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De onde vêm todos os produtos do mundo

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h02 - Publicado em 15 abr 2011, 22h00

Janaína Camara

Uma cidade inteira na China trabalha só para encher sua gaveta de meias. Outra cuida do seu pote de canetas. E tem uma especializada em gagdets. São os sacolões globais de tranqueiras e eletrônicos, onde as maiores e menores empresas do mundo vão às compras.

Pense com a gente: se existisse só uma fábrica para fazer tudo no mundo, em que país ela estaria? Não é difícil adivinhar: China. Os chineses são hoje os maiores exportadores do planeta. (Oficialmente, desde agosto, quando passaram os alemães.) Eles foram espertos: criaram um modelo de sucesso com preço baixo e produção acelerada. E, em alguns casos, com um foco certeiro. Esses casos são as cidades especializadas, municípios que se concentraram na fabricação de um único produto e viraram magnatas em seu negócio. Sem elas, talvez você não encontrasse guarda-chuvas no camelô quando começasse a chover. Ou não trocaria o celular por um iPhone (ele seria bem mais caro). Pra entender o porquê, conheça essas cidades, divididas em dois grandes shoppings centers para empresas: o de tranqueiras e o de gadgets.

As tranqueiras
A cada 80 dias, 20 mil gravatas chegam a uma lojinha do Brás, bairro comercial de São Paulo. É o fim de uma viagem e tanto para elas – navegam por um mês desde Shengzhou, uma cidade no leste chinês. Mas a parada no Brás não deve demorar. Pelo menos se depender de Márcio, o dono da loja. Ele costuma vender todo o estoque até a chegada da carga seguinte. Márcio não conhece muito de Shengzhou, mas sabe de algo importante: “Lá estão as gravatas mais baratas do mundo. Na Índia, são 15% mais caras. Na Europa, 300%”. É essa pechincha que garante lucro de até 20% para Márcio, que mantém em segredo o nome do fornecedor chinês (“a concorrência não pode saber”). Também por isso, “Márcio” é o nome fictício que criamos a pedido do empresário – não queremos estragar o negócio de ninguém.

Talvez “Márcio” não saiba, mas muito mais gente no mundo já descobriu o caminho das pedras até Shengzhou. Inclusive empresas ligeiramente maiores que a dele. Como a francesa Pierre Cardin e a americana Wal-Mart. Com 750 mil habitantes, Shengzhou é conhecida como a “Cidade das Gravatas”. Produz uns 300 milhões de peças por ano. A cada 3 gravatas vendidas no mundo, uma é de lá. Shengzhou fica a menos de 200 quilômetros de Datang, um município que vive da produção de meias. Tem 30 mil habitantes, mas sua população de trabalhadores chega a 100 mil, espalhada por empresas pequenas (a maior tem 800 operários). Num esforço de formiguinhas, esse aglomerado produziu 13,5 bilhões de pares de meias em 2008 – dois por habitante do planeta, e 30% das meias vendidas no mundo.

Em cidades como Shengzhou e Datang, é comum vizinhos, parentes e amigos terem a mesma função. E isso é uma cultura de toda a região a que elas pertencem: a província de Zhejiang. Lá estão também Wenzhou, a “Cidade dos Isqueiros” – produtora de 70% dos isqueiros usados no mundo todo – e Qiaotou – de onde saem 60% dos botões e zíperes vendidos globalmente (e onde há uma estátua de um botão alado, de 6 metros de altura, pra celebrar a “vocação”). A vizinhança tem ainda a cidade dos guarda-chuvas (Songxia), a dos tecidos (Shaoxing), a das canetas (Fenshui) e até a das válvulas hidráulicas (Wenling).

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Zhejiang é o que se pode chamar de mercadão global de miudezas, onde as empresas vão buscar desde quinquilharias de lojas de R$ 1,99 até artigos simples de vestuário, para reembalar e vender a você com uma etiqueta bonita (veja à esquerda onde estão as principais cidades especializadas). Essa história de segmentação começou lá pela década de 1980, quando a China ensaiava sua abertura econômica. O empreendedorismo estava em alta no país, e as oficinas familiares da cidade de Wenzhou prosperavam. O domínio de alguns setores, como o de isqueiros, acabou levando à especialização. E os vizinhos naturalmente adotaram o modelo.

Daí para a frente, alguns fatores contribuíram para encher a bola de Zhejiang no cenário global. Como a boa fama. Zhejiang é conhecida como província de trabalho – costuma-se dizer que lá estão os homens de negócios da China. (Ali foram criadas a seda e a porcelana, pra ter uma ideia.) A localização também ajudou. A província está próxima ao mar, o que facilita a exportação. E a Xangai, o que agiliza os negócios. Hoje Zhejiang vende seus produtos a mais de 200 países, principalmente a EUA, Japão, Alemanha e Emirados Árabes. E é a província chinesa com maior Produto Interno Bruto por habitante: US$ 6 mil. Acima da média nacional, de US$ 2 520.

Ninguém precisa pular de cidade em cidade pra comprar produtos diferentes em Zhejiang. Um lugar reúne todos eles: Yiwu. Encravada em um vale, a cidade é formada por ruas estreitas e lojas pequenas que vendem de tudo – de imagens de santos a relógios digitais. Tem até um mercadão central, uma espécie de grande camelódromo com 2,5 km2 (uma área em que caberiam uns 230 campos de futebol). Pra achar o que você quer comprar, é preciso olhar num mapa antes.

O primeiro andar do Distrito 1 é reservado só pra flores artificiais e brinquedos, um andar inteiro com cerca de 3 mil estandes. Outro andar tem só artigos de cabelo e bijuterias. Já no Distrito 2, há áreas especiais pra bolsas, outras pra malas de viagem. São mais de 32 mil itens divididos em 3 mil categorias principais. Um visitante que passe 8 horas diárias dedicando 3 minutos a cada estande de Yiwu levará mais de um ano para percorrer todos. E tudo baratinho – com o dinheiro com que você compra uma única bola para enfeitar a árvore de Natal no Brasil, dá pra comprar 7 em Yiwu, por exemplo.

De todos os negócios fechados em Yiwu, 70% são compras feitas por estrangeiros. Dá pra ver a força que o pessoal de fora tem por ali. As ruas de Yiwu são cheias de caminhões lotados de contêineres a caminho do porto. É fácil achar as tradings, escritórios criados para ajudar os estrangeiros a fechar negócios, mas principalmente barganhar – afinal, os lojistas só falam mandarim. E no mercado as placas são todas em mandarim, inglês e árabe.Pra atrair os grandes compradores do Oriente Médio, os restaurantes exibem o selo de Halal, a certificação de que os animais servidos ali foram abatidos de acordo com os preceitos do Alcorão. E tem até mochila da Fulla exposta, a boneca Barbie dos muçulmanos, que veste véu. Recentemente, as lojas ganharam também enfeites tradicionais do Diwali, o festival indiano das luzes – uma tática para se concentrar nos países emergentes e fugir da crise que pegou EUA e Europa. Até quem já dominou o mundo precisa renovar o estoque de vez em quando.

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Os gadgets
Zhejiang pode ser um destino quente para compras, mas o porto mais movimentado de toda a China está mais ao sul do país, na cidade de Shenzhen, província de Cantão. Shenzhen é o paraíso dos eletrônicos – produtos de tecnologia respondem por mais da metade de tudo o que é vendido pelas indústrias do lugar.

Até os anos 80, Shenzhen era uma vila de pescadores. Foi quando o governo deu benefícios a empresas que quisessem se instalar lá. Embalada no boom dos pcs, a cidade cresceu a ponto de virar destino das maiores marcas de tecnologia.

Pra entender na prática a importância da cidade, basta entender o que é a Hon Hai. A empresa é taiwanesa, mas sua fábrica em Shenzhen a transformou na maior empresa exportadora da China – e na maior fabricante terceirizada de eletrônicos do mundo. É lá que Dell, Nintendo, Apple, Sony e tantas outras montam seus produtos. Empresas como essas não fazem seus produtos em fábricas próprias. Delegam o trabalho a terceiros especializados, pra reduzir custos. Como a Hon Hai. Você pode nunca ter ouvido falar da empresa, mas ela é grande. Em 2008, a venda dos seus produtos somou quase US$ 62 bilhões, o que a torna maior do que empresas como Microsoft, Boeing e Renault. Tem filiais na Rússia, na Índia, no Vietnã, no México, na Austrália e no Brasil – em Manaus -, mas o quartel-general desse colosso é mesmo a unidade de Shenzhen: um conjunto de fábricas com 270 mil funcionários e 2,6 km2 (veja como o complexo funciona na página anterior).

O lugar é praticamente uma cidade: tem dormitórios, restaurantes e áreas de lazer. Nas fábricas, prédios baixos de 5 andares, não há nenhum aviso de que ali são fabricados iPods, Kindles ou qualquer outro produto – em regra, a Hon Hai não divulga os eletrônicos que produz. A lei do silêncio tem de ser respeitada inclusive pelos funcionários, por determinação do fundador da empresa, o empresário Terry Gou. (Até porque a unidade monta alguns produtos que ainda estão em teste.)

Desrespeitar essa regra pode representar a morte. Literalmente. Em 16 de julho, o operário Sun Danyong, de 25 anos, apareceu morto depois de cair da janela de seu dormitório. A morte ainda não foi esclarecida, mas acredita-se que ele tenha se suicidado depois de duramente interrogado por executivos da empresa. (Um protótipo de iPhone que estava sob sua responsabilidade havia sumido.)”Gou compara suas fábricas a acampamentos de exércitos”, diz o economista americano Antoine van Agtmael, no livro O Século dos Mercados Emergentes. “Ele se orgulha de impor disciplina militar e metas rígidas.”

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Foi a segunda história que Apple e Hon Hai tiveram de remediar. Em 2006, um tabloide britânico acusou a Hon Hai de impor trabalho demais aos operários por salário de menos. E a Apple, pressionada pelos investidores, foi até Shenzhen investigar as alegações. No fim, no entanto, a comissão da empresa americana afirmou não ter encontrado irregularidades graves nas fábricas.

As reclamações contra as condições de trabalho na China parecem não ter afetado sua popularidade no mercado global. Já a recente crise mundial afetou: as exportações chinesas, como a de vários outros países, caíram. O governo agiu e lançou um pacote de estímulo para consertar a situação, o que parece estar ajudando. Tudo para que o selo Made in China, hoje tão presente em nossa rotina, não se descole de nosso futuro.

A fantástica fábrica dos gadgets
O mundo (nem tão) mágico que produz nossos objetos eletrônicos de desejo

270 mil funcionários trabalham na Hon Hai em Shenzhen, pouco menos do que a população de Vitória, no Espírito Santo… …e os empregados não ganham nem metade do salário mínimo brasileiro.

Hon Hai – R$ 200 / mês

Brasil – R$ 465 / mês

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REFEITÓRIOS
Cerca de 10 cantinas alimentam os empregados com refeições subsidiadas. Só no almoço, são servidas 150 mil refeições, que incluem o equivalente a 10,6 toneladas só de arroz.

PORTÃO PRINCIPAL

Em épocas de negócios aquecidos, a fábrica costuma contratar até 3 mil funcionários / dia.

DORMITÓRIOS
Morar neles é de graça, mas tem seu preço. Cada quarto acomoda até 100 funcionários. Furtos são comuns. E as visitas, proibidas.

Cada banheiro chega a ser dividido por até 300 pessoas.

PRODUTOS
Atrás de baixo custo, rivais como Nokia e Motorola, Sony e Nintendo não ligam de ter o mesmo fornecedor. Confira os produtos montados na fábrica:

FÁBRICAS
Os empregados costumam fazer hora extra, o que significa trabalhar das 8 às 20 h, com dois intervalos de uma hora cada. Só as linhas de produção da Apple têm banquinhos para os operários. Nas outras, trabalha-se o tempo todo de pé.

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PRÉDIOS ADMINISTRATIVOS
A administração cuida da estrutura oferecida aos funcionários e do controle de informação e produtos dentro da fábrica – todos são instruídos a manter sigilo sobre o que é montado ali. Para garantir que isso aconteça, a fábrica tem: 1 prefeito e 1 000 seguranças.

Fontes China Labor Watch, Daily Mail, Wall Street Journal.

Volta ao mundo
Como quinquilharias e gadgets viajam da China até os consumidores, de 3 formas diferentes

TRUQUE
Alguns importadores trazem os produtos desmontados, para serem finalizados no Brasil (como a furadeira aí em cima). Desse jeito, dá pra economizar até 65% do valor total dos impostos, dependendo do produto.

1. Avião
A carga pode chegar ao Brasil em dois dias, mas sai caro: de US$ 5 a US$ 6 por quilo até São Paulo. Compensa só para produtos de alto valor, como eletrônicos.

2. Navio* via direta
A via marítima é a mais usada para produtos baratos. Sem paradas, a viagem leva pelo menos 22 dias. Custa US$ 800 por contêiner, ou US$ 0,03 o quilo.

3. Navio* com escala
A opção mais em conta. Com uma escala na Europa, demora 38 dias para chegar ao Brasil, a US$ 650 por contêiner (pouco mais de US$ 0,02 o quilo).

*Partindo do porto de Shenzhen.

Fonte Baumann Consultancy Network.

Para saber mais

O Século dos Mercados Emergentes
Antoine van Agtmael, Cultrix, 2009.

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