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O voo mais longo do Brasil

5.753 quilômetros. 13 horas. 12 pousos e decolagens em seis Estados. E tudo isso só para ir de São Paulo até Recife. Nossa repórter embarcou nesse avião - e conta como foi

Por Cristine Kist (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 25 nov 2020, 18h11 - Publicado em 26 fev 2014, 22h00

Reportagem originalmente publicada pela Super em 2014

Na fila do aeroporto de Guarulhos, um casal aponta para a tela que fica sobre o portão de embarque. “Você viu quantas escalas tem esse voo?”, pergunta a mulher. Perplexos, eles começam a contar as cidades pelas quais o avião irá passar – e são tantas que nem conseguem terminar, interrompidos pelo funcionário que carimba as passagens. Estamos prestes a embarcar no voo 1650 da Gol, que vai de São Paulo a Recife. É um trajeto de 2.133 quilômetros, que normalmente leva em torno de três horas. Mas nosso avião fará outra rota, que a princípio parece desafiar o bom senso. O Boeing 737-800 dará uma gigantesca volta de 5.753 quilômetros, atravessando o Brasil de leste a oeste duas vezes e fazendo nada menos do que cinco escalas – Manaus, Santarém, Belém, São Luís e Fortaleza – até chegar ao destino. Em vez de três horas, a viagem vai levar 13.

O voo foi criado em fevereiro deste ano pela Gol. A ideia da empresa é ir pegando e deixando passageiros pelo caminho, desde gente que vai de São Paulo para Manaus até pessoas que circulam entre os Estados do Norte e Nordeste. “A ideia é que o passageiro sempre encontre o melhor caminho no melhor horário. Esses voos longos, no cenário atual de malhas grandes e complexas, perdem a finalidade de levar a pessoa do início ao fim do trajeto, e sim se tornam alimentadores de uma rede, como um ônibus”, explica Ricardo Scorza, um dos diretores da Gol. Na prática, portanto, ninguém acompanha toda a odisseia do voo 1650. Mas eu vou fazer isso – por apenas R$ 345, comprei uma passagem que dá direito a fazer o caminho inteiro.

Meu assento é o 8C, no corredor. O avião não está lotado (cabem 183 passageiros), mas tem bastante gente. Decolamos com 16 minutos de atraso. Não por excesso de aviões na pista ou por algum problema técnico, mas porque o funcionário responsável pela remoção do finger se atrapalhou com alguma coisa. Alheia à explicação do atraso, feita apenas em português pelo sistema de som, uma família oriental se acomoda nas poltronas da sexta fileira. Enquanto o pai folheia um guia do Brasil em japonês, a mãe fica de olho nas duas filhas pré-adolescentes. Uma delas me explica em inglês que eles vão fazer um “safári” na floresta amazônica.

Logo o almoço começa a ser servido. O voo não tem comida de graça. É tudo pago, em dinheiro ou em uma maquininha que aceita cartões de crédito (ela armazena as transações e só as completa quando o avião está em solo). Às vezes a maquininha dá pau – aconteceu no trecho entre Belém e São Luís. Nesses casos, os passageiros ganham saquinhos de amendoim grátis. Mas, mesmo quando ela funciona normalmente, torna tudo muito demorado. No primeiro trecho, o atendimento é feito em pleno horário de almoço, e os comissários levam quase uma hora para atender metade dos passageiros.

(Design: Paula Bustamante/Superinteressante)

A equipe de cada voo é formada por um comandante, um copiloto e quatro comissários de bordo – três ficam no fundo da aeronave e um na parte da frente. “Alguém precisa ficar na frente porque às vezes os passageiros querem ir ao banheiro e tentam abrir a porta do avião”, conta a simpática aeromoça Shirley, a responsável por guiar os mais desorientados nesse trecho do voo. Por volta das 13h, o comandante sai da cabine com escova e pasta de dente na mão e espera cinco minutos até que um dos passageiros desocupe o banheiro. Ele e o resto da tripulação vão desembarcar já em Manaus, onde devem passar a noite. No dia seguinte, seguirão para São Luís em outro voo.

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Pousamos em Manaus às 14h41 (13h41 no horário local). Quase todo mundo desembarca, inclusive a tripulação. “A lei proíbe que os passageiros fiquem em um avião sem comissários, então a troca tem de ser feita de maneira rápida”, diz Cláudio Neves Borges, diretor de planejamento de malha da Gol. Um funcionário do aeroporto entra com uma listinha e faz uma chamada para ver se as pessoas que compraram passagem para outros destinos continuam a bordo (além de mim, cerca de 20 pessoas vão seguir viagem). Enquanto isso, o pessoal da limpeza começa a recolher o lixo – a cada trecho voado, são seis quilos de copinhos de plástico, guardanapos sujos e restos de sanduíche.

Sinto uma leve dor de ouvido e começo a me questionar sobre até que ponto foi inteligente escalar uma repórter com sinusite para fazer essa matéria. Um casal de franceses se senta ao meu lado e, 50 minutos depois do pouso, o avião decola de novo. O homem se chama Louis, está na casa dos 60 anos e é produtor de TV em Paris. Ele e a amiga (“não é minha esposa”) vão fazer um tour de um mês pelo Brasil: começaram em Manaus, estão indo conhecer os Lençóis Maranhenses e depois seguirão para o litoral do Nordeste e o interior de Minas. Ele pergunta se conheço Santarém. Explico que é uma cidade relativamente pequena, não muito procurada pelos turistas. E Belém, conheço? “Não”. E São Luís? “…”. Ele desiste e começa a ler a edição francesa de um livro chamado O Navio Negreiro, enquanto a amiga lê La Cité de Dieu (a tradução de Cidade de Deus, de Paulo Lins). Atrás de nós está sentado um grupo de quatro homens que embarcou em São Paulo e vai descer em Santarém. De lá, eles vão encarar mais três horas de lancha até Óbidos, cidade de 49 mil habitantes no interior do Pará, para participar de uma missão evangélica.

A pista de pouso de Santarém fica colada numa lagoa. O aeroporto Maestro Wilson Fonseca foi criado em 1977 pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam) como parte de um plano para facilitar a ligação entre o norte e o resto do País, mas a Gol só começou a operar lá em 2006. O aeroporto tem cinco vagas para estacionamento de aeronaves e capacidade para receber 225 mil pessoas por ano (Guarulhos pode receber até 35 milhões). Alguns passageiros desembarcam e vão andando até a parte coberta do aeroporto.

Respondo à segunda chamada do dia e começa o embarque de um grupo de 21 alunos da Apae (associação dedicada a promover o desenvolvimento e o bem-estar de pessoas com deficiência) que está indo a Belém participar de um festival de música. Eles conseguiram o dinheiro das passagens por meio de rifas e doações e, se vencerem, vão participar da próxima etapa, em São Luís. Heloísa Silva, uma das professoras que acompanham os estudantes, conta que só três alunos ainda não tinham viajado de avião: “Como eles participam sempre desses festivais, estão acostumados com essas viagens.”

(Design: Paula Bustamante/Superinteressante)

Chegamos a Belém às 18h. Depois do desembarque, o francês Louis e outros dois ou três passageiros que continuam a bordo aproveitam o avião vazio para fazer uma série de alongamentos. O corredor fica parecido com uma daquelas aulas de ginástica que a Jane Fonda dava nos anos 80. O pessoal da faxina recolhe o lixo e mais um embarque começa. Mas o perfil dos passageiros mudou. Agora, a maioria é formada por executivos. Isso não é por acaso: esta parte do voo foi planejada para atender aos empresários que se deslocam entre as capitais nordestinas durante o fim da tarde e o início da noite. Decolamos às 18h51 e, 20 minutos depois, quase todos estão dormindo. Na poltrona da minha frente, um sujeito com menos pinta de empresário lê um jornal popular. A manchete: “Sem-teto urina em policiais militares”.

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Chegamos a São Luís e sobram uns 20 passageiros no avião. Mesmo assim, uma fila se forma na porta do banheiro. “As pessoas só vão ao toalete quando o avião está no solo, o que nos incomoda muito”, reclama um dos comissários. É que esse é o momento do reabastecimento da água da torneira e do ar da descarga, além da troca dos rolos de papel higiênico: “Pode escrever no seu texto que não tem problema ir ao banheiro durante o voo”, completa ele.

No lugar em que já estiveram os missionários evangélicos, sentam três irmãs maranhenses na faixa dos 40 anos que estão indo passar férias em Fortaleza. A mais animada, Luciana, diz que vai ficar dez dias com as irmãs num spa: “Preciso emagrecer um pouquinho, né?”. Também nessa perna do voo embarcam alguns executivos, mas são os turistas que chamam mais atenção. A capital do Ceará é a cidade com o maior PIB do Nordeste, e o setor de serviços, que abrange os negócios relacionados ao turismo, responde por 77% da riqueza da cidade.

Pouco antes da chegada a Fortaleza, depois de quase dez horas de voo, as luzes são reduzidas e vejo de relance uma galinha ciscando no corredor ao lado da minha poltrona. A galinha é, na verdade, o chinelo vermelho da Luciana, que estava sentada atrás de mim e resolveu dar uma esticada no pé.

Já são 21h17 quando finalmente pousamos. O segundo grupo de tripulantes, que estava no avião desde Manaus (há mais ou menos sete horas), vai descer aqui. Eles esperam o desembarque dos passageiros e se despedem de mim com um abraço e as únicas palavras possíveis naquele momento: “Falta pouco”.

Durante a última decolagem do dia, às 22h08, vejo outros dois aviões pela janela. “Esses aviões foram planejados e não estavam na nossa rota (à frente do avião). É seguro e é previsto”, me explicou o comandante Daniel Medina Guimarães. O piloto anuncia que uma das comissárias, Cristiane, que os colegas apelidaram de “galega”, está completando 25 anos de aviação. Os passageiros aplaudem. E essa é minha última lembrança antes do pouso em Recife, porque depois disso, preciso confessar, dormi em serviço pela primeira vez.

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