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Por que entender de ciência?

Saiba como funciona este mundo impregnado de tecnologia é indispensável ao bem-estar de pessoas e países. Além do mais, pode ser algo emocionante

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h01 - Publicado em 12 dez 2009, 22h00

Carl Sagan

O artigo a seguir, escrito pelo astrônomo Carl Sagan, professor da Universidade de Cornell, nos Estados Unidos, e autor de numerosos trabalhos de divulgação científica – notadamente a série Cosmos para a televisão – preocupa-se basicamente com o público americano, segundo o autor, cada vez menos dotado de conhecimento científico e cada vez mais adepto da chamada pseudociência. O problema, porém, não se Limita a determinado país, ainda que haja marcantes diferenças nacionais na maneira pela qual a informação científica chega à população em geral e aos jovens em particular. Nesse sentido, muito do que se lerá a seguir aplica-se perfeitamente ao Brasil. Aqui também, como diria Sagan, referindo-se aos Estados Unidos, “vivemos numa sociedade dependente da ciência e da tecnologia, mas que não sabe quase nada disso”.

Quando desci do avião, uma pessoa me esperava, tendo nas mãos um papel com o meu nome. Era o motorista que os organizadores da conferência de cientistas na TV amavelmente haviam providenciado. “Permite que lhe faça uma pergunta?” ele disse, enquanto esperávamos minha bagagem. “Não dá confusão você ter o mesmo nome daquele cientista?” Não entendi. Estaria ele me gozando? “Sou eu o cientista”, respondi. Ele sorriu: “Desculpe. Pensei que você tinha o mesmo problema que eu”. Estendeu a mão e se apresentou: “Meu nome é William F. Buckley”. O nome era muito parecido com o de um polêmico entrevistador de televisão. Já no carro, me confessou que estava encantado por saber que eu era “aquele cientista” e indagou se havia algum inconveniente em que me fizesse algumas perguntas sobre ciência. Mas não foi sobre ciência que falamos. Ele estava interessado em ÓVNIS, bolas de cristal, astrologia. Falava dessas coisas com genuíno entusiasmo. Não me restava outra saída senão desiludi-lo. “As evidências são escassas”, repetia. “Para isso, existem explicações muito mais simples.” Sua expressão ia ficando mais sombria. Eu não apenas atacava a pseudociência como algumas de suas convicções mais íntimas. Não obstante, a autêntica ciência trata de muitas coisas que são tão ou mais emocionantes e misteriosas, que representam um grande desafio intelectual e que, além disso, estão muito mais próximas da verdade. Por exemplo, saberia ele algo das moléculas da vida existentes na fria e tênue atmosfera gasosa interestelar? Já teria ouvido falar das pegadas dos nossos antepassados, impressas há 4 milhões de anos nas cinzas vulcânicas? Que saberia da origem da cadeia de montanhas, do Himalaia, que se elevou quando a Índia se uniu à Ásia? Teria conhecimento de como os vírus destroem as células, ou de como o rádio pode ajudar a descobrir inteligências extraterrestres ou informações sobre antigas civilizações?

Como tomar decisões sem entender o fundamental?

O motorista Buckley, um homem realmente inteligente e curioso, não tinha ouvido falar quase nada sobre ciência moderna. Ele queria saber. Só que toda essa ciência foi filtrada antes de chegar ao seu conhecimento. A sociedade somente permitia que ele tivesse acesso a umas gotas de engano e confusão. Tampouco lhe haviam ensinado a separar ciência autêntica e sua imitação barata. Nos Estados Unidos há gente inteligente, esforçada, que tem verdadeira paixão pela ciência. Mas é uma paixão não correspondida. Um estudo recente indica que 94 por cento dos americanos são ignorantes nesse assunto. Curiosamente, vivemos numa sociedade dependente da ciência e da tecnologia, mas que não sabe quase nada disso. Trata-se de uma clara receita para o desastre. É perigoso e tolo continuar a ignorar o aquecimento da Terra, ou o buraco na camada de ozônio, o lixo tóxico e radioativo, a chuva ácida. Devido ao baixo índice de natalidade nas décadas de 60 e 70, a Fundação Nacional para a Ciência prevê para o ano 2010 um déficit de quase 1 milhão de cientistas e engenheiros. De onde eles virão? O que fazer com a fusão, os supercomputadores, o aborto, as reduções de armas estratégicas, as drogas, a TV de alta definição, a segurança no tráfego aéreo, os aditivos alimentares, os direitos dos animais, a supercondutividade, os mísseis da guerra nas estrelas, a chegada a Marte, a descoberta de remédios para a AIDS e o câncer? Como poderemos decidir a política nacional se não entendemos as questões fundamentais?

Sei que a ciência e a tecnologia não são apenas uma fonte de maravilhas. Nossos cientistas inventaram os arsenais nucleares e fabricaram 60 mil unidades dessas armas mortíferas. A tecnologia produziu a talidomida, os clorofluorcarbonos, o agente laranja e indústrias tão poderosas que podem destruir o clima do planeta. São razões suficientes para que as pessoas se sintam intranqüilas em face da ciência e da tecnologia. Mas não dá para voltar atrás. Não podemos chegar simplesmente à conclusão de que a ciência põe muito poder nas mãos de tecnólogos moralmente fracos e corruptos ou nas de políticos com delírios de grandeza… e nos livrarmos dela. Pois os avanços na Medicina e na agricultura salvaram mais vidas do que as que se perderam em todas as guerras da história. A ciência é uma faca de dois gumes. Seu imenso poder obriga a todos – incluindo os políticos – a prestar mais atenção às conseqüências a longo prazo da tecnologia, sem os apelos fáceis do nacionalismo e do chauvinismo. Os erros estão custando caro demais. A ciência é muito mais que um corpo de conhecimentos. É uma maneira de pensar. A ciência convida a admitir os fatos, mesmo que não estejam de acordo com nossas idéias. Ela nos aconselha a incluir nos cálculos hipóteses alternativas e a considerar qual delas se acomoda melhor aos fatos. Estimula o equilíbrio sutil entre a abertura a novas idéias, ainda que heréticas, e o exame rigorosamente cético de tudo – tanto das inovações como dos conhecimentos já estabelecidos. É uma ferramenta essencial para uma democracia em época de mudanças.

O ensino era valorizado e os professores, bem pagos

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Daí não se tratar apenas de formar mais cientistas, mas também de aprofundar a compreensão pública da ciência. A situação é crítica. Em algumas manchetes de jornais já se lê: “Nosso conhecimento científico está abaixo do mínimo”. Menos da metade dos americanos sabe que a Terra gira em torno do Sol e que leva um ano para percorrer sua órbita, um fato descoberto há vários séculos. Em testes realizados com jovens de 17 anos, de vários países, os americanos ficaram em último lugar em Álgebra. Em provas similares, as crianças americanas acertaram 43 por cento das respostas, contra 78 por cento no caso dos alunos japoneses. Nas provas de Química realizadas em treze países, os Estados Unidos ficaram em antepenúltimo lugar. Cerca de 25 por cento dos canadenses de 18 anos sabiam tanto quanto 1 por cento dos americanos que já cursavam o segundo ano da Faculdade de Química. Enquanto 22 por cento dos estudantes americanos confessam não gostar da escola, apenas 8 por cento dos coreanos dizem o mesmo. O que está acontecendo? Na década de 30, durante a Grande Depressão, os professores tinham segurança no emprego, bons salários e respeitabilidade. O ensino era admirado, em parte porque se reconhecia no estudo o caminho para sair da pobreza. Hoje, resta pouquíssimo disso. O ensino de Ciências (como das outras disciplinas) tornou-se insuficiente e pouco estimulante, os professores têm pouco ou nenhum preparo em seus campos muitas vezes nem sequer conseguem distinguir entre ciência e pseudociência. E os melhores sempre conseguem empregos mais bem pagos em outra parte.

Precisamos soar o alarme com urgência

Os estudantes americanos de curso médio gastam apenas três horas e meia por semana com lições de casa. O tempo total dedicado ao estudo, dentro e fora da escola, é de vinte horas semanais. Comparando, os japoneses da quinta série estudam cerca de 33 horas por semana. Isto não quer dizer que a maioria dos estudantes americanos seja estúpida. Se não estudam, é em parte porque não costumam receber benefícios palpáveis quando o fazem. Nos primeiros oito anos depois de formados, não auferem nenhuma vantagem econômica por saber mais Língua, Matemática ou Ciências. Em compensação, fábricas correm o risco de sair do mercado porque seus operários iniciantes mal sabem fazer contas. Uma importante indústria eletrônica informa que 80 por cento dos candidatos a um emprego não conseguiriam passar no exame de Matemática da quinta série do primeiro grau. Os pais deveriam perceber que o sustento de seus filhos pode depender de seus conhecimentos em Matemática e Ciências. Deveriam também incentivar os professores a dar cursos avançados, compreensíveis e bem dirigidos, e persuadir os filhos a participar deles. Deveriam ainda limitar o número de horas que as crianças passam em frente da televisão.

Nos Estados Unidos, só os homens jovens, brancos, de bom nível econômico e que cursaram colégios respeitados possuem um razoável conhecimento científico. É verdade que os estudantes negros e hispânicos obtêm agora melhores resultados nas provas de Ciências que no final da década de 60. Mas ainda existe um abismo separando a média dos alunos brancos e negros em Matemática. Já os universitários negros, filhos de pais também universitários, são tão bons como os brancos da mesma condição. Seriam igualmente necessários estímulos econômicos e morais para que os cientistas dedicassem mais tempo à formação do público, mediante conferências, artigos em revistas e jornais, entrevistas na televisão etc. Isso por sua vez exigirá dos cientistas um esforço maior para se tornarem compreensíveis e interessantes. A mim me parece estranho que alguns cientistas, que dependem do dinheiro público para suas pesquisas, se mostrem arredios em explicar à população o que fazem. Por outro lado, praticamente todos os jornais têm uma seção diária de astrologia. Mas quantos têm uma seção diária de ciência? Quando eu era jovem, meu pai trazia todo dia para casa um jornal onde lia avidamente os resultados dos jogos de beisebol. Os textos eram cifrados e áridos, mas eu os entendia perfeitamente. Às vezes, também ficava aprisionado no mundo das estatísticas do esporte. Hoje, reconheço que me ajudaram a entender os decimais.

As crianças precisam saber separar o joio do trigo

Vejamos agora as páginas econômicas. Não se encontra nelas nenhuma introdução esclarecedora nem alguma nota explicativa ao pé da coluna nem o significado das abreviações utilizadas. O leitor ou nada ou afunda. Mesmo assim, as pessoas lêem os tijolaços repletos de estatísticas. Trata-se apenas de uma questão de motivação. Por que não podemos fazer o mesmo com a Matemática, as Ciências e a tecnologia? O meio mais eficaz para incrementar o interesse pela ciência é a televisão. Não obstante, a TV exibe grande quantidade de pseudociêcia, um volume aceitável de temas de Medicina e tecnologia, porém muito raramente algo sobre ciência, especialmente nas grandes redes comerciais. Por que não existe um programa cujo herói seja alguém dedicado a explicar como funciona o Universo?

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Os projetos mais excitantes de Ciência e tecnologia despertam o interesse dos mais jovens. O número de doutores em Filosofia da Ciência chegou ao ápice na época do projeto Apolo (a ida do homem à Lua) e caiu posteriormente. Este é um importante efeito secundário potencial de projetos como o envio de seres humanos a Marte ou a operação de aceleradores de partículas para explorar a estrutura da matéria ou ainda o programa destinado a traçar o mapa genético humano. De vez em quando gosto de dar uma aula para crianças pequenas. Muitas delas são curiosas, fazem perguntas provocativas e demonstram grande entusiasmo pela ciência. Em comparação, quando falo para estudantes de nível médio, as coisas mudam. Quando adolescentes, os estudantes aprendem a memorizar fatos e datas, mas em geral perdem a alegria de fazer novos descobrimentos, de encontrar a vida por trás dos fatos. Desistem de fazer perguntas que consideram estúpidas, aceitam respostas inadequadas, não levantam questões derivadas do tema e vivem olhando para os lados, em busca da aprovação de seus companheiros. Algo aconteceu entre a primeira e a última série – e não foi exatamente a puberdade.

Eu acreditava que isto ocorria em parte por causa da pressão dos colegas para “não sobressair” (exceto nos esportes); em parte, porque a sociedade ensina os jovens a buscar o sucesso a curto prazo; e, em parte, por causa da impressão de que as Ciências e a Matemática não servem para comprar um carro esporte. Há algo mais, porém: muitos adultos ficam sem saber o que fazer quando os jovens lhes fazem perguntas científicas. As crianças indagam por que o Sol é amarelo, o que é um sonho, até que profundidade se pode mergulhar num buraco, quando é o aniversário do mundo ou por que temos dedos nos pés. Elas logo se dão conta de que essas perguntas aborrecem os adultos. Algumas situações desse tipo e pronto – mais outra criança perdida para a causa da ciência. Não posso compreender por que os adultos devam aparentar onisciência diante de uma criança de 5 anos. Que há de errado em admitir que não sabemos? Se temos uma idéia da resposta, podemos explicar com um exemplo. Se não temos, podemos recorrer a uma enciclopédia. Também podemos dizer: “Não sei, talvez ninguém saiba. Pode ser que você seja o primeiro a encontrá-la quando crescer”.
Mas, além de estimular as crianças, também temos que lhes dar as ferramentas necessárias para que saibam separar o joio do trigo. Inquieta-me a perspectiva de uma geração incapaz de perceber a diferença entre realidade e fantasia, agarrada cheia de esperanças a suas bolas de cristal em busca do bem-estar. Gostaria de salvar o motorista Buckley que foi me esperar naquele aeroporto americano e milhões de pessoas como ele. Acho que precisamos e merecemos conviver com cidadãos de inteligências despertas e dotados ao menos de conhecimentos básicos sobre como funciona o mundo. Estou convencido de que o conhecimento da ciência é mais importante para a segurança nacional do que meia dúzia de armamentos estratégicos. Deveríamos estar em alerta vermelho e fazer soar um alarme urgente diante do desempenho pior que medíocre em Ciências e Matemática dos adolescentes americanos e diante da apática, generalizada ignorância dos adultos.

Ameaça de colapso

Por Crodowaldo Pavan

A importância do conhecimento científico e tecnológico pode ser facilmente demonstrada: afinal, no mundo existe hoje uma população de 5 bilhões de pessoas vivendo – mal ou bem – por causa da evolução científica. No Brasil, vivemos mal. Por isso, estou totalmente convencido de que o país só sairá do estado de pobreza em que se encontra se estimular um progresso científico e tecnológico à altura. É importante que a população brasileira acredite no que nós, os cientistas, estamos dizendo, mesmo que a princípio não entenda direito o processo das descobertas mais complexas, como, por exemplo, as ameaças recentemente reveladas à ecologia do planeta. Antes de mais nada, o desafio urgente é alfabetizar e fornecer educação básica para os 8 milhões de crianças sem escola existentes neste país. O essencial ainda é a educação de modo geral. Além disso, eu solicitaria aos cientistas e educadores que, ao lado do ensino, também fizessem propaganda da importância da ciência e da tecnologia para o progresso do país.
Nesse ponto, acho que a comunidade científica brasileira vem falhando. Ela não está promovendo uma colaboração intensa e eficaz com a grande imprensa, que precisa lançar mão de artigos do exterior – o que acho muito positivo – sem ter apoio nacional. A comunidade está perdendo uma grande oportunidade de esclarecer a população, no momento em que os órgãos de imprensa, por exemplo revistas como SUPERINTERESSANTE e Ciência Hoje, dedicam mais páginas à ciência. Fora isso, nossa prioridade ainda é sensibilizar o governo a fim de que a ciência brasileira receba pelo menos o mínimo necessário para progredir. Posso garantir que os últimos quatro anos terão sido melhores do que 1990 se não houver uma correção real das despesas relativas à ciência e um interesse governamental a respeito. Se os recursos a serem fornecidos este ano não forem reajustados, a ciência no país entrará em colapso – o que será uma pena para a ciência, mas principalmente para o país.

O geneticista Crodowaldo Pavan é professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas e professor aposentado do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Foi também presidente do Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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