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A criação da autoajuda

Primeiro livro da história, o "I Ching" organizou o misticismo oriental

Por Alexandre de Santi (edição: Bruno Garattoni)
Atualizado em 23 out 2020, 15h50 - Publicado em 26 nov 2015, 16h45

Livro: I Ching – Livro das Mutações
Autores: Fu Hsi, Rei Wên, Duque de Chou e Confúcio
Ano: cerca de 3000 a.C.
Por que ler? Livro mais antigo do mundo, ensina valores como a paciência e a necessidade de estar com o coração aberto para receber a verdade.

Estamos em meados do século 29 a.C., quase 3 mil anos antes de Cristo – ou 5 mil anos atrás. Certo dia, caminhando às margens do Rio Amarelo, no norte da China, Fu Hsi deu de cara com uma criatura intrigante. Emergido das turbulentas águas douradas do rio e repousando em uma das margens, ela tinha corpo de dragão e cabeça de cavalo. O que mais chamou a atenção do primeiro imperador chinês, no entanto, não foi a aparência exótica daquele ser enigmático, mas os oito símbolos geométricos estampados em suas costas. Cada imagem era composta por séries de três linhas – algumas inteiras, outras partidas.

Ao olhar o esquisito bicho, Hsi recebeu uma iluminação divina: aqueles signos representavam nada menos do que a explicação de todos os segredos do Universo. O soberano decorou a sequência de símbolos e sacramentou: quem estudasse os trigramas (como eram chamados os rabiscos) ganharia o conhecimento sobre qualquer coisa. Nascia o mais antigo livro da humanidade, o I.

Fantasia ou não, o fato é que a origem da obra está ligada ao legado de Fu Hsi. Reza a lenda que o imperador (também conhecido como Fu Xi) teria inventado a nação chinesa, a escrita, a pesca, a caça, a costura e até o casamento. Exagero dos biógrafos? Provável. Mas uma coisa é clara: ele não foi o único autor do livro. Assim como aconteceu com a Bíblia, a obra passou de mão em mão até chegar à versão final. Fu Hsi, o autor pioneiro, combinou os trigramas, criando 64 símbolos compostos por seis linhas – os hexagramas, também chamados de Kua. Até então, o livro tinha apenas imagens, além de ser chamado apenas de I – ideograma que designa o sentido de mutação. Afinal, para a sabedoria chinesa, tudo é mutável, exceto a própria mutação.

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Cabia aos hexagramas organizar a busca pelo autoconhecimento do leitor, uma investigação que turbina as vendas do setor de autoajuda até hoje. Para fazer a leitura das imagens, os iniciados na obra (desde plebeus até soldados e imperadores) seguiam um complicado ritual – algo como jogar búzios à moda chinesa. Primeiro, reuniam 50 caules de milefólio, uma pequena e tradicional flor do país. Depois, pensavam numa pergunta, chacoalhavam os caules e os lançavam sobre uma mesa. Pronto: a posição das varetas originaria uma sequência numérica que apontava para um dos 64 hexagramas. Nele, estaria a resposta. Nada muito diferente do que faziam as pitonisas da Grécia Antiga e xamãs.

Em sua forma original, o I não passava de um amontoado de imagens – passíveis de diferentes tipos de interpretação. A organização da visão de Fu Hsi em forma de livro só foi acontecer durante a dinastia Chou, em 1150 a.C., dois milênios depois. Os 64 símbolos ganharam comentários escritos pelo rei Wên ao longo dos sete anos em que esteve preso numa masmorra por tentar dar um golpe na monarquia – tentou de novo assim que saiu do cárcere e conseguiu assumir o trono. São conselhos curtinhos reunidos no capítulo Julgamento. O texto do hexagrama 4, por exemplo, diz: “Se você é sincero, terá luz e sucesso”. Exatamente como as “pílulas de sabedoria” que encontramos nas prateleiras de autoajuda, biscoitos da sorte e no Facebook – com a diferença que são os conselhos originais.

“O destino dos homens segue leis imutáveis que têm de ser cumpridas. Mas o homem tem o poder de moldar seu destino, na medida em que sua conduta o expõe à influência de forças benéficas ou destrutivas”

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Após a morte do rei-autor, seu filho, o duque de Chou, deu andamento ao trabalho do pai e escreveu o capítulo Linhas, a parte mais incompreensível do livro – com quês de psicodelismo. Tente entender o hexagrama 38: “A raposa espia: ela vê porcos enlameados se aproximando e uma carroça cheia de fantasmas”. Nada, porém, que diminuísse a aura da obra. Pelo contrário. Com os acréscimos do rei Wên e do duque de Chou, o I teve vida longa, chegando até mesmo a orientar diretrizes de governo – como se fosse uma espécie de Constituição.

Muito tempo depois, por volta de 500 a.C., um homem conhecido como Kung Fu Tsé – ou melhor, Confúcio – resolveu dar seus pitacos na obra. Além de redigir o capítulo Dez Asas, o maior sábio chinês acrescentou a expressão ching ao que até então era apenas I. Por ching, entende-se algo como “o clássico”. Agora, sim, o Livro das Mutações tinha início, meio e fim. E nome completo. Mas sua história estava longe de acabar. Tanto é que no século 20 um famoso psicanalista encontrou no I Ching uma infinidade de pontos enigmáticos e acabou considerando-o um conjunto de “fórmulas mágicas” conduzidas por “agentes espirituais”. “Esses poderes constituem como que a alma viva do livro, que é, portanto, uma espécie de ser vivo, e a tradição supõe que se podem fazer perguntas ao I Ching e esperar receber respostas inteligentes”, afirma o autor do prefácio da versão lançada em 1949.

O nome dele? Carl Gustav Jung, o fundador da psicologia analítica. Alguém a quem o yin e o yang – o claro e o obscuro que simbolizam a dualidade da sabedoria chinesa – encantaram durante décadas a fio. Entre leituras e milefólios jogadas à mesa, Carl Jung foi apenas um entre os tantos que não apenas respeitaram o I Ching como o transformaram em base para o pensamento moderno.

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