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Macarrão: Como surgiram as massas populares

Ao contrário do que diz a lenda, Marco Polo não tem nada a ver com a descoberta do macarrão. Um dos mais famosos derivados do trigo é uma invenção árabe que conquistou a Sicília

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h54 - Publicado em 30 abr 1988, 22h00

Sílvio Lancellotti

Existem no planeta mais de mil tipos diferentes de macarrão. A massa fresca e a massa seca. A massa longa e a massa curta. A massa plena e a massa furada. A massa lisa e a massa rajada. A massa simples e a massa recheada – de mil modos diferentes, também. Cada qual tem seu nome de batismo e sua maneira peculiar de ser feita. Cada qual pode ganhar a proteção sagrada de infinitos molhos e inumeráveis companhias. E, no entanto, só um deles é efetivamente o macarrão.

Tudo depende da região de nascimento e produção, das minúcias do desenho e do formato, da fidelidade à tradição. Na Itália, pátria-mãe da nobre pasta, cada indústria ostenta o seu catálogo, a sua própria nomenclatura. Lasange, alisanzas e lagane, por exemplo, não passam de apelidos diversos para as mesmíssimas placas de farinha amalgamada que se sobrepõe em largas séries intercaladas por recheios mais ou menos suculentos, da carne embebida em sugo de tomates a meras camadas de creme e queijo parmesão Agnillini, agnolini, marubini e angiolottus não passam de apodos localizados para os agnolotti tão em moda hoje em dia no Brasil—gordos pasteizinhos de patês ou ricotas condimentados com ervas, frutas frescas, frutas secas e até licores. As penne do Norte são os maltagliati do Sul. Os ravioli de Bolonha são os casonsei de Bergamo, os gobbein de Torino, os culurzones da Sardenha. Só na província da Puglia, as domésticas orecchiette são denominadas orecchino, recchietelle, recchie ou ricchielle, oricchia di prete ou oricchia di judeu — orelhinhas, orelhas-de-padre ou orelhas-de-judeu.

Pior ou mais engraçado: com a mesma alcunha de rigatoni se indicam as maniche di frate, as mezze manichine, os chifferoni, os bucatini e os perciatelli, massas de aspecto cilíndrico, vazadas no miolo e estriadas na superfície exterior, precisamente aquelas que o rigor histórico prefere batizar, com exclusividade, de maccheroni. Acabou? Jamais. Maccheroni, os macarrões, são as denominações que recebem, na Itália central, as tugliatelle da Emilia-Romagna, as fettuccine do Lazio, as trenette da Liguria, as tagghiarine da ilha da Sicília.

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Formidável, superinteressante confusão. De onde ela provém? Antes de detalhar a evolução do macarrão, é necessário conhecer um pouco da aventura antológica de sua matriz essencial, o trigo. Trata-se, sumariamente, do alimento mais universal de todos. Os cereais, em geral, são responsáveis por 80 por cento de todas as calorias consumidas pela humanidade. Quase metade delas corresponde ao trigo, que ocupa nada menos que 215 das terras agricultáveis destinadas aos grãos. Semente de uma planta da família das gramíneas, segundo o botânico soviético Nikolai I. Vazilov, há no globo mais de 30 mil variedades de trigo.

Elas são agrupadas em quinze espécies, por sua vez separadas em três grupos, de acordo com a quantidade de seus cromossomos: sete pares, catorze pares e 21 pares. O macarrão nasceu de uma espécie intermediária, o Triticum durum, catorze pares de cromossomos, abundante nos arredores do mar Mediterrâneo, desde o Levante dos fenícios até o Tirreno dos etruscos. A cronologia do poder no Velho Continente, aliás, está radicalmente ligada à dominação das plantações do Triticum. Quem possuía a capacidade de colhê-lo, transportá-lo e conseqüentemente vendê-lo tinha também o predomínio sobre os outros povos e as outras nações de seu período. Aconteceu assim com Esparta, com Atenas e com a Grande Roma.

O homem pré-histórico aprendeu, empiricamente, a macerar os grãos de trigo em água, de modo que eles amaciassem e fermentassem e dessa maneira se originou a cerveja. Depois, conseguiu cozinhá-los em potes de argila— e dessa maneira se originou a bisavó da polenta, um impasto chamado pultes, que perdurou até a era dos latinos. Na Grande Roma, uma iguaria muito requisitada se fazia com tal impasto e favas debulhadas, a puls fabota, que se oferecia aos deuses. Havia, igualmente, a puls punica, com carne, antecessora do atual cuscuz. À farinha mesclada ao óleo, um pouco de água e de ovos, eventualmente, se chamava de picea— um disco que se abria com as mãos e se assava sobre pedras incandescentes—, a tataravó da pizza.

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Às vezes, se cortava a picea em finas tiras que se fritavam e então se lançavam em sopas borbulhantes de carnes ou de peixes ou de cereais, como o grão-de-bico. Eram os testaroi ou testareli, tios das futuras togliatelle, que o poeta Horácio (65-8 a.C.) descreveu, extasiado, em alguns poemas. Em outras ocasiões, a picea se dividia em laminas maiores — laganum, lasanum, lasanha. Todas essas massas, porém, se serviam muito frescas, obrigatoriamente. No dia seguinte, afinal, a farinha azedava, literalmente mofava por excesso de fermentação. Apenas sete ou oito séculos depois do apogeu de Roma o mundo teria o privilégio de conhecer a pasta asciutta, a massa seca que redundaria na mágica graça que se denomina macarrão.

Fique bem claro, o aventureiro veneziano Marco Polo não tem a mínima responsabilidade na descoberta. O explorador viveu entre 1254 e 1324 e, de fato, segundo o seu livro de viagens, II milione, encontrou no Oriente a cidade de Fanfur, meio mongol e meio chinesa, na qual Ihe ofereceram “magiari di pasta assai e buoni”, excelentes pratos de massas. As receitas, todavia, não utilizavam farinha de trigo em sua composição, mas sim, um impasto de sagu. Foi o editor de ll milione, Giambattista Ramosio, no século XVI, quem introduziu na obra, de seu próprio punho, uma nota supostamente explicativa: “Com aquele impasto se faziam lasanhas… que o dito Polo provou muitas vezes e, depois de secas, carregou consigo de volta a casa”.Infelizmente, a arbitrariedade de Ramusio complicou a história, embora os sucessivos editores do volume tenham expurgado do texto o que Marco Polo não havia escrito. Na realidade, a palavra e o produto macarrão são sicilianos, de raízes arábes-mouriscas. A expressão é dialetal e perdura até hoje, derivada de maccarrani, plural maccarruna, filha do verbo maccari, que significa achatar ou esmagar—amassar com bastante força, enfim. Naqueles idos, a Sicília controlava a produção, o transporte e a comercialização do Triticum durum, lá implantado pelos fenícios ao menos 2 mil anos antes de o pai de Marco Polo ter se casado.

Comprova documentalmente essa teoria o tratado Nuzhat Al-mushtaq fi Ikhtiraq Al-afaq (ou “A dissertação de um apaixonado pelas peregrinações através do mundo”), escrito por um certo Abu Abdallah Muhammad ibn Muhammad ibn Idris em 1154 e no qual aparece pela primeira vez na história a descrição do processo de fabricação da pasta asciutta.Segundo Idris, porque viajavam bastante e longamente, os árabes cortavam os seus impostos de farinha e água em longos fios, de modo que se desidratassem e enrijecessem depressa, ao sol, e assim pudessem se conservar por muitos meses. Aos fios se dava o apelido de al-itryia, ou trujje, ou trie no idioma siciliano—de onde provêm, ostensivamente, as aletrias, que até mesmo os portugueses utilizam na sua gastronomia.

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As trujje fulminantemente se tranformaram na iguaria-padrão dos siclianos de oitocentos anos atrás. Senhoras, senhoritas e meninas se reunem até hoje nos quintais da ilha fim de perpetrar a sua massa sagrar —e há mulheres tão habilidosas que conseguem fazer fios de até 50 metro de comprimento. Das trujje brotara todas as massas longas, finas ou grosas, maciças ou furadas, arredondadas ou achatadas, que no correr das épocas virariam os spaghetti, os tagliarini as fettuccine et cetera que se consomem no mercado internacional.

Também na Sicília surgiram massas recheadas, a partir do prmeiro raviolo, função de todos outros tipos. A palavra raviolo, singular de ravioli vem do dialetal ravis — pequeno pedaço de impasto dobrado sobre um patê de carne. Na Sicília apareceu o primeiro aparelho fabricador de macarrão, o arbitriu—literalmente, o abridor de trujje, uma prensa manipulada por dois trabalhadores,que espremiam a massa na direção de um funil que lhe impunha o formato de fitas ou de fios. Depois da dominação dos árabes, na Idade Média, as águas ao redor da ilha passaram ao controle da prodigiosa marinha genovesa. E os navegadores da Liguria se encarregaram de disseminar a massa seca dos sicilianos por toda a Itália, em regiões que lhes deram novos desenhos e novos nomes. No final do século XVI, finalmente, aconteceu a explosão, com a chegada dos tomates à cidade de Nápoles.

O episódio também é superinteressante pelas peripécias que o envolveram. Os tomates são nativos da América do Sul, mais propriamente do Peru. Descobertos pelos espanhóis, que se apaixonaram por sua linda cor vermelha, sofreram inicialmente um feroz combate de médicos e cientistas. Na corte de Madri, uma intoxicação coletiva levou à sua proibição por edito real. Um botânico italiano, Pierandrea Mattioli, acusou os de “corruptores e venenosos”. De fato, os talos e as folhas do tomateiro podem intoxicar. O sucesso do belo fruto só aconteceu nos entornos de 1595, quando um cozinheiro napolitano colocou na panela pela primeira vez apenas as partes rubras dos tomates e inventou o molho mais famoso do Universo.Inaugurou-se, então, uma parceria indestrutível, tão majestosa que, por causa dela, ainda há quem acredite ser Nápoles a inventora do macarrão. Dos tomates em diante, o trajeto se resume. Em 1824, Antonio Viviani, num poema intitulado “Gli maccheroni di Napoli”, cunhou a expressão spaghetti, diminutivo de spago, que significa barbante. Em 1919, depois do advento da energia elétrica, um certo Paolo Cirillo, mecânico de Torre Annunziata, cidade localizada 30 quilômetros ao sul de Nápoles, desenvolveu um sistema artificial de secagem das massas: o macarrão se dispunha no interior de um enorme barril de madeira aquecido por brasas, o calor distribuído por meio de um ventilador mecânico. Na década de 20, já existiam, na Velha Bota, cem indústrias de macarrão. Hoje, são mais de mil.

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O último grande passo aconteceu em 1967, quando a empresa italiana Braibanti desenvolveu uma máquina, a Cobra 2000, capaz de produzir duas toneladas de massa longa por hora, ou 2,5 toneladas de massacurta. Dante Gallian Netto, superintendente da Adria, fundada em 1951, a mais antiga companhia brasileira do setor, que dispõe de várias Cobra, explica como o equipamento funciona: “A massa, mistura de farinha, ovos, água e nutrientes como betacaroteno (um metabolizador da vitamina A), cai através deum funil numa série de trafilas de bronze ou de teflon, que lhe dão o formato necessário. Os fios são então cortados por uma guilhotina e começam a atravessar um túnel enorme, com cerca de 50 metros, onde passam, sucessivamente, por banhos de vapor e de ar muito quente. Isso, além de secar lenta e naturalmente a massa, faz com que todo o amido da mistura se gelatinize em seu interior, impedindo que o macarrão venha a se desmanchar ou a grudar durante o cozimento”.Evidentemente, a modernização do modo de produzir as paste asciutte fez crescer em proporção geométrica o seu consumo internacional. Os italianos comem 28 quilos per capita/ano. Os argentinos e os venezuelanos, 12 quilos. Os suiços, nove. Os norte americanos, sete. Os franceses, 6,5. O Brasil ainda estaciona na faixa dos 3,8 quilos per capita/ano. O que é uma pena, pois o macarrão é mais nutritivo do que o prato nacional de arroz e feijão. A potencialidade do macarrão não se mede, apenas, pela sua qualidade dietética ou pelo espaço que ocupa na Terra. Não fossem os spaghetti, por exemplo, talvez o mundo não conhecesse os garfos de quatro pontas com que se come hoje em dia. Eles foram inventados, no século passado, por um patisseiro napolitano, Gennaro Spadaccini, que não agüentava mais enrolar os seus fios num apetrecho de três pontas só.

Mangia che ti fà bene

O macarrão nutre e não engorda. Quem afirmar o oposto — ah, esse não sabe o que está dizendo. Atualmente, aliás, mesmo os mais preclaros dietistas já não acusam o macarrão dos crimes da obesidade. A dieta da moda na Europa, a mediterrânea, proposta pelo cientista e cardiologista americano Ancel Keys, sugere que se comam massas como entrada nas duas principais refeições do dia, o almoço e o jantar. Desde que a continuação se faça com vegetais e carnes brancas.Keys, no entanto, não é o pioneiro nessa teoria. No começo do século, um príncipe siciliano, Enrico Alliata di Salaparuta, teósofo e fisiologista, exaltava as qualidades das massas como prato-base de uma culinária vegetariana. O que engorda, explicava Salaparuta, é a união das proteínas e carboidratos do macarrão com as substâncias tóxicas que se encontram nas gorduras saturadas dos animais. De fato, 100 gramas de macarrão contêm em média tantas calorias quanto um filé de boi com a metade desse peso. Ou seja: o segredo da leveza de uma massa está no controle daquilo que se mistura a ela. Quanto menos gorduras animais, melhor. Quanto mais vegetais, melhor ainda.Atletas em geral, principalmente os maratonistas, corredores de longas distâncias, se utilizam do macarrão como ração essencial de suas dietas. As massas, afinal, são riquíssimas nos carboidratos que no organismo se transformam em energia pura e acumulável. Além disso, são facílimas de digerir, graças à ação dos próprios fermentos salivares—em outras palavras, as massas não exigem muito esforço do estômago ou dos intestinos. Quem come apenas um belo prato de macarrão com alho e óleo em apenas uma hora volta a sentir sua doce fome.

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Uma receita superinteressante

As trujje sicilianas são as massas secas mais antigas de que se tem notícia. Não há, porém, qualquer dificuldade, além de uma certa paciência em se perpetrarem trujje (pronuncia se traie) hoje em dia. Basta o leitor acompanhar o passo a passo deste prato superinteressante, aqui demonstrado pelo jornalista e gastrônomo Silvio Lancellotti, que o recolhe. em velhíssimos arquivos familiares.Ingredientes para quatro pessoas: 500 gramas de farinha de semolina de trigo. Uma xícara de vinho branco, bem seco. Sal. Água tépida.1. Numa vasilha qualquer, misturar a semolina, o vinho branco e o sal. Acrescentar a água necessária para obter uma pasta bem homogênea.2. Depois de amalgamar bem a pasta, produzir pelotinhas de uns 2 centímetros da diâmetro. Deixar que as bolinhas descansem cerca de 30 minutos.3. Com o Indicador, furar cada pelota. Delicadamente, mexer o dedo a fim de aos poucos alargar o vazio e criar uma série do argolas.4. Enfiar as argolas, uma de cada vez, no chamado pau de macarrão. Ampilá-las ainda mais com movimentos breves e bem determinados.5. À medida que os colares se ampliam, recolher as meadas e enrolá-las delicadamente, não deixando de modo algum que os fios se rompam.6. Repetira operação até obter meadas da espessura de um spaghetto irregularmente grosso Deixar que sequem durante pelo menos 24 horas7. Cozinhar as meadas em caldo de carne denso e em plena ebulição, até que os fios atinjam o ponto al dente—20 a 30 minutos bastarão.8. Recolher e escorrer cuidadosamente as meadas. Polvilhá-las com pimenta, vermelha em pó e abundante queijo ralado (pecorino ou parmesão).9. Despejar azeite de oliva a gosto. Servir com um ovo frito, de gema ainda mole, por cima Acompanham as carnes da preparação do caldo.

Para saber mais:

A reabilitação do tomate

(SUPER número 10, ano 3)

Ardente prazer

(SUPER número 1, ano 4)

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