Texto: Guilherme Eler | Design: Carlos Eduardo Hara | Edição: Bruno Vaiano
Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, diz o ditado. Mentira. Eles não só repetem lugares (o Cristo Redentor é atingido em média seis vezes por ano) como repetem pessoas. Neide Maria Cardoso, 58, que o diga. A empresária, que vive em Piraquara, nos arredores de Curitiba (PR), foi atingida duas vezes. E sobreviveu a ambas.
Na primeira, em 1967, tinha 7 anos de idade. “Era uma quarta depois do almoço, minha mãe tirava a mesa, minhas irmãs lavavam a louça e eu lia um livro no sofá. Estava muito calor e começou a chover. De repente, um clarão atravessou a casa. Depois, ouvi um estrondo ensurdecedor.” Neide estava próxima à parede, com a cabeça na altura de uma tomada. A descarga elétrica do raio entrou por ali e derreteu o plugue, atingindo seu ouvido direito. Ela tem problemas de audição permanentes por causa do episódio.
O segundo raio caiu na véspera do Carnaval de 2009. Neide organizava uma festa para um grupo de amigos em um galpão. “Fazia muito calor e o tempo escureceu. Eram 3 da tarde e parecia noite. Mas nada de chuva.” O plano era terminar os preparativos e voltar para casa, que fica a 700 metros do galpão, antes da água começar a cair. Não deu tempo.
“Senti um soco nas costas e caí no chão. Vi minhas mãos tremendo e senti meu corpo preso ao piso. Dentro da boca, senti meus dentes quebrarem. Ouvi o trovão e pensei: é um raio, e estou morrendo.”
O raio deixou queimaduras que se estendiam das costas aos calcanhares. Seus chinelos derreteram, e suas obturações de fato se soltaram dos dentes. Ela também teve uma perda de memória parcial, que durou ao menos três meses. E o trauma ficou. “Tive que fazer terapia por anos.”
77,8 milhões de descargas elétricas despencam todos os anos no Brasil. Somos campeões mundiais no quesito. Uma consequência da localização e do tamanho de nosso território. O Brasil é o maior país tropical do planeta, e os trópicos têm o clima mais suscetível a tempestades. No mínimo 300 brasileiros são atingidos todos os anos. Um em cada três acidentes é fatal: entre 2000 e 2019, raios foram responsáveis por 110 mortes por ano, em média. Foram 2.194 óbitos em duas décadas.
Os números são parte de um relatório feito pelo Grupo de Eletricidade Atmosférica (Elat) do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cedido com exclusividade à SUPER. Trata-se de uma das pesquisas mais extensas já feitas sobre mortes por raios no mundo. “A gente chegou a um nível de detalhamento que só existe nos Estados Unidos. Além de nós, eles são o único país que conta com um levantamento tão completo”, diz Osmar Pinto Jr., coordenador do Elat. O levantamento reúne informações coletadas pela Defesa Civil e pelo Ministério da Saúde, além de casos divulgados na imprensa ou obtidos pelo próprio Elat nos últimos 20 anos.
O estudo revelou que a maior parte das vítimas de raios são homens (82% dos casos) entre 20 e 29 anos. Essa é a faixa etária de 26% dos óbitos. Um em cada quatro acidentes com raios envolve pessoas na zona rural trabalhando a céu aberto em alguma atividade ligada ao agronegócio – como a maior parte dessa força de trabalho é formada por homens jovens, eles são o grande “grupo de risco”.
O segundo local mais propício para morrer atingido por um raio é dentro de casa: as vítimas estavam em seus lares em 21% das vezes (no Norte e no Nordeste, diga-se, as vítimas em casa são mais numerosas que os mortos durante o trabalho na lavoura). Nesses casos, os raios caem próximos às residências e chegam ao interior dos cômodos através da rede elétrica ou telefônica, como aconteceu com Neide em 1967.
Toda vez que um raio cai próximo à rede elétrica, ele dá uma reforçada brutal na corrente que já passa pelo fio. Como corrente, você pode entender uma grande quantidade de elétrons fluindo em fila indiana pelo fio. A corrente extra causada por um raio percorre a fiação até atingir um para-raios, onde é redirecionada ao solo sem causar estragos à fiação da casa. Tal artifício impede que a dose de eletricidade exagerada chegue às tomadas – e, por tabela, ao corpo dos moradores. É como desviar a água de um rio para ele não transbordar.
O problema é que para-raios e outras estruturas de proteção nem sempre estão disponíveis, principalmente em regiões mais pobres ou afastadas dos centros urbanos – onde as redes elétricas e telefônicas costumam ser menos seguras.
Letícia Moreira, 37, que vive na zona rural de Santa Rita do Sapucaí (MG), não precisou sair de casa para ser atingida duas vezes. O primeiro acidente, ainda em 1998, aconteceu enquanto estava usando o telefone fixo – mesmo vivendo em uma residência equipada com para-raios. “Fui arremessada pelo impacto e só acordei segundos depois, com o ouvido queimado e o coração disparado.” Onze anos depois, um novo acidente. Dessa vez, ela observava a chuva forte que caía da janela da cozinha, descalça e encostada no fogão. Uma descarga elétrica invadiu a fiação da casa e desceu pelo objeto, que estava ligado à tomada, causando queimaduras graves.
Lugar errado na hora errada
Descubra onde estavam e o que faziam as vítimas de raios no Brasil.
33%
Em área rural ou descampada
Destes, 52% trabalhando com agropecuária a céu aberto; 18% jogando futebol; 30% outros (terreno baldio, aterro sanitário, cemitério, etc.).
21%
Em casa
Destes, 12% próximos de (ou encostados em) janelas e portas; 10% ao telefone; 5% próximos de (ou encostados em) aparelhos conectados à energia; 73% realizando atividade não identificada.
9%
Embaixo de árvores
Destes, 55% se escondendo da chuva; 9% colhendo frutas; 36% caminhando em área a céu aberto com árvores (praça, jardim, etc.).
9%
Próximo a corpos d’água
Destes, 37% na areia da praia, em um calçadão ou na margem de um rio; 27% pescando; 16% navegando; 10% dentro do mar; 9% dentro de rio, represa, cachoeira, piscina, etc.
28%
Outros