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Ponto final

"Você não existe. Você é um espetáculo... Você foi composta, Beatriz Caramujo". Então ela viu sua própria expressão tendo um orgasmo.

Por Luís Roberto Amabile
Atualizado em 4 nov 2016, 19h15 - Publicado em 23 jun 2016, 18h45

Beatriz Vital ainda nem havia sido concebida quando seus pais ganharam A Divina Comédia. Foi um brinde, que vinha com a compra de uma enciclopédia em fascículos. Nem era o texto original, mas uma versão adaptada, não mais em versos, publicada numa série que buscava deixar os clássicos mais acessíveis. Então os pais de Beatriz levaram sua versão de Dante para o balneário onde passariam as férias. Liam um pouco a cada noite, todas as noites, e depois se amavam. Daquele verão, quase 30 anos atrás, surgiu Beatriz, pelo menos era a história que seus pais lhe contavam. Também recordavam como chovera no balneário, chovia a cântaros, o que fez com que desanimassem de passar outras férias lá.

***

Era sem janelas o quartinho, e dentro dele se enfurnava um homem, e esse homem, ele sim tinha janelas. Muitas vezes era difícil lidar com essa condição, pois o que o homem se propunha a fazer, ele e suas janelas, exigia um tempo todo próprio, um mundo todo próprio, que passaria de forma organizada pelas janelas. Quando isso acontecia, plenitude. Senão, desengano.

***

Num dia de mares cinzentos (de um lado da avenida, mar revolto do jeito e da cor do céu; do outro, plácido mar de prédios), Beatriz começou cedo, sempre começava, sua ronda pelos hotéis. Tinha se prontificado a ser a responsável pelo balneário. Nenhum de seus colegas de trabalho entendeu. O balneário era uma cidade decadente, “com um parque hoteleiro defasado”, ninguém gostava de avaliar aqueles hotéis. Mas Beatriz se ofereceu. Queria conhecer o lugar em que seus pais passaram as férias anteriores ao seu nascimento. Ali, a cada hotel que visitava, voltava-lhe o pensamento de que talvez tivesse sido concebida num daqueles quartos.

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Os néons dos letreiros estavam acesos mesmo de manhã. Através do vidro embaçado do carro, pareciam ir de um lado para o outro, como se acompanhassem o limpador de para-brisa.

Romulus Inn movimentava-se
em verde. Remus Apart movia-se azuladamente.

Beatriz estacionou o carro e abriu as fichas dos hotéis no computador portátil, um modelo pouco maior do que sua mão. Ambos os hotéis tinham o mesmo dono, um italiano que só aparecia no verão, conferia de perto a quantas andava seu negócio e aproveitava as praias brasileiras.

Guardou o computador na bolsa, olhou outra vez os néons embaçados e agora parados. Depois se atrapalhou ao ter de abrir a porta do carro e o guarda-chuva, descer do carro e fechar a porta, quase tudo ao mesmo tempo. E, como chovia a cântaros, o guarda-chuva não bastava. Beatriz correu e ainda assim entrou pela porta do Remus Apart com água na meia, na barra das calças e respingos nas costas e nos cachos de seus cabelos.

“Que dilúvio!”, disse ao recepcionista, fechando o guarda-chuva. Ele concordou pedindo licença para pegar o guarda-chuva da mão dela. Colocou-o num pote de plástico, alto e preto, onde havia outros guarda-chuvas, e voltou para trás do balcão: “Pois não?”.

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Beatriz agradeceu, protocolou um sorriso e disse a que veio, entregando o seu cartão. Que dizia:

Guia Viajar é Preciso

Beatriz Vital / Avaliadora de Hotéis

bviuterbo@viajarepreciso.com.br

https://www.viajarepreciso.com.br

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O recepcionista se demorou na leitura. Olhou Beatriz com uma expressão à qual ela estava acostumada. O rosto do moço refletia certo espanto, como se uma mulher jovem, de traços delicados, uma mulher que parecia uma menina ainda, uma menina de cabelos encaracolados como um caramujo, não pudesse ficar viajando sozinha por aí para avaliar hotéis.

“Eu precisava que alguém me acompanhasse para ver as dependências…”, ela disse, e o recepcionista, agora sorrindo constrangido, pediu que esperasse um pouco. O senhor Dante já estava vindo.

O senhor Dante, que coincidência, quem sabe não tinha sido ali que os seus pais se hospedaram, Beatriz matutou enquanto outra vez abria o computador portátil. Então circulou pelo lobby tomando anotações sobre o hotel com a caneta virtual. Estava escrevendo sobre a decoração de colunas romanas e uma estátua de loba dando de mamar a duas crianças, quando ouviu alguém chamá-la de Beatrice.

Era um homem de meia idade, calvo, mas com pelos sobrando nos dedos que seguravam o cartão de Beatriz, nos grossos braços que saíam da manga da camisa, pelos saltando dos botões abertos da gola polo da camisa. O homem gostava de sol, via-se por seu bronzeado, mas não estava desanimado com a chuva. Falava com empolgação e um sotaque italianado que lembrava o dos atores canastrões das novelas.

Dante disse que a aspetiava e que infine ela tinha chegado. Beatriz duvidou. Para que os hotéis fossem vistoriados durante um dia normal de funcionamento, sem que houvesse chance de algum tipo de preparação especial, o Guia Viajar é Preciso nunca avisava da chegada de seus avaliadores.

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Per favore, ele lhe pediu que o acompanhasse e enquanto ele falava e gesticulava e sorria percorreram os corredores e os quartos e a sala de café e o salão de jogos do Remus Apart. Dante adorava o Brasile e o clima tropicale e as belas donas e era un pó dificile cuidar de dois hotéis e a vita era piena de enigmas. E Beatriz, ou Beatrice, ouvia sem dar lá muita trela. Precisava preencher a ficha de avaliação, os muitos itens da ficha, e às vezes interrompia Dante, qual o número de canais da TV a cabo?, o sistema de internet sem fio pega em todos os quartos?, e ela acabou até se esquecendo de seus pais e da Divina Comédia

De volta ao lobby, perguntou se Dante também lhe mostraria o Romulus Inn.

Come no?, ele a acompanharia com piacere. Mas uma outra voz soou de repente, como numa cantina italiana.

Volaaaare! Ooooo! Cantaaaare!

Dante atendeu o celular, conversou em italiano e quando desligou, já o fez se desculpando. Sentia moltissimo, mas surgira um imprevisto, necessitava sair um átimo. Mas ela seria tratada como uma principessa. E que usasse il passaggio porque ainda chovia, e ele pegou um dos guarda-chuvas do pote preto de plástico e desapareceu no temporal.

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Il passaggio?

Atrás de uma das colunas romanas ao lado da recepção, havia uma porta. O recepcionista a abriu e acendeu a luz. Era um corredor de uns dez metros de comprimento e paredes brancas, com pintura antiga. Se Beatriz seguisse direto, ia dar no Romulus Inn, o recepcionista sorriu, e talvez ele tenha sempre um sorriso constrangido, ou quem sabe por que não pode me acompanhar, pensou Beatriz, agradecendo e já abrindo a ficha do Romulus Inn no computador portátil.

Começou a caminhar e nem ouviu a porta atrás dela se fechar. Por alguns passos, continuou entretida com a ficha, até que sentiu respingos e seus olhos desviaram para uma pequena janela aberta, a chuva batendo e o barulho da chuva batendo… Uma finestra, ela imaginou Dante falando sem parar, que figura… E um pouco mais à frente, na parede oposta, notou um portãozinho de ferro de no máximo meio metro de altura. Estava pintado com a cor da parede e sem cadeado. Meio sem saber, meio sabendo, Beatriz guardou o computador na bolsa, abriu o portãozinho, agachou e engatinhou para o outro lado.

***

Uma menina de cabelos encaracolados brincava em seu quarto, e logo a mãe a chamou: “Beatriz Caramujo, vem almoçar”. E a versão adulta da menina, ainda agachada, respondeu ao mesmo tempo em que a menina: “Tô indo”.

Beatriz entrevia a si mesma.

Levantou-se e apenas em pé se reconheceu voltando da escola, o seu cachorro Tobi, Tobi que saudade, o Tobi todo preto e brilhante, apenas uma mancha de pelo branco no peito, e o rabo balançando e correndo para ela, quase a derrubando quando ela abria o grande portão de correr ao chegar em casa.

A seguir se viu dormindo enrolada em Léo, seu namorado. Depois nua, mas talvez esse depois fosse antes, ela deitada em espiral na cama, e Léo a beijando: “Você não existe. Você é um espetáculo. Você foi composta, Beatriz Caramujo.” E viu sua própria expressão ao ter um orgasmo.

E viu uma ruazinha de nenhum carro e de poucos pedestres. E se reconheceu zanzando por ali, na companhia do vento e das caçambas de lixo. Era uma lembrança de quando começou a avaliar hotéis, entre um e outro hotel gostava de se embrenhar pelas cidades. Recordava-se mesmo que naquele dia buscava um café, entrou no vão entre dois prédios e deu com um beco.

Era ela ali, suas lembranças, ou coisas que nem lembrava, ou de que não participara, mas que tinham a ver com sua história.

E agora era criança, tinha 4 anos, sabia porque viu com nitidez o pai a levantando para que beijasse o avô no caixão, foi seu primeiro contato com a morte e o rosto infantil não expressava tristeza, mas incompreensão.

E outra vez adulta, caminhando num calçadão, numa outra cidade de praia, num belo pôr do sol, o sol entrando no mar e ela caminhando devagar após mais uma jornada de trabalho pelo Guia Viajar é Preciso, e ela ainda podia sentir a brisa daquele fim de tarde.

E viu seu pai: magro, cheio de cabelo e pronunciando com orgulho e cara de sono: Beatriz Fernandes Vital. E o homem do cartório, um senhor de cabelos grisalhos, nariz pontudo e óculos pequenos, batendo à máquina a certidão de nascimento.

E viu seus amigos de adolescência. Era seu aniversário, uma festa surpresa, Será que é mentira? Será que é comédia? Será que é divina?, cantavam-lhe.

E viu então seus pais lendo A Divina Comédia na cama de um hotel, ambos sem rugas, e os viu no lobby do hotel, e reviu a estátua de uma loba que dava de mamar a duas crianças, e o pai e a mãe outra vez no quarto do hotel, o pai cheio de vigor em cima da mãe, o barulho da cama rangendo misturando-se ao da chuva na janela, que lembrava a chuva da finestra, il passaggio, Dante, e viu o pai com uma expressão semelhante à que ela tinha visto em seu próprio rosto ao ter um orgasmo.

Beatriz Vital continuou percorrendo sua história, indo e voltando até aquele momento.

Mas de repente seus quadris estavam mais largos e as maçãs de seu rosto haviam murchado um pouco. E de rosto molhado Beatriz se via alguns anos à frente, despedindo-se dos colegas de trabalho. As lágrimas eram de emoção, estava feliz, e viu o dia anterior, contando a Léo que mudaria de emprego e que sobraria mais tempo para ficarem juntos.

Assustou-se. Porque se estava vendo acontecimentos que pertenciam ao seu futuro poderia ver algo desagradável, terrível talvez; por exemplo, a morte de alguém que amava ou a dela própria.

Não quis ver mais nada. Lembrou-se de onde estava e procurou pelo portãozinho. Mas onde estava? E onde ficava o portãozinho?

Beatriz se viu num quarto pequeno e sem janela. E viu um homem sentado à escrivaninha. Uma luminária ao seu lado clareava a mesa. O homem às vezes zanzava pelo quarto à meia luz, e o quarto era abarrotado de livros. O homem voltava a se sentar. Escrevia num caderno e quando se levantava e zanzava pelo quarto entre os livros era para achar uma saída, porque às vezes encarava o caderno e era como se desse com um beco. O homem admirava Dante Alighieri e por algum motivo gostava da expressão “a cântaros”. Estava escrevendo a história de uma mulher jovem, de traços delicados, que parecia uma menina ainda, uma menina de cabelos encaracolados como um caramujo. Ela ficava viajando sozinha por aí para avaliar hotéis. Foi o que Beatriz leu no caderno ao se aproximar do homem sentado à escrivaninha. Olharam-se por um átimo, mas foi como se apenas ela o visse. E viu o homem assinalando o derradeiro ponto final. 

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