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Berlim – A cidade mais legal do mundo

Duas guerras mundiais. Ascensão e queda do nazismo. Um muro divisor por quase 30 anos. Mesmo depois de tanta coisa, Berlim é hoje a capital criativa e cultural da Europa. Como isso foi possível?

Por Amanda Luz
Atualizado em 31 out 2016, 18h52 - Publicado em 3 jun 2013, 22h00

Em 1976, David Robert Jones decidiu deixar Los Angeles para morar em Berlim. Atraído pela cena musical em ebulição, o músico de 29 anos buscava uma nova carreira na cidade dividida por um muro. Nos três anos em que morou por lá, manteve uma vida noturna intensa, e se deixou influenciar por bandas alemãs como Kraftwerk e Neu!. O apartamento barato em que morava ficava no bairro de Schöneberg, em um prédio que tinha sobrevivido às duas guerras mundiais. A rotina diária consistia em tomar cafés tardios com outros artistas e intelectuais e andar a pé entre as lojas de antiguidades e livrarias. David Robert Jones na verdade é David Bowie. O músico se reinventou na capital alemã e, graças a ela, lançou os álbuns da “Trilogia de Berlim”: Low, Heroes e Lodger. “Berlim é o centro de tudo que está acontecendo e irá acontecer na Europa nos próximos anos”, disse Bowie à revista Vogue na época.

Trinta e cinco anos e um muro posto abaixo depois, Bowie nunca teve tanta razão. Mais do que antes até, Berlim hoje é considerada um centro de atração para artistas de todo o mundo, que se mudam para lá por considerarem “Berlin, the place to be” (em inglês: “Berlim, o lugar para se estar”), como diz a campanha oficial de turismo da cidade desde 2009.

E a cidade não desaponta: oferece a infraestrutura que os moderninhos e descolados procuram. Prédios abandonados viraram apartamentos invadidos (e baratíssimos), fábricas e bunkers inativos são espaços para galerias de arte ou festas, e há até um antigo aeroporto e uma torre de espionagem que servem de palco para festivais de música. Há mais de 420 galerias de arte – a maior concentração da Europa – que dividem a atenção com os museus e os tours guiados de arte de rua. Além disso, o crescente número de start-ups alemãs fez com que pipocassem espaços de coworking, onde profissionais de diversas áreas dividem um mesmo escritório e participam de projetos mútuos. Tanto incentivo já virou estatística: de acordo com o último relatório oficial da prefeitura, 160 mil profissionais estão empregados na indústria criativa (música, artes, cinema, TV, design, desenvolvimento de softwares etc), que produz 10% do PIB da cidade.

Como fazer uma cidade criativa

Berlim não é a primeira capital criativa do mundo. Paris, Nova York, Los Angeles e Florença também já foram locais de atração para profissionais em busca de inspiração e contato com outros artistas. Assim como o Bowie em Berlim, Picasso criou o cubismo na Paris do início do século passado e Mozart estabeleceu a carreira em Viena no século 18. Mas será que a história teria sido a mesma se eles não tivessem se beneficiado da atmosfera das capitais culturais que escolheram?

A resposta é provavelmente não. Artistas tendem a se reunir em agrupamentos para compartilhar ideias e se apoiar uns nos outros na produção artística. Em um trabalho publicado no Jornal da Universidade de Oxford, os economistas Michael Storper e Anthony Venables chamaram esse burburinho de buzz – os processos que ocorrem ao mesmo tempo no mesmo lugar, e que acabam gerando mais informação, ideias e inspiração. Segundo Storper e Venables, para o buzz ocorrer, é preciso ter interação cara a cara, em um ambiente que envolva consumidores, críticos, turistas e criadores de políticas de incentivo. Coisas que existem em Berlim de sobra. Na prática, essa interação pode acontecer até nos espaços de coworking. “As pessoas que chegam à cidade, principalmente as das áreas criativas, precisam de espaço com estrutura para o trabalho, com uma rede de contatos e uma vida social envolvida”, conta o brasileiro Caique Tizzi, um dos fundadores do Agora, espaço de coworking criado por dois brasileiros. Localizado no bairro hip de Neukölln, eles recebem até 70 profissionais por dia, de artistas residentes a freelancers e programadores.

Para o economista Ake Andersson, em Handbook of Creative Cities (“Guia das cidades criativas”, sem tradução), algumas condições preparam o terreno para a inventividade humana desde a Grécia Antiga. Por exemplo, cidades culturais sempre foram associadas a grandes fluxos de imigração e comércio. Foi o caso de Veneza no Renascimento e de Paris no século 20. Berlim recebe imigrantes há séculos também: judeus desde 1671, protestantes franceses, os huguenotes, desde 1677 – e, já no século 17, as leis de imigração foram afrouxadas para que a cidade pudesse receber fugitivos religiosos e minorias étnicas.

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Estar em uma cidade criativa também tem seus benefícios para a conta bancária. Um estudo feito por Christiane Hellmanzik, economista da Universidade de Hamburgo, analisou os dados da produção de arte moderna em Paris e Nova York no século 20 e apontou que os artistas dessas áreas não somente começaram a criar mais cedo do que os outros, como suas obras também são as mais valiosas em leilões. Ou seja, a origem e a data de criação da obra valem como um selo de “boa safra” de produção. Mas quais foram os eventos na história de Berlim que a tornaram uma cidade criativa?

Uma capital-instalação

Berlim tem 775 anos vividos bem no meio de reviravoltas históricas. Apenas no século 20, a cidade começou como capital da Prússia para depois sobreviver a: duas guerras mundiais, duas unificações, ascensão e queda do nazismo, e construção e queda de um muro divisor por quase 30 anos. “Paris é sempre Paris, enquanto Berlim nunca é Berlim”, disse o político francês Jack Lang, já nos anos 2000. Há quem diga que, na comparação, as vizinhas Paris, Londres e Roma são cidades-museu enquanto Berlim é uma cidade-instalação-artística. Depois da Segunda Guerra, a capital em ruínas precisou reconstruir não só sua estrutura física, mas também sua identidade. Seiscentos mil apartamentos foram destruídos pelos bombardeios e apenas 2,8 milhões das 4,3 milhões de pessoas que originalmente viviam lá permaneceram.

A linha do tempo para entender como Berlim chegou a polo artístico começa nos anos 20, quando a cidade foi construída para ser o centro político e financeiro do país. “A infraestrutura foi planejada para atender de 4 a 5 milhões de habitantes, mas, com a Segunda Guerra Mundial e o muro, o que aconteceu foi uma drástica diminuição da população”, diz Nikolaus Wolf, professor de História Econômica da Universidade de Humboldt, em Berlim. Mesmo depois da reunificação, a população está longe de atingir os números de antes. Hoje a capital alemã tem 3,5 milhões de habitantes, o que deixa boa parte de sua estrutura vazia.

Quando o muro foi construído, circulando a parte capitalista da cidade bem no meio do território comunista, a fuga de gente e capital se consolidou. “As empresas, pequenas e grandes, se mudaram em massa para outras regiões da Alemanha com medo de expropriação. Os bancos transferiram as sedes, seguradoras como Allianz e até a Siemens, que sozinha empregava mais de 50 mil pessoas na cidade, saíram de Berlim”, conta Wolf. Para resolver o problema, a Alemanha Ocidental começou a oferecer subsídios para quem se mudasse para a porção capitalista de Berlim, desde investimentos para novos negócios a liberação do serviço militar obrigatório. Mas não foi o suficiente para reverter a situação.

Depois que o muro caiu, em 1989, o boom econômico esperado com a reunificação da cidade não veio, já que as empresas não precisavam mais voltar suas sedes para Berlim por causa da era da computação. A cidade continuava oferecendo uma estrutura maior do que a população precisava e os artistas já tinham chegado. O resultado: aluguéis extremamente baratos em comparação com outras capitais europeias e prédios abandonados para serem ocupados para moradia, trabalho e instalações artísticas. De fato, hoje em dia, 85% da população mora em propriedades alugadas. O valor mensal para um apartamento de 100 m2 é de 796 euros, enquanto que em Londres é 1 250, e em Paris chega a 2 462.

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“Eram muitos prédios vazios sem dono, uma nova cidade com bairros a serem explorados, e as possibilidades eram muitas. As pessoas simplesmente iam de um evento a outro, gastando 10 marcos alemães [5 euros] por noite”, conta o cineasta alemão Lucian Busse. No ano passado, ele lançou o documentário Berlinized: Sexy an Eis (“Berlinizado: Sexy no gelo”) mostrando como era o espírito hedonista depois da queda do muro, e que moldou boa parte da imagem da cidade de hoje. Foi nessa época que surgiu o prédio ocupado mais famoso da cidade, o Kunsthaus Tacheles, formado por artistas que tomaram uma antiga loja de departamentos bombardeada e a transformaram em um centro de arte com exposições, estúdios, balada e cinema. O espaço foi fechado em meados de 2012 após anos de disputas legais. Era o sinal dos novos tempos.

Qual a próxima parada?

Uma capital cosmopolita com aluguéis baratos parece um paraíso, mas a realidade anda mudando nos últimos tempos. O valor médio do aluguel em Berlim subiu 8% no último ano e 26% nos últimos cinco anos, segundo a companhia imobiliária berlinense ImmobilienScout24. Será que o prefeito Klaus Wowereit, quando disse que “Berlim é pobre, mas sexy”, em 2004, preveria a possibilidade de a cidade ficar sexy demais? Cartazes pela cidade reclamam do “enobrecimento” de bairros tradicionalmente proletários, como Neukölln, que foram tomados por famílias, turistas e yuppies endinheirados, principalmente do sul da Alemanha e de outros países europeus. E a revista alemã Der Spiegel já anunciou em manchete de anos atrás: “De pobre e sexy, para rica e inacessível”, culpando a especulação imobiliária pelo encarecimento dos aluguéis da cidade.

Os moradores podem reclamar das invasões nos seus Kiez (vizinhanças menores, dentro dos bairros, com comércio local e características próprias), mas é possível que a cidade não escape do ciclo inevitável de desenvolvimento de uma grande metrópole, como aconteceu em Londres e Paris. A boa notícia é que o medo de que a festa tenha acabado não é inédito. “Quando o muro caiu, a gente pensou ‘o paraíso acabou, os aluguéis vão subir’. E foi surpreendente ver depois que ainda havia tantas possibilidades”, diz Busse. Para ele, boa parte do potencial artístico hoje vem de pessoas que ainda estão chegando de outros lugares. “Isso é o que, em uma maior amplitude, sempre aconteceu em Berlim.” De fato, para uma cidade que sobreviveu a Hitler, ao nazismo e a um muro divisor, os desafios do futuro parecem fichinha.

Mapa da criatividade

Houve uma época não muito distante em que Berlim não tinha um centro, tinha dois. Um próximo ao zoológico, na parte ocidental, e outro em Stadtmitte, na porção oriental. Essa que prevaleceu e é hoje lar dos criativos.


Ilustração: Mariana Coan / Foto: Davi Boarato

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1. Kreuzberg
É o bairro mais boêmio de Berlim. O mix de imigrantes turcos, estudantes, proletários, punks e artistas fazia parte do charme local, mas a área não fugiu à invasão dos turistas nos últimos anos. Ao redor da Oranienstraße está o coração da vida noturna local, mas o bairro ainda inclui atrações como o Badeschiff, uma piscina pública flutuante no rio Spree, e as tradicionais feirinhas de comércio turco.

2. Neukölln
De periférico a hip, a tradicional vizinhança de imigrantes e proletários muda a toda hora. Os estudantes e artistas que queriam fugir dos aluguéis caros em Kreuzberg atravessaram o canal em direção a Neukölln. Os cafés, bares e galerias de arte redor da rua Weserstraße não estão nem nas fotos do Google Street View tiradas em 2008. As lojas de antiguidades dividem espaço com restaurantes de culinária paleolítica, mercadinhos de comida orgânica e cafés com brunch.

3. Schöneberg
Além do endereço de David Bowie, foi também a vizinhança do escritor Christopher Isherwood, do físico Albert Einstein, do cineasta Billy Wilder e onde nasceu a atriz Marlene Dietrich. Estudantes procuram pelos aluguéis mais acessíveis em comparação com Kreuzberg e a região da Nollendorfplatz é área gay desde os anos 1920.

4. Mitte
Quem manda aqui é a chanceler Angela Merkel e as últimas tendências da moda. Prédios do governo e museus dividem espaço com cafés e galerias. Por muitos anos, Mitte foi o endereço do squat mais famoso da cidade, o Kunsthaus Tacheles.

5. Prenzlauer Berg
Depois do muro, atraiu muitos jovens e artistas, com os aluguéis baratos e apartamentos vazios. O resultado são muitos bares, restaurantes, cafés e lojas. Nos últimos anos, o aumento dos aluguéis causou uma mudança no perfil dos moradores: de jovens estudantes para jovens famílias yuppies (e muitos bebês).

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6. Friedri-chshain
Também foi tomado por artistas e estudantes após a reunificação. Algumas das baladas mais famosas da cidade também ficam nessa região, como a Berghain, localizada numa antiga usina elétrica.

 

 

Berlim abandonada
Desde a queda do muro, os prédios abandonados são parte do cenário da cidade e formam um novo tipo de turismo e aproveitamento urbano

Prinzessin-nengärten
Num espaço vazio que ficava entre muros em Kreuzberg, o grupo de ativistas Nomadisch Grün criou uma horta coletiva com alimentos orgânicos cultivados por locais. No meio dos prédios, é possível ajudar na horta e comprar verduras e frutas.

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Aeroporto Tempelhof
Símbolo da era nazista, o aeroporto foi desativado em 2008 e transformado em parque público, dois anos depois. O prédio principal é aberto para visitação apenas em tours guiados, já a área externa ao redor é livre para a prática de esportes nas antigas pistas para aviões. É comum ver grupos com churrasqueiras portáteis na grama.

Stattbad Wedding
Não precisa levar os óculos de natação para essa piscina pública – ela está vazia. Foi construída no início do século 20 e transformada em espaço para exposições de arte urbana e festas.

Teufelsberg
Uma torre de espionagem da inteligência americana localizada no topo de uma colina artificial, formada por destroços da artilharia nazista e escombros da Segunda Guerra. Teufelsberg foi privatizada, mas os projetos de reaproveitamento não saíram do papel. Hoje, é visitada por aventureiros que pulam a cerca de proteção e escalam o prédio.

Spreepark
O parque de diversões da Berlim Oriental não sobreviveu ao capitalismo. Privatizado, o projeto de reabertura não saiu do papel e hoje tenta espantar os jovens que pulam a cerca para uma visita clandestina. Tours guiados e pagos foram abertos em datas esporádicas para diminuir as invasões.

 

Imagens: Getty Images

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