada dia, e consequentemente com o resto dos guardas, porque eles o respeitavam muito.

“F…-se! Quando eu olho para o Travesseiro, eu não vejo um terrorista, eu vejo um velho amigo meu, gosto de jogar com ele”, disse aos outros guardas.

Relaxei um pouco e ganhei autoconfiança. Os guardas descobriram em mim um cara bem-humorado. Começaram a me dar seus PCs e DVDs para que eu consertasse; em troca, eu podia ver um filme.

Nós começamos a nos tornar um grupo, fofocar sobre os interrogadores e criar apelidos para eles. Nessa época,  me ensinou a jogar xadrez. Antes da prisão, eu não sabia nem a diferença entre um peão e um cavalo.

 me trouxe um tabuleiro de xadrez, para que eu pudesse jogar sozinho. Quando os guardas viram o tabuleiro, quiseram jogar comigo. No começo, eles sempre ganhavam. O mais forte era .

“Não foi assim que ensinei você a jogar”,  comentou irritadamente quando eu venci um jogo.

“O que eu deveria fazer?”

“Você tem de criar uma estratégia, e organizar seu ataque! É por isso que os p*** dos árabes nunca têm sucesso.”

“Por que você não joga e pronto?”, perguntei.

“Xadrez não é só um jogo”, ele disse.

“Imagine que você está jogando contra um computador!”

“Eu pareço um computador para você?”

“Não.”

No jogo seguinte, eu tentei fazer uma estratégia para deixar  ganhar.

“Agora você entendeu como se joga xadrez”, ele comentou. Eu sabia que  não gostava de perder, então não gostava de jogar com ele, não me sentia confortável.

 acredita que existem dois tipos de pessoa, os americanos brancos e o resto do mundo. Americanos brancos são inteligentes e melhores do que todo mundo.  odeia o resto do mundo, especialmente árabes, judeus, franceses e cubanos. O único outro país que ele mencionou positivamente foi a Inglaterra.

Depois de um jogo de xadrez, ele virou o tabuleiro.

É engraçado como as pessoas ocidentais têm uma visão falsa dos árabes: selvagens, violentos, insensíveis e frios. Eu posso dizer com confiança que os árabes são pacíficos, sensíveis, civilizados e muito amorosos, entre outras qualidades. Eu disse a , “vocês dizem que nós somos violentos, mas se vocês ouvirem música árabe, ou poesia árabe, é tudo sobre amor.”

Durante meu tempo com , escrevi muitos poemas. tem todos. Um dos meus poemas diz:

A página seguinte do livro, contendo o poema, foi censurada pelas autoridades militares dos EUA.


***
Mohamedou Ould Slahi seguiu preso na base militar de Guantánamo até 2016, apesar de ter recebido, em 2010, um habeas corpus na Justiça americana, que ordenou a soltura dele. O governo recorreu, e Slahi continuou preso por mais seis anos. Na época, quase 80% dos presos de Guantánamo permaneciam em greve de fome – alguns deles pelo quarto mês consecutivo. Os detentos em estado de saúde mais grave são amarrados e alimentados à força, por meio de uma sonda nasogástrica.

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