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Secos & Molhados: Solta os pavões

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h49 - Publicado em 31 out 2004, 22h00

Texto Sérgio Barbo

O show havia sido marcado apenas alguns dias antes. Entretanto, naquela noite, 25 mil fãs faziam o ginásio do maracanãzinho literalmente tremer, ansiosos pela presença do Secos & Molhados, o maior e mais meteórico fenômeno da década de 70

Nos bastidores, os integrantes da banda se entreolhavam, atônitos e trêmulos – afinal, era uma recepção inesperada para um conjunto formado meses antes.

O público estimado – 25 mil pessoas, sem contar as centenas do lado de fora do ginásio – quebrou o recorde do local e os dados não deixavam dúvidas. A histórica apresentação no Ginásio do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro, foi a consagração da meteórica e fabulosa carreira do Secos & Molhados. Aquele 23 de fevereiro de 1974 coroou uma trajetória que, apesar de fugaz, produziu um dos capítulos mais importantes da música brasileira.

Surgido em plena era repressiva do governo Médici, em meio a um marasmo musical, o trio paulista utilizava linguagens cênicas e musicais nunca vistas, agregando teatro, música brasileira, rock, folclore português, poesia e androginia. Rebolando afrontosamente e cantando coisas como “vira homem, vira, vira, vira lobisomem”, aqueles pavões maquiados se tornaram a maior manifestação da estética “glitter” no país e causaram furor entre público e crítica.

Ganharam capas de revistas e clipes na TV, enquanto “O Vira”, “Sangue Latino” e “Rosa de Hiroshima” dominavam as ondas radiofônicas. O sucesso se traduziu em números impressionantes na vendagem de seu primeiro álbum, sem título: 900 mil cópias em poucos meses, quando o maior vendedor da época, Roberto Carlos, vendia em média 600 mil cópias. A revolução artística e comportamental se completou como fenômeno mercadológico, e o Brasil viveu uma febre musical sem igual.

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O embrião do Secos & Molhados foi gerado em 1970, quando os vizinhos João Ricardo e Gerson Conrad ensaiavam descompromissadamente no bairo da Bela Vista. Criaram um grupo chamado Eric Expedição, cuja glória máxima foi uma nota no jornal Última Hora.

O compositor e jornalista português João Ricardo, natural de Ponte do Lima, Minho, chegara a São Paulo ainda adolescente com seu pai, o poeta e crítico teatral João Apolinário. A aproximação com o violonista paulistano Gerson se deu por afinidades musicais, sobretudo Beatles e Crosby, Stills, Nash & Young.

Enquanto Conrad se dedicava aos estudos para o vestibular, João Ricardo investiu, apoiado por uma dupla de formação variável, numa pequena série de shows no bar Kurtisso Negro, onde se aproximou do “conceito Secos & Molhados”, utilizando violas, gaita e percussão. Por intermédio da cantora Luli (da dupla folk Luli & Lucina), ficaram sabendo da existência de um cantor mato-grossense radicado no Rio de Janeiro possuidor de um timbre incomum. João e Gerson foram de trem até o Rio conhecer o tal cantor. A empatia foi imediata.

Ex-funcionário de hospital, ex-artesão hippie, ator bissexto e cerca de dez anos mais velho que os outros dois músicos, Ney de Souza Pereira desembarcou em São Paulo em novembro de 1971. Ainda custaria um ano de ensaios até que a banda ganhasse um nome definitivo. A estréia ocorreu em um bar-restaurante do teatro Ruth Escobar chamado Casa de Badalação e Tédio, com a participação do flautista carioca Sérgio Rosadas e dois músicos convidados.

Máscara

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A maquiagem pesada, que se tornaria uma marca registrada da banda, surgiu logo no primeiro show, por obra do acaso. “O Ney, que interpretava um marinheiro na peça A Viagem, no próprio Ruth Escobar, chegou atrasado para o show usando a maquiagem do espetáculo”, lembra Gerson Conrad. “Luli, inspirada por uma peça em cartaz no Rio ( Jardim das Borboletas), gostou e complementou com purpurina. Dez minutos antes de entrar, todos assumimos a maquiagem.” Não foi à toa que o produtor da tal peça carioca, Paulinho Mendonça, tornou-se um colaborador da banda, assinando o hit “Sangue Latino”.

O impacto na platéia foi instantâneo. O corpo desnudo, os trejeitos e a voz de contratenor de Ney, o aparato visual e a música, simples, porém sofisticada, causaram efeito arrasador nos presentes e a banda foi aplaudida de pé. Um dos espectadores, o jornalista e produtor Moracy do Val, registrou suas impressões sobre o show num artigo no Jornal da Tarde, o que reverteu em ainda mais público.

Impressionados também ficaram os excelentes músicos que acompanhavam Ney em A Viagem – o baixista Willie Verdaguer, o baterista Marcelo Frias (ambos ex-Beat Boys) e o guitarrista John Flavin –, que logo seriam convidados para ingressar no time (completado mais tarde pelo tecladista Emilio Carrera). Os shows no Ruth Escobar foram um êxito e se estenderam por mais uma temporada. Visionário, Moracy se tornou empresário do grupo. Tudo parecia se encaixar e o primeiro passo para o Secos & Molhados conquistar o Brasil estava dado.

O grupo já era um sucesso underground em São Paulo quando Moracy conseguiu um contrato com a gravadora Continental, em maio de 1973. Secos & Molhados, o disco, foi gravado em apenas 15 dias, em quatro canais, com produção e arranjos realizados pelos próprios músicos, cruzando pós-tropicalismo, rock progressivo, folk e fado. Tratando de temas sociais, as letras, muitas vezes, poemas musicados de escritores como Vinicius de Moraes e Manuel Bandeira, ficavam a cargo de João Ricardo e de alguns parceiros, entre eles, seu pai, João Apolinário.

Curiosamente, a capa, com a foto clássica das cabeças sobre a mesa, apresentava Marcelo Frias como um quarto elemento. “Convidamos os músicos para se tornarem membros oficiais do grupo, mas só o Marcelo aceitou. Depois, receoso, ele preferiu seguir como músico contratado, mas a foto já havia sido feita”, explica Conrad.

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O show da vida

Em 9 de setembro de 1973, pouco mais de um mês após lançado o LP, o grupo é destaque em uma das primeiras edições do programa Fantástico, da Rede Globo. Com enorme apelo visual e transmissão nacional em cores, o impacto foi monstruoso. “O Vira”, com seu ritmo alegre e letra calcada no folclore brasileiro, causou sensação entre as crianças. Na seqüência, vieram hits mais adultos, como “Sangue Latino” ou a pungente “Rosa de Hiroshima”. Sem nenhum single para promover o álbum, foram vendidas 50 mil cópias em apenas um mês. Noticiou-se que 21 das 25 prensas da Continental trabalhavam exclusivamente para a produção do LP, representando assim 90% das vendas da gravadora. Em números não-oficiais, falava-se na venda de 1 milhão de discos.

A crítica relacionou a chamada “onda andrógina” de grupos como o teatral Dzi Croquettes e à estética glitter que ocorria na Inglaterra e nos Estados Unidos. “Nós sabíamos sobre Alice Cooper e David Bowie, por exemplo, mas no nosso caso o uso da purpurina foi espontâneo”, assegura Gerson. “Acho que foi o inconsciente coletivo, um movimento paralelo ao que ocorria naquele momento no exterior.”

Seguiram-se mais shows com ingressos esgotados em São Paulo e uma curta turnê nacional. A fama era tanta que não era incomum encontrarem clones de Ney na platéia. Mas a fama também trazia os seus percalços, como num show em Brasília interrompido por ordem de um militar. “Um general ordenou que as luzes fossem apagadas enquanto Ney não cobrisse o corpo”, conta Gerson.

No Rio, no começo de 1974, realizaram uma concorrida temporada no Teatro Tereza Rachel com direito a cordões de isolamento e presença da polícia para conter o povo. Com os ingressos constantemente esgotados, Moracy do Val deu sua cartada mais ambiciosa, agendando uma data no Maracanãzinho. Outro êxito extraordinário, que marcou não só a carreira da banda como o amadorístico cenário pop brasileiro. O trio de pirilampos interplanetários parecia pronto para saltos ainda maiores.

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Ascensão e queda

Àquela altura, a fama do grupo já era notícia em outros países. Matéria na revista americana Billboard, sucesso no México (onde venderam 250 mil discos), enquanto os jornais davam conta de shows programados para a América do Norte, Europa (incluindo a Copa da Alemanha) e Japão.

Contudo, ao mesmo tempo em que experimentava um brilho até então raramente direcionado a artistas brasileiros, o Secos & Molhados dava os primeiros sinais de desgaste. João Ricardo (líder, principal compositor, mentor e controlador assumido) não escondia o ciúme do sucesso de “Rosa de Hiroshima” (música de Gerson Conrad) e teria mesmo chegado a agredir o colega nos bastidores de um show. Ao mesmo tempo, o empresário Moracy do Val foi detido pela Polícia Federal nas escadas do avião que levaria o grupo ao exterior, acusado de desvio de documentação. Sentindo-se alienado de seus poderes, magoado, rompeu todos os contratos. Foi a deixa para que João Ricardo criasse a S&M, administrada pelo próprio músico e por seu pai.

Nesse ínterim, embarcaram para a turnê mexicana, agenciados pelo poderoso empresário Marcos Lázaro, que cuidava da carreira de Roberto Carlos e Elis Regina, entre outros. Apesar do clima tenso entre a banda, a turnê foi um enorme sucesso, com um dos shows sendo televisionado para os Estados Unidos. Alguns produtores americanos chegaram a sondar o grupo para shows em Nova York e, segundo Conrad, um deles até teria sugerido que a banda se transformasse numa espécie de “novos Monkees”, com produtos licenciados e merchandising.

Vem dessa época também o divertido boato de que teriam influenciado o grupo americano Kiss. Ney Matogrosso declarou anos depois: “Um produtor americano nos propôs uma carreira com um som ‘mais pesado’, então não fomos. Não deu nem cinco meses, e o Kiss apareceu com o tal som pesado.”

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Em junho de 1974, eles gravaram o segundo álbum em absoluto pé de guerra, lutando por maior participação artística e divisões mais justas. Menos roqueiro, superproduzido, o disco seguia de forma menos inspirada a fórmula do disco anterior. Durante as gravações, Ney e Gerson receberam o contrato da S&M para que dela fossem funcionários. “Foi a gota d’água”, segundo Conrad.

Quando o novo disco (de novo batizado de Secos & Molhados) seria lançado em aparição em rede nacional no Fantástico, Ney e Gerson anunciam que estão deixando o grupo. Era agosto de 1974 e, apesar do sucesso de faixas como “Flores Astrais” (regravada anos depois pelo RPM), e das boas vendas iniciais, o disco foi tido como natimorto pela própria gravadora. Todos os três partiram para carreiras-solo, todas com momentos brilhantes. Como já era esperado, a mais bem-sucedida foi a de Ney Matogrosso, que construiu trajetória como o maior showman do Brasil.

Depois de dois álbuns de repercussão velada, João Ricardo voltou a usar o nome Secos & Molhados no final de 1977, com Lili Rodrigues (de timbre vocal bastante próximo ao de Ney), Wander Taffo (guitarra), João Ascensão (baixo) e Gel Fernandes (bateria). A despeito do esquema promocional e de uma música incluída em trilha de novela global (a interrogativa “Que Fim Levaram Todas as Flores?”), o projeto não vingou. O violonista tentou por diversas vezes ressuscitar o grupo ao longo dos anos seguintes, mas o impacto nunca se repetiu.

Decerto, o Secos & Molhados criado por João em 1970 tinha muito a fazer. Mas deixou, de qualquer forma, uma marca musical e libertária sem precedentes na cultura brasileira. O brilho foi fugaz, mas intenso.

Glitter tropical

Assim como o americano, o glitter rock brasileiro tem profundas ligações com o teatro – a começar pelas ligações de Ney Matogrosso com as artes cênicas. A purpurina e as plumas que adornavam o figurino da banda já eram famosas no show biz brasileiro graças à escrachada trupe de atores-bailarinos Dzi Croquettes (de Lennie Dale, Paulette e Ciro Barcellos). Com a fama do Secos & Molhados, então, surgiu toda uma confraria de pavões misteriosos.

A cópia mais deslavada foi a banda Assim Assado. Com o nome retirado de uma música do Secos & Molhados, o grupo usava maquiagem brilhante e foi formado pelo guitarrista Miguel de Deus, egresso do grupo tropicalista os Brazões. “Isso foi uma criação da nossa gravadora”, trata de justificar o guitarrista, tirando o corpo fora.

Na mesma época, e igualmente abusando da purpurina, veio o Achados & Perdidos, com ex-integrantes dos Diagonais. Outro padrinho glitter foi o vocalista Cornélius, do Made in Brazil, que foi ainda mais fundo no laquê com seu grupo posterior, Santa Fé.

Mas o mais cultuado dessa turma é o baiano Edy Star, lançado por Raul Seixas no disco coletivo da Sociedade da Grã-Ordem Kavernista, de 1971. Três anos depois, Edy lançou o álbum Sweet Edy, reivindicando a invenção da moda glam: “Eu já usava essas roupas e essa maquiagem nos anos 60!”

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