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SweetLif3.exe

8.979 caracteres de literatura

Por Um conto de Cláudia Fusco
Atualizado em 23 out 2020, 13h43 - Publicado em 24 jan 2018, 16h12
(Dan Verdura/Superinteressante)

Quando os Souza Campos decidiram se mudar para dentro de uma realidade virtual, houve um certo debate sobre o destino a escolher. Os gêmeos Ricardo e Henrique estavam ansiosos para levar uma vida medieval ultrarrealista, como príncipes de um reino recém-lançado na plataforma; Amanda, a irmã mais velha, tentou lembrálos que o cheiro seria medonho, enquanto convencia os pais a morarem em um parque de diversões. Eduardo e Manuela, inclusive, tinham ideias bem diferentes de destino final: ele, uma praia deserta; ela, uma vila na França.
Somente Lavínia, de seis anos, não emitia opinião.
– Para onde você gostaria de ir, querida? – perguntou Eduardo, se abaixando até a altura da menina, enquanto o resto da família entrava no carro espaçoso pela última vez.
Lavínia o encarou com seus gigantes olhos caramelo e disse, mortalmente séria:
– Eu não quero morar no videogame.
Todos riram, em especial os gêmeos, o que deixou Lavínia ainda mais emburrada. Foi Manuela quem contornou a situação:
– Mas não é um videogame,
meu amor. É apenas um lugar novo
e seguro. O mundo está difícil hoje em dia.
A garota assentiu, porque os pais sempre diziam isso para ela. Ainda não tinha idade para entender conceitos como “bombardeio”, “terrorismo” e “genocídio”. Mas não se daria por vencida:
– Eu não gosto dos homens maus.
Manuela entendia. Os criadores da SweetLif3 não eram exatamente carismáticos, uma vez que apareciam em todos os eventos e declarações públicas com capacetes de realidade virtual sobre o rosto. Pareciam alienígenas mortais e silenciosos, e lembravam a Manuela uma antiga banda que sua mãe gostava. A saudade doeu nela quando deu conta, mais uma vez, do que estavam deixando para trás.
Mudar para a realidade virtual, ou VR como diziam no resto do mundo, era definitivo. Não havia como retornar ao mundo físico, exceto em casos extremos e muito raros. Os desvirtualizados, como eram chamados aqueles que abandonavam a máquina à força ou desistiam do processo, eram considerados párias da sociedade e ficavam presos por anos na sede da SweetLif3, a maior fornecedora de VRs do mundo. Manuela não se lembrava de alguém que já tivesse saído de lá, nem sabia o que acontecia com os que não conseguiram fugir.
Não fazia sentido abandonar a SweetLif3.

***

(Dan Verdura/Superinteressante)

O debate continuou no carro, animado e acalorado, já que nenhum dos filhos cedia. Ricardo e Henrique eram especialmente barulhentos, e Amanda não se conteve:
– Vocês sabem que o mundo medieval era bem perigoso para as mulheres, né? Eu, a mamãe e a Lavínia não íamos poder sair de casa, praticamente.
Henrique se prontificou:
– Mas a gente seria a realeza. Nada ia fazer mal pra gente, nunca! Todo o povo iria nos servir!
– E eles têm uma política humanizada na VR – completou Ricardo, acertando os óculos na ponta do nariz. – Se as coisas ficarem tensas, é só acessar o painel de comando e solicitar outra experiência. Eles são muito tranquilos com isso, porque nem sempre as pessoas acertam o destino de primeira.
– Tá, mas e o lixo? Não existiam privadas…
– Tudo isso é customizável – rebateu Henrique. – Você pode escolher o nível de cheiro, calor e mais um monte de coisas. Claro que é para os fracos, né… – terminou com uma risadinha. – Mas dá pra fazer.
A discussão seguiu até o estacionamento da SweetLif3, um galpão infinito de carros e metal polido. Caminharam, ainda boquiabertos, até o guichê de atendimento inicial, polvilhado de telas. Somente Eduardo, o pai, havia conhecido a sede pessoalmente, para fazer os contratos de mudança.
Foram recebidos por uma jovem atendente de cabelos cinzentos e olhos enormes, que rapidamente checou os dados de todos. Ela sorria de ponta a ponta, o canto dos lábios tremendo de forma quase imperceptível.
– Hoje é o grande dia, finalmente! – disse ela, embora seu tom animado não combinasse com o olhar vítreo. – Eu sou a Lilla e vou conduzir vocês até suas novas vidas. Estão prontos para o tour?
Os gêmeos se entreolharam, quase gritando de euforia. Todos sorriam muito, com exceção de Lavínia, que se escondia discretamente atrás da mãe.
O grupo se dirigiu até o portão de embarque, onde seus pulsos foram carimbados com pequenos quadrados pretos.
– A instalação do chip de estabilidade leva um tempinho, então sempre começamos por ela – explicou Lilla, bem treinada, enquanto Lavínia coçava o pulso com má vontade. – Já, já vocês nem vão sentir que está aí. Vamos lá?
O portão dava acesso a um gigantesco túnel com esteiras rolantes que pareciam não ter fim. As paredes estavam coalhadas de telas imensas, que demonstravam as diferentes realidades virtuais disponíveis na rede. Eduardo e Manuela tiveram que conter os gêmeos, que não paravam de se dar soquinhos.
– Essa reação é comum – riu Lilla. – Vocês têm escolhas muito empolgantes pela frente! Mas o processo de adaptação varia para cada um, então temos uma vila nível 1 para os recém-chegados. Lá é menos empolgante que a Vila dos Dragões, por exemplo…
– VILA DOS DRAGÕES? – era Ricardo quem perguntava, a voz trêmula. Lilla riu de novo.
– … Que só se torna acessível após uma semana de vivência. Até lá, vocês vão ter que se acostumar com o ambiente.
– Você não vai migrar também, Lilla? – perguntou Manuela.
– Ah, sim, muito em breve! Assim que conseguir todos os meus créditos. Mais alguns anos e eu chego lá – ela sorriu, mas seus olhos permaneceram fixos e sérios. – Bom, nossa parada é aqui.
A família se reuniu em frente a uma tela que passava imagens de Hiroshima, Nagasaki, crianças chorando, sujeira. As cenas de terror foram substituídas por um letreiro que ocupava toda a tela, as palavras em maiúsculas: ONU SE DISSOLVE APÓS CRISE ATÔMICA E MORTE DE MILHÕES. Lilla assumiu uma máscara triste.
– A crueldade humana é a única herança que as gerações anteriores nos deixaram. Esse foi o começo. Hoje, vivemos as consequências disso que, um dia, foi aceitável. Imaginem um mundo que tivesse parado na primeira bomba atômica, em uma segunda, uma terceira… uma quarta. – Seu texto, inclusive a pausa que fazia agora, pareciam decorados. – A SweetLif3 quer mudar essa herança! Queremos deixar um legado eterno para o mundo. Queremos mostrar que há, sim, alternativa. Vocês são a alternativa. Vocês são o novo e a esperança!
Algo nos olhos de Lilla pareceu apagar por um momento, mas ela não se abalou. Conduziu a família pelo resto do tour, apresentando cada parte do processo de migração, que terminava em uma enorme sala em tons pastel. Todos encararam os leitos cheios de fios e cabos. Lavínia estremeceu.
Manuela se aproximou de Lilla, discretamente:
– Você acha que minha filha pode entrar comigo?
Lilla a encarou longamente antes de responder:
– Infelizmente, os leitos só permitem bebês de colo acompanhados das mães… Mas a Lavi é uma garota muito corajosa, não é?
A menina se dirigiu batendo os pés até o leito mais próximo, sob o olhar preocupado de Manuela. Lilla lhe deu um tapinha nas costas e uma piscadela mecânica como resposta.
Quando todos os Souza Campos estavam posicionados em seus leitos, os fios espalhados por seus corpos e cabelos, e os tampos se fechavam lentamente, ouviram a voz de Lilla, autoritária e robótica como em um sonho:
– Vocês vão dormir… vocês vão relaxar eternamente. Tudo agora será por nossa conta. Não há preocupação. Vocês vão desligar, ir fundo, fundo, cada vez mais fundo. Seus corpos estão flutuando. Suas almas estão boiando. Vocês… ah, menina idiota!
Um barulho terrível fez Manuela abrir os olhos de supetão, mas se arrependeu no mesmo minuto. O olho direito via um longo gramado, seu marido e filhos deitados preguiçosamente sob o Sol, sorridentes e descansados. O olho esquerdo enxergava sua caçula saindo do leito aos pulos, se arrastando e sendo levada para longe dela por figuras indistintas. Seus braços ainda estavam amarrados em dezenas de fios, o pequeno rosto atormentado, lavado em lágrimas.

***

Eduardo voltou para casa com uma baguete debaixo do braço e uma boina torta no topo da cabeça. Havia se adaptado completamente à rotina francesa, e fazia biquinho ao falar, apenas para alegrá-la. Já viviam no pequeno chalé havia anos. Os filhos mais velhos haviam ido embora, a velhice chegava e nada poderia ser melhor.
– Vinho? – perguntou o marido, como perguntava sempre. Ela aceitou, como aceitava sempre, e ajustou o tapa-olho para não molhálo. Brindaram a si mesmos, à vida perfeita.
Antes de dormir, Manuela passou a mão na caixa de remédios, sob o olhar carinhoso do marido. Fingiu tomá-los, como toda noite, mas garantiu que já estava boa, livre das visões, como haviam apelidado o pior fardo do mundo.
Mas, quando Eduardo dormia, ela ousava abrir o olho esquerdo. Com ele, Manuela via Lavínia. Havia se tornado uma jovem bonita, disso tinha certeza. Mas sabia que havia algo errado na forma que ela se mantinha perfeitamente ereta atrás do balcão, por horas e horas e sem se cansar, e seus lábios sorridentes repetiam eternamente o mesmo roteiro:
– Eu sou a Lavi e vou conduzir vocês até suas novas vidas. Estão prontos para o tour?

Cláudia Fusco é jornalista e mestre em estudos de ficção científica pela Universidade de Liverpool. Ministra cursos sobre naves espaciais, guerras intergalácticas, portais mágicos e fronteiras finais.
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