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Camelistão: mercado informal é o segundo país mais rico do planeta

Sacoleiros, ambulantes, muambeiros, mascates, dogueiros e camelôs são os homens de negócios de uma das maiores economias do mundo, o mercado informal - potência de US$ 10 trilhões e 1,8 bilhão de trabalhadores

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h45 - Publicado em 2 Maio 2012, 22h00

Felipe Van Deursen

A multidão não intimida a dupla de vendedores promovendo raquetes de praia de velcro. Um atira a bolinha para o outro, atravessando barracas de bijuterias, bolhas de sabão assopradas por um vendedor de brinquedo, pessoas apressadas carregando grandes sacolas pretas, artistas de rua, guardas caminhando com as mãos para trás. Jovens anunciam: “roupas de marca 10 reais”, homens entoam: “pendrive 64 giga”, mulheres gritam com aparelhos em punho: “depila nariz, depila orelha” e locutores berram de suas lojas elogios às maravilhas das vitrines. Sotaques de várias regiões do Brasil se misturam a vozes africanas e asiáticas. Lojas do tamanho de uma quitinete ou de uma cobertura vendem perfumes, bonés, joias, malas, fantasias de carnaval, tênis, tecidos, artigos de papelaria, camisas de futebol, aparelhos eletrônicos e outros produtos que disputam a atenção do público: 400 mil pessoas todos os dias – e mais que o dobro em dezembro. Todas circulando pelas cerca de 350 lojas de rua, fora as galerias, o que dá um total de 3 mil estabelecimentos. E ainda tem os camelôs: 2 mil (74 legalizados). A região da rua 25 de Março, em São Paulo, é mais que o maior shopping a céu aberto da América Latina. Se essa exorbitância de vendedores, bugigangas coloridas, panfletos, cartazes, escadas e calçadas apertadas e cheiro de churrasquinho grego misturado com perfume fosse uma única empresa, ela seria uma das 10 maiores do Brasil. Bem-vindo ao Camelistão, patrão.

Nos países em desenvolvimento, nas últimas duas décadas, a informalidade cresceu todo ano. Nos desenvolvidos, teve papel importante para segurar as pontas após a crise de 2008. Um estudo do Deutsche Bank, maior banco alemão, mostrou que países europeus com uma economia informal maior reagiram melhor à crise do que aqueles com menor. Isso ocorreu porque esses negócios desregulamentados não estão tão sujeitos aos humores da economia global, segundo o americano Robert Neuwirth, autor de Stealth of Nations (algo como “a destreza das nações”, trocadilho com o clássico da economia A Riqueza das Nações, de Adam Smith). Por exemplo, a Espanha, com 20% de desemprego, tem 1/5 do PIB na informalidade. Isso ajudou a tapar o buraco das finanças do país, segundo analistas. O mercado informal espanhol movimentou US$ 280 bilhões em 2010. O suficiente para pagar todas as contas do governo naquele ano. E ainda sobrar metade. É dessa destreza de que fala Neuwirth. Das pessoas que arregaçam as mangas e se viram para garantir o ganha-pão. É a economia do faça-você-mesmo, que não pode perder tempo com bolsa de valores, alvará de prefeitura, licença de importação e exportação, impostos, aprovações de órgãos sanitários, sociais ou urbanísticos. Ela precisa estar onde o povo está. Isso acontece porque governos e empresas da economia formal geralmente não conseguem atender toda a população. Desempregados com pouco auxílio governamental tendem a trabalhar por conta própria. Quem não tem condição de comprar videogame no shopping compra no camelô.

Se toda a economia informal do mundo fosse um único país, ele seria uma potência de US$ 10 trilhões. É 5 vezes maior que o PIB do Brasil. É maior que Japão e China e só perde para os Estados Unidos. Esse dinheiro é movimentado por metade dos trabalhadores do mundo: 1,8 bilhão de pessoas. Basicamente, onde há alta densidade demográfica e oportunidade de comércio, há um mercado assim. E isso deve crescer. Segundo Neuwirth, os 50% de hoje serão 2/3 em 2020.

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A 25 de Março é uma das maiores empresas do hipotético país. Esses comerciantes de São Paulo fazem parte da mesma realidade que os sacoleiros da Ponte da Amizade, na fronteira do Brasil com o Paraguai, carregando toneladas de produtos importados; que os revendedores de peças de computador na Computer Village, em Lagos, a maior cidade da Nigéria; que vendedores de celulares em Guangzou, antiga Cantão, na China. É também o camelódromo de brinquedos estridentes sob a Ponte Galata, em Istambul. São os vendedores ilegais de cachorro-quente na Times Square, em Nova York (aliás, os EUA têm o maior mercado informal do mundo: mais de US$ 1 trilhão). E é a galeria de estandes vendendo artigos importados perto da sua casa. Ou seja, não é só o camelô de DVD pirata que representa essa economia que voa abaixo da linha do radar. Assim como também não é só o pessoal da 25 de Março ou do mercado Saara, no Rio de Janeiro. A eles se juntam os ambulantes vendendo cerveja em porta de estádio e as estudantes de classe média que fazem sanduíche natural para vender na faculdade. Os professores que dão aula em casa para complementar a renda e a moça que burla catracas para vender pão de mel dentro de empresas. É também Edson Oliveira, que compra em um distribuidor local pacotes de 12 garrafas d¿água a R$ 0,46 cada e revende a R$ 2 na região da 25 de Março, faturando R$ 150 ao dia. São catadores de lixo e jovens que importam roupa para vender entre os amigos. Como o promotor de eventos Marcus Stagi, que vende roupas de marcas como Abercrombie e Hollister. Ele importa as peças por meio de um amigo de um tio que mora na Califórnia. Compra a cerca de US$ 20 e vende pelo dobro do preço. “A margem de lucro é sempre 100%”, diz. Simples assim. São vendedores ilegais de comida, como Rocélio Pinheiro, cujos espetinhos de carne já foram confiscados 30 vezes nos últimos 3 anos, segundo suas contas. Na última vez, duas horas após a apreensão, ele já estava de volta à ativa. “Preciso sustentar minha família, tenho 3 filhas”, diz.

E o que define informalidade? Basicamente, um negócio que não tenha registro oficial, não seja regularizado ou não seja taxado pode ser considerado informal. O formato está mudando a economia, até porque o retrato do empregado de carteira assinada em uma empresa é cada vez mais coisa do passado. E também está mudando as cidades. Em Lagos, o plano de tirar um mercado do centro para diminuir a criminalidade que ele atraía falhou. As pessoas deixaram de ir às compras pois o mercado ficara longe demais. A cidade, com 80% da população na informalidade, sentiu a medida no bolso.

Mundo clandestino
A informalidade não é algo novo. Pelo contrário. A Roma imperial e a Londres medieval, por exemplo, foram erguidas, em boa parte, pelos mercadores de suas ruas. Os comerciantes do “Sistema D”, como Neuwirth chama a informalidade, estão entre os primeiros globalizadores. “Mil anos atrás, eles seguiram os exércitos nas Cruzadas”, escreveu. “Nessas `cidades móveis¿, mantinham os suprimentos de comida, roupas e armamentos porque os governos não tinham como lidar com essa logística”. Outro exemplo está nas rotas comerciais que ligavam norte da África, Escandinávia e Oriente Médio. Do lado de fora das cidades europeias muradas da Renascença, os homens de negócio compravam e vendiam livres dos domínios e taxações das autoridades.

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São Paulo é uma cidade comercial há mais de 300 anos. No século 18, ambulantes vendiam produtos de utilidade doméstica e fazendeiros montavam barracas de legumes nas ruas do centro da cidade. Quando os imigrantes do Oriente Médio chegaram à 25 de Março no boom imigratório do século passado, trouxeram para a região a herança dos mercados de rua de Beirute, no Líbano. E, de armarinho em armarinho, começaram a erguer o centro comercial mais frenético do país. “O metro quadrado é mais caro que o da Oscar Freire”, diz Claudia Urias, da União dos Lojistas da 25 de Março e Adjacências, referindo-se à rua paulistana famosa por suas lojas de luxo. De fato, a 25 é o endereço comercial mais caro de São Paulo: R$ 10 mil a venda do metro quadrado, segundo um levantamento da consultoria TNS Research. Muito do que se encontra nesses centros comerciais é pirata. Em pouco mais de um ano, 66 operações apreenderam 58 milhões de produtos ilegais em São Paulo, no valor de R$ 2 bilhões, segundo o Fórum Nacional contra a Pirataria. Além disso, as ações não deixam de ser um lembrete à ironia histórica do nome da 25 de Março: é a data da primeira Constituição brasileira, de 1824. A pirataria pode não ser a única faceta da informalidade, mas é uma das principais. “30% do mercado de cigarros é ilegal, 25% do mercado de medicamentos é ilegal”, diz Edson Vismona, presidente do FNCP. “Além de sonegação de impostos, estamos falando de saúde, de segurança”. Um levantamento da indústria da informática estimou as perdas causadas pela pirataria em US$ 53 bilhões em 2008. Então qual é o tamanho do problema? “Difícil medir. Mas o mercado ilegal gera subemprego e trabalho escravo. Sem falar que esse comércio espúrio é estruturado por organizações criminosas, que operam tráfico de drogas, armas e pessoas”, diz Vismona. Por outro lado, há o caso da Nigéria, onde fica a que seria a maior multinacional do Camelistão, o mercado de Alaba, em Lagos, onde 5 mil lojistas movimentam US$ 10 milhões por dia. Lá, todos sabem que há pirataria. Mas, se eles forem taxados pelo governo, as pessoas não os comprarão e os vendedores terão mais dificuldade para sobreviver. Podem ser piratas, mas, para Neuwirth, eles geram trabalho em um lugar pobre e sem esperança. Alguns serviços foram praticamente abandonados pelo poder público. Água potável, iluminação e transporte urbano só chegam à maior parte da população graças ao comércio ilegal (leia mais ao lado). “A informalidade é o fracasso do governo”, diz Neuwirth.

Mercado futuro
A economia informal é uma realidade cada vez maior. Ela não é algo isolado. Mescla-se aos mercados formais da mesma maneira que supermercados vendem refrigerantes a camelôs, que os comercializam na rua. Tanto que grandes multinacionais, símbolos supremos da economia formal, pagadora de impostos, também estão de olho nisso. É o caso da Procter & Gamble, fabricante de marcas como Gillette, Duracell e Ace. O maior cliente único da P&G é o também gigante Walmart, mas quando a empresa percebeu que as pessoas comuns do mundo todo compram mais seus produtos em mercadinhos de rua e camelódromos do que na rede de hipermercados, ela decidiu dar mais atenção a essa clientela. A assessoria da empresa no Brasil diz que ainda não há ações específicas assim no país, mas em outros lugares a P&G criou uma cadeia de distribuição com empresas locais, que por sua vez terceirizam o serviço até chegar aos rincões do país, onde supermercados não têm vez. A fabricante de comida UAC Foods também está atenta ao potencial desse mercado. A Gala Sausage Roll, um salgadinho de salsicha, é encontrada unicamente em vendedores ambulantes, e não nas gôndolas dos mercados.

Economistas, juristas e políticos ainda debatem sobre os prós e contras dos mercados informais. Porque tentar acabar com eles é provavelmente batalha perdida. Foi nesse formato que o homem começou a fazer comércio. Um vende, outro compra, as partes se acertam, sem algo superior que regularize tudo. O povo igbo, da Nigéria, tem um provérbio que diz que “o próprio organismo sabe melhor suas necessidades e anseios”. A economia informal funciona bem porque seus homens de negócios sabem o que seus clientes querem. E o que eles querem está onde buscam. Na rua.

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Executivos na calçada
Os maiores mercados de rua são do tamanho de multinacionais. Em São Paulo, só a região da 25 de Março fatura R$ 17,6 bilhões por ano. Camelôs são homens de negócios. Como o baiano José de Oliveira, que paga o curso de enfermagem da filha vendendo, basicamente, capas de celular.

Fast food no asfalto
Comer na rua é um hábito cultural. Não importam os riscos à saúde (segundo o Ministério da Saúde, 114 mil pessoas foram contaminadas por comida de rua em 8 anos). Se fossem uma rede, esses vendedores de yakissoba, xis-salada, acarajé e afins mundo afora formariam a maior cadeia de lanchonetes do mundo – formada por gente como Paulo de Souza e Rocélio Pinheiro: 10 horas por dia vendendo frutas e espetinhos em São Paulo.

McGato
Um carrinho de hot-dog em Nova York fatura US$ 300 ao dia. E um vendedor de espetinho em São Paulo, R$ 150. 2,5 bilhões de pessoas no mundo comem espetinhos, milho verde, pipoca, frutas, cachorro-quente, kebab etc. em barracas, trailers e quiosques – todos os dias.

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Jeitinho – Inovações que brotaram na rua
Em muitos países, inclusive o Brasil, não há uma única operadora de celular dominante. Isso pode gerar um problema quando se quer ligar para alguém de fora da cidade: ter que trocar o chip. Foi com base nessa oportunidade de negócio que vendedores africanos encomendaram a fabricantes chineses os primeiros celulares dual chip a se popularizarem no mundo, em 2007.

Esse é um dos exemplos mais notórios de como a falta de burocracia e de regulamentação (e também de controle de qualidade) deixam a economia informal mais ágil que a formal. O que falta em pesquisas de mercado sobra em faro comercial. Por exemplo, o computador pessoal se popularizou no Brasil porque nos anos 90 Ciudad del Este, no Paraguai, inundou o país de periféricos. O PC montado na loja de informática do bairro era mais barato que o modelo pronto à venda no shopping.

E, onde os serviços do governo não chegam, as pessoas dão um jeito. Em Lagos, Nigéria, transporte público é uma piada. Isso proporcionou o surgimento de okadas, motos baratas transformadas em táxi e pilotadas por gente que não tem licença nem para o serviço nem para pilotar. Ilegal, irresponsável e perigoso? Claro. Mas as pessoas precisam viver.

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A força do Camelistão
Tamanho da informalidade no PIB dos países

1. Do Luxo ao lixo
Guuci, Sany Erickson e Rey Ban são algumas das marcas vendidas nos camelôs do mundo. Elas são chamadas shan zhai, antigo termo chinês que hoje é usado para falar de grifes baratas, sem muito controle de qualidade e, digamos, com uma boa dose de inspiração ocidental.

2. Fenômeno nigeriano
Lagos tem a maior concentração de trabalhadores informais do mundo: 80%. Eles proporcionaram a criação da maior indústria de cinema do mundo, Nollywood, e a proliferação da informática e da internet na África. Tudo graças a muitos DVDs gravados e computadores baratos. De cada PC vendido legalmente, 15 são comercializados clandestinamente.

3. Mundo xing ling
A indústria de celulares é o maior exemplo de como a informalidade mudou a vida das pessoas. Em menos de 10 anos, o número de aparelhos na África subsaariana cresceu 6 vezes. Até catadores de lixo e mendigos têm celular, que pode ser encontrado a R$ 70. Isso seria impossível se não fosse a informalidade e a pirataria.

– 56,2% Nigéria
– 39% Brasil
– 11% Japão
– 8,6% EUA

Fonte: New Estimatives for the Shadow Economies All Over the Word, International Economic Journal

Para saber mais
Stealth of Nations: The GLobal Rise of Informal Economy
Robert Neuwirth, Pantheon Books, 2011

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