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Trajetória de um problema retrata ensino decadente no Brasil

Artigo do professor Luiz Barco, analisando possíveis razões da decadência do sistema escolar brasileiro.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 31 out 1990, 22h00

Luiz Barco

Outro dia presenciei uma cena curiosa: uma jovem mãe tentava responder à pergunta de sua filha de 5 anos sobre como nascem os bebês. Em dado momento a menina cortou-lhe a frase e disse: o que eu quero saber é se eles nascem com roupa ou sem roupa. Esse episódio me fez lembrar do ensino nas nossas escolas. Dependendo das respostas que os alunos recebem dos professores podem se desestimular e desinteressar completamente. Mas a culpa não é apenas do professor. O sistema escolar brasileiro como um todo parece ter perdido, com o tempo, a dimensão daquilo que é oportuno responder e realçar.
Isso, entretanto, não acontece só aqui. No livro A escola dos bárbaros, as francesas Isabelle Stal e Fraçoise Thom fazem uma crítica contundente ao sistema escolar na França, analisando as possíveis razões de sua decadência. No final, há uma apêndice, onde se mostra a evolução de um pequeno problema de Matemática que recebeu cinco versões ao longo do tempo, e retrata bem a situação do ensino francês. Adaptei livremente essas versões às nossas condições.
Na primeira delas, da década de 60, o problema era assim; 1 quilograma de feijão é vendido por Cr$ 100,00; qual foi o lucro, sabendo-se que o comerciante pagou 4/5 do preço de venda pelo produto? Trata-se de um problema inicial sobre frações e um bom entendimento sobre elas leva o aluno a solução sem grandes dificuldades. Na década de 70, o problema ficou assim: 1 quilograma de feijão é vendido por Cr$ 100,00; qual foi o lucro, sabendo-se que o comerciante pagou 4/5 do preço de venda, que são, evidentemente, Cr$ 80,00?
Estampando a certeza de que os alunos não dominam claramente o conceito de fração com os cursos que lhes são oferecidos, o enunciado do problema já calcula os 4/5 de 100, transformando assim um problema sobre frações numa simples subtração. Ainda na década de 70, as escolas conheceram uma verdadeira febre, chamada de Matemática moderna, que no Brasil deixou seqüelas, como se nota ao ler os capítulos introdutórios dos livros adotados ainda hoje, e inferniza nossas crianças com a teoria dos conjuntos.

Nessa versão neurótica, o problema ficou assim: 1 quilograma de feijão é vendido por um conjunto de cruzeiros batizado de V. Sabendo-se que a cardinalidade de V. é 100, isto é, n (V) = 100, e que o conjunto C de cruzeiros que representa o custo do mesmo quilograma de feijão tem cardinalidade n (C) = 80, desenhe 100 pontos representando os elementos do conjunto V; represente o conjunto C como subconjunto do conjunto V; represente em vermelho o conjunto dos lucros e calcule a cardinalidade n (L) do conjunto L dos lucros da transação. Há um evidente exagero nessa versão, mas se você ainda tiver os cadernos de alguns anos atrás verá que a realidade não era muito diferente.

Na década de 80, conhecemos a onda socialiizante e multidisciplinar do curso de Matemática, onde os problemas deveriam refletir as preocupações sociais. E assim ficou nosso probleminha: 1 quilograma de feijão foi vendido por Cr$100,00 por um comerciante ganancioso. Sabendo-se que o explorado homem do campo o havia vendido pelo custo de produção, que montava a Cr$ 80,00, gerou-se um lucro de Cr$20,00. Procure no dicionário o significado das palavras grifadas e discuta com seus colegas sobre esse modo de enriquecimento.
Na década de 90, do jeito que as coisas vão , não será de estranhar se uma mãe apanhar o caderno do filho e encontrar a mais recente versão do problrminha: um citiante é ixplorado por um cumerciante que inriquece 20 mangos cum quilo de fejão. Análise u texto i procuri os erro de contíudo e di gramática e dispois fala u qui ce acha dece mode de leva vantage. Minha intenção, ao adaptar as diferentes versões do mesmo problema é mostrar que o mal que desfigura a escola tem raízes em toda a sociedade e está longe de ser conseqüência de regimes políticos ou da ação de ideologias educacionais. E a triste conclusão a que se chega é que os alunos acabam saindo da escola sem aprender Matemática nem Português.


Luiz Barco é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

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