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O mundo secreto dos concursos de beleza

Bregas? Sim. Machistas? Também. Decadentes? Nem tanto. Competições de misses movimentam mais de US$ 5 bilhões e só perdem em audiência para final de Copa do Mundo e abertura de Olimpíada. Entenda como funciona esse grande negócio

Por Renata Cruz
Atualizado em 31 out 2016, 18h53 - Publicado em 30 jun 2008, 22h00

O cenário se restringia a um jogo de luzes e gelo-seco digno de um show de formatura. Na área nobre da platéia, a primeira fileira era reservada aos jurados. O público reunia homens e mulheres que pareciam se conhecer, como os moradores de uma cidade do interior que se encontram no baile da rainha da primavera. Sem glamour nem empolgação (e também sem muita beleza), as candidatas se esbarravam umas nas outras, sorrindo e contorcendo o pescoço enquanto desfilavam ao som de Alexandre Pires. Na platéia, o grupo mais animado era a caravana de Goiás – uma minitorcida de meia dúzia de pessoas que entoava gritos de apoio à representante do estado. No resto do país, quase ninguém deu bola. Mas, para aquelas pessoas que enchiam o salão do Citibank Hall, em São Paulo, era a noite mais importante do ano: 27 garotas representando as unidades da Federação disputavam a coroa de Miss Brasil 2008.

Você reluta em acreditar, mas esses concursos ainda existem. E, por mais cafonas e machistas que sejam, estão longe de ser decadentes. Ok, não há como negar que no Brasil competições de mulheres bonitas desfilando com pouca roupa perderam a graça e a relevância há pelo menos 20 anos. Mas, no resto do mundo, o cenário (as mulheres e o público) é outro. O Grand Slam da beleza está cada vez maior – 106 países se inscreveram na última edição do Miss Mundo, batendo todos os recordes de participação. Só nos EUA, esses concursos movimentam US$ 5 bilhões por ano, mais que o PIB de 50 dos países do globo. A boquinha é tão boa que, em 1996, Donald Trump, o magnata americano famoso por apresentar a versão original do programa O Aprendiz, comprou a franquia do Miss Universo, a mais importante competição do gênero, por US$ 10 milhões. Além dos direitos sobre o evento, ele também recebe cerca de 20% sobre os honorários da campeã, que durante seu reinado não costuma se levantar do trono por cifras com menos de 5 dígitos. Em 2000, o evento já havia rendido a Trump US$ 100 milhões.

Transmitido ao vivo para mais de 100 países, o Miss Universo é uma grande empresa que funciona em sistema de franquias: quem quiser participar paga US$ 80 mil e ganha o direito de mandar uma candidata ao concurso. Agora, sediar o evento é um pouco mais complicado. Os concorrentes passam por uma seleção, segundo os organizadores, muito criteriosa: além de ter boas atrações turísticas, é necessário um auditório capaz de comportar ao menos 4 mil pessoas, um teto que resista a 45 quilos de equipamentos de luz e som e um palco grande o suficiente para 80 pessoas. Considerando que 99% das nações do mundo se encaixam nessa descrição, o desempate acaba sendo simples: quem pagar mais leva. Para ser a sede de 2008, o Vietnã precisou desembolsar US$ 7 milhões.

Compensa? Parece que sim. Em 2005, a Tailândia torrou quase US$ 20 milhões para abrigar o espetáculo. Mais de 90% da grana veio dos cofres do governo, que pôde veicular durante o programa, em rede internacional, um documentário sobre o país. As cotas de patrocínio e os comerciais nos intervalos do evento geraram uma receita de US$ 200 milhões. Dez vezes mais que o investimento inicial.

Nada disso seria possível se a competição não fosse um sucesso. Em 2007, foram 600 milhões de telespectadores – ou seja, 1 em cada 10 pessoas do planeta assistiu o evento. Esse concurso kitsch com mais de 50 anos mantém-se até hoje como o 3o programa internacional mais visto no mundo, perdendo apenas para a final da Copa do Mundo e para a abertura dos Jogos Olímpicos (o Oscar é assistido por menos de 50 milhões).

O poder da beleza

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Desde que o mundo é mundo, mulheres bonitas são escolhidas como símbolos de virtude, sorte, amor. Mas a idéia de ganhar dinheiro com isso surgiu no fim do século 19, quando jornais de Paris, empolgados com a popularização da fotografia, publicaram fotos de mulheres para eleger a mais bela francesa. Fez barulho, vendeu jornal, chamou anunciante. E olhe que era só foto de rosto. Imagine se fosse de corpo inteiro e quase sem roupa… Uma fábrica de roupas de banho chamada Catalina imaginou. E, em 1952, criou em Long Beach, Califórnia, um concurso de mulheres desfilando de maiô. A Universal Studios investiu na proposta e o evento ganhou o nome de Miss Universe.

Em pouco tempo, virar Miss Universo passou a ser o sonho de 9 em cada 10 terráqueas. Os concursos de beleza tinham se tornado uma ótima oportunidade para tirar garotas do anonimato. “O papel da mulher sempre foi restrito ao mundo privado. Vencer um concurso era, e ainda é, uma forma concreta de ocupar um lugar de destaque na vida pública”, diz a antropóloga Mirian Goldenberg, professora da UFRJ e autora do livro O Corpo como Capital. Isso explicaria o fato de os maiores consumidores desse mercado serem regiões onde mulheres e homens não estão em pé de igualdade. Todas as nações árabes, por exemplo, transmitem os grandes concursos de beleza. Os países com mais tradição, considerando vitórias, participação e audiência, são Venezuela, Porto Rico, Índia, China e EUA. E não é estranho os EUA estarem nessa lista. “A cultura americana é baseada na aparência. Eles gostam de competições e gastam muito com o corpo”, diz Mirian.

De fato, os EUA alimentam esse negócio como nenhum outro país. Todo ano, 3 milhões de americanas disputam concursos de beleza. Lá, a tradição começa cedo – há até categorias para bebês de 0 a 12 meses – e inclui títulos como Miss Encantadora de Serpentes e Conselheira Nacional dos Laticínios.

As feministas, claro, torcem o nariz. Desde a década de 1960, os protestos contra os eventos são constantes. Segundo Adalgiza Colombo, Miss Brasil 1958, elas implicam “porque são um bucho”. A versão oficial é outra: concursos de beleza são vulgares e expõem a mulher de forma humilhante. Em 2007, ano em que o Miss Universo foi realizado no México, houve protestos na porta do teatro em que se realizava a competição: mulheres de vestidos brancos com manchas vermelhas usavam faixas em que se lia: Miss Juárez, Miss Atenco, Miss Michoacán – cidades que batem recordes nacionais de violência contra a mulher. No mesmo ano, a Miss Suécia se retirou da competição – grande parte da população sueca acreditava que o concurso denegria a imagem das mulheres.

O fato é que as candidatas não se sentem ofendidas nem humilhadas só por terem seu bumbum analisado por um corpo de jurados atentos. Em sua defesa, elas dizem que essa é apenas uma das partes de uma avaliação bem mais complexa e juram que, nos dias de hoje, ninguém é miss se for burra (veja no site da SUPER 5 vídeos que contradizem essa teoria). Os concursos tentam colaborar. A maior parte deles inclui entrevistas que, segundo os organizadores, são muito relevantes na escolha da rainha. O Miss América, o maior em audiência nos EUA, vai além. Lá, as candidatas precisam passar por uma prova de talentos. Vale tudo: desde dançar até demonstrar como arrumar uma mala para viagem. Só não vale citar o Pequeno Príncipe… Para os públicos mais exigentes, um escorregão de QI é mais grave que um tropeço no palco. Em 1982, a Miss Venezuela recém-eleita declarou que amava ouvir a música de Shakespeare. Seu pai até tentou criar uma banda chamada Shakespeare para amenizar a gafe, mas a moça acabou renegada pelo país e seria a única candidata venezuelana dos 20 anos seguintes a não chegar a uma semifinal no Miss Universo (veja abaixo como a Venezuela se transformou em uma fábrica de misses).

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Direto para a fama

Se forem inteligentes mesmo, as vencedoras de um concurso como o Miss Universo terminam o seu reinado com a vida feita. Além de receber US$ 140 mil, mais uma bolsa de estudos de US$ 100 mil, um guarda-roupa sob medida, uma coleção de sapatos, um relógio de US$ 30 mil, um personal stylist, um ano de salão de beleza, um apartamento com todas as despesas pagas na 5ª avenida em Nova York e uma espécie de babá à disposição, a miss ganha um belo emprego por um ano. Durante esse tempo, tem compromissos com patrocinadores e participa de eventos determinados pela organização. Viaja, em média, a um país por mês, levando sua imagem plácida de boa moça.

Sinal de que as rainhas da beleza ainda têm muito prestígio. Uma miss que sabe fazer contatos e trabalhar a sua imagem dificilmente cai no anonimato. A maioria delas vai parar no mundo artístico. Só para falar em Hollywood: Sophia Loren (Miss Roma), Oprah Winfrey (Miss Black Tenesse), Sharon Stone (Miss Pensilvânia), Hale Berry (2o lugar no Miss USA). Onze das bond girls foram candidatas a Miss Mundo. A até então desconhecida surfista australiana Jennifer Hawkins, Miss Universo 2004, é hoje um dos principais nomes do show business de seu país, com um patrimônio estimado em US$ 10 milhões. Ex-misses mais engajadas aproveitam a popularidade e o carisma para se aventurar pela política: Oxana Fedorova, Miss Universo 2002, foi assessora de um presidenciável na Rússia. Mara Carfagna, candidata a Miss Itália em 1997, acaba de ser nomeada ministra da Família no governo Berlusconi. E Irene Sáez, Miss Universo 1981, foi prefeita de Chacao, na Venezuela, e chegou a concorrer com Hugo Chávez pela Presidência em 1998.

O Brasil também tem algumas célebres ex-misses: Vera Fischer (Miss Brasil 1969), Luise Altenhofen (Miss Rio Grande do Sul 1998), Grazielli Massafera (Miss Paraná 2004)… Mas provavelmente você não sabe o nome da Miss Brasil deste ano. E o risco de ela continuar no anonimato é grande: há 50 anos o Brasil não ganha o Miss Universo e só 30% das meninas costumam ficar entre as 15 mais bonitas. Por que, mesmo sendo o país de algumas das modelos mais famosas, bonitas e bem pagas do mundo, os concursos de beleza não pegam por aqui?

Uma das explicações é simples: na terra da Mulher Melancia, ver garotas desfilando de biquíni não tem muita graça (talvez por isso você quase tenha pulado esta reportagem). A outra é mais complexa e envolve o comando das operações: por aqui, o negócio foi mal administrado. Em 1980, Silvio Santos comprou a franquia do Miss Universo, que, até então, quebrava recordes de audiência. E, dizem, esse foi o começo do fim. “Ele criou um formato muito popular, quase vulgar. Chegava a pedir que as misses pegassem uma ficha no bolso dele. Isso é coisa que se peça a uma miss?”, diz Roberto Macedo, missólogo (sim, essa palavra existe) e ex-organizador do Miss Bahia. Em 1987, o programa já estava tão mal que o “patrão” decidiu, sem mais nem menos, fechar a lojinha. De evento glamoroso passou a ser visto como cafona e ultrapassado.

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Por mais de uma década, a competição viveu no limbo: foi associada a escândalos, desonestidade e até comércio sexual. Ninguém mais estava interessado em assistir. A década de 1990 começou sem sequer ter uma Miss Brasil. Mas, aos trancos e barrancos, o concurso foi sobrevivendo. Em 2008, com uma forcinha de Nathália Guimarães, que quebrou a rotina e foi vice-campeã no Miss Universo 2007, o Miss Brasil passou a ser transmitido pela Band, com direito a patrocinador grande (Palmolive) e a prêmio de R$ 200 mil. Mas, mesmo assim, amargou o 5o lugar na audiência, com 4,2 pontos no Ibope.

Naquela noite, a Miss Goiás ficou em 3o lugar, enquanto a Rio Grande do Sul era coroada entre muito gelo-seco e poucas lágrimas. Os apresentadores, quase amadores, tentavam levantar o público seguindo a cartilha Silvio Santos. A caravana goiana voltou para casa conformada: Hollywood não passa por aqui.

 

Top 5

Quem são as superpotências da indústria da beleza

Venezuela

Além de ser a maior detentora de títulos mundiais, fez de seu concurso nacional, o Miss Venezuela, o evento mais caro e mais assistido do país.

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EUA

Movi­mentam US$ 5 bilhões em concursos de beleza – feitos para todos os gostos e idades. É líder em títulos Miss Universo.

Porto Rico

De tão grande, a franquia porto-riquenha do Miss Universo ganhou uma versão em podcast.

Índia

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Segundo lugar no Grand Slam dos concursos (calculado como um ranking de Olimpíadas). Foi , junto com a Venezuela, o país que mais levou coroas de Miss Mundo.

China

Nos últimos anos, a China ultrapassou, em colocações e títulos, países tradicionalmente ligados a concursos de beleza, como a Colômbia.

 

Fábrica de Misses

Com treinamento especializado, a Venezuela fez dinheiro e história

Em 55 anos de Miss Universo, a Venezuela foi finalista 22 vezes. Entrou para a história como o país recordista de títulos: 4 Misses Universo, 5 Misses Mundo e 5 Misses Beleza internacional. O segredo não são as mulheres, mas um homem: Osmel Sousa. Osmel era estilista e sempre gostou de desenhar rostos perfeitos. Fã dos concursos de beleza, escolhia sua candidata e a treinava escondido. Em 1979, um ano antes de se tornar presidente das Organizações Miss Venezuela, sugeriu que Maritza Sayalero fizesse uma plástica no nariz – foi a primeira candidata venezuelana a recorrer ao bisturi. Ganhou o Miss Universo. “O que isso queria dizer? Que teríamos que operar todas!”, conta Osmel.

Com visão estética e de negócio, converteu o evento em uma empresa lucrativa. Em um QG criado para treinar aspirantes à coroa, cada candidata é minuciosamente analisada e recebe sua meta: deve chegar à forma perfeita à custa de ginástica, dieta e cirurgias plásticas. Quantas Osmel julgar necessárias. “Beleza não nasce, faz-se”, diz, sem nenhum dilema ético. Seu padrão de beleza – medidas precisas, nariz fino, rosto angulado – reinou entre as misses na década de 1990. A fórmula já começa a dar sinais de cansaço – França, Israel e Suécia proibiram candidatas plastificadas –, mas está longe de ser abolida: cerca de 50% das concorrentes dos mais importantes concursos do mundo têm alguma intervenção cirúrgica.

 

Para saber mais

O Corpo como Capital

Mirian Goldenberg, editora Estação das Letras e Cores, 2007.

 

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