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Quem inventou a bola?

Chutes, arremessos, voleios, passes, dribles – há 30 mil anos o homem não para de jogar bola. Esportes primitivos deram origem a cerca de 200 modalidades

Por Lúcia Helena de Oliveira, Paula Cleto e Sidney Gusman
Atualizado em 18 jan 2017, 19h30 - Publicado em 30 nov 1993, 22h00

Vários povos querem o troféu por ter dado o primeiro passe. Nesse lance, os historiadores do esporte fazem o papel de juiz: querem cancelar a partida, por falta de dados precisos, ou oferecer empate a alguns dos participantes. Não há tira-teima capaz de decidir essa história. É até provável que a paixão pela gorduchinha, comum em todos os cantos da esférica Terra, tenha começado quando, um belo dia, o homem primitivo chutou uma pedra, por distração. E daí, quem sabe, achou muito mais divertido brincar de bola do que pensar na vida e suas implicações. A idéia é ingênua, mas tudo é possível. A imaginação corre solta para criar hipóteses sobre essa primeiríssima jogada.

Muitos esportes modernos surgiram, de fato, em situações bizarras. O boliche é caso típico. A modalidade apareceu entre os séculos IV e V, nas igrejas germânicas. Os pinos personificavam os pagãos, que a bola da fé — uma bolota de rocha pesada — deveria derrubar. Assim, padres e fiéis passavam horas e horas fortalecendo a sua religiosidade. Diga-se, treinando arremessos. É certo que para o homem pré-histórico a bola não carregava um significado religioso como para esses alemães — nem sequer um caráter esportivo. Desenhos em paredes de cavernas, realizados há mais de 30 000 anos, mostram figuras segurando esferas feitas de pedra. Esses bolões, do tamanho de uma cabeça de boi, possivelmente serviam de utensílio, na caça ou na preparação de alimentos. Há mesmo teorias apontando a busca de comida como a raiz de todos os esportes. Afinal, para agarrar a sua presa, o homem aprendeu a correr, nadar, remar, acertar alvos.

Seja como for, a semente dos esportes com bola se confunde com a dos esportes coletivos, há cerca de 12 000 anos. Há quem diga que tenha brotado com o costume guerreiro de se cortar a cabeça de um dos vencidos. Esta passava de mão em mão, entre os que comemoravam a vitória, segundo o livro Evolução dos Desportos Através dos Tempos, de Adolpho Schermann. Tal prática, contudo, acabou se arrefecendo e, por volta de 3 000 a.C., o crânio foi substituído por troféus de formatos semelhantes, igualmente arredondados. Enfim, a cabeça humana teria inspirado a bola. No caso, uma das modalidades mais antigas de que se tem notícia é o chamado kemari, criação chinesa, que se popularizou no Japão, no século X a.C. O jogo, na realidade, era usado como treinamento militar pelos chineses, seus inventores: os participantes se dispunham em um círculo e chutavam uma bolinha, com proporções de um punho fechado, até acertarem um alvo no centro da circunferência. “Há quem suspeite de que o futebol seja um descendente direto do kemari”, conta o jornalista Orlando Duarte, do Sistema Brasileiro de Televisão (SBT), que há 46 anos se dedica a comentar a modalidade campeã no coração do brasileiro. “É provável, porém, que esse esporte tenha mais de um precursor na Antigüidade”, diz ele, que é estudioso da história do futebol. “Outro de seus ancestrais seria o episkyros, criado pelos gregos”, indica.

O povo da Grécia Antiga era fanático por um bom bate-bola. Não há registro de outra civilização que, ao menos na mesma época, tenha cultivado tamanha adoração. Os gregos cultuavam o físico e desenvolveram todas as modalidades do atletismo. Só que nas primeiras aulas de educação física os meninos aprendiam esportes com bolas, como o tal do episkyros. Este era praticado numa quadra dividida ao meio por uma linha; cada uma das duas áreas, por sua vez, tinha uma linha de fundo, que a bola não poderia ultrapassar. Assim, os jogadores se alternavam no papel de atacantes e defensores, ora arremessando com as mãos para o campo adversário, ora impedindo que a bola alcançasse o fim da quadra. Bola que era, na realidade, uma bexiga de porco ou de boi, recheada de areia. Bexigas de animais, diga-se de passagem, foram a bola de nove em cada dez esportes, até o século XVII, quando terminaram substituídas por legítimas bolas de couro.

Na Grécia, os garotos deviam se divertir com as bexigas até ganharem massa muscular para treinar o atletismo. Mas, depois de pegar o gostinho, muito marmanjo grego não largou mais a bola. O célebre poeta Homero (do século IX ou VIII a.C.), famoso pela autoria da Odisséia, escreveu um livro inteiro só a respeito da esferística — nome que se dava ao conjunto de modalidades envolvendo a esfera.

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Com a invasão do território grego pelos romanos, a bola foi lançada em outras áreas. Logo, os jogos da esferística foram adaptados e se difundiram em Roma. O campo do deus Marte, por exemplo, se transformou em ponto de encontro de seus praticantes. E os romanos acabaram disseminando essa moda nos territórios que conquistaram. Entre outros destinos, a bola foi parar nas ilhas britânicas. Tanto assim que, até a Idade Média, em certas regiões da Inglaterra se recordava a derrota dos romanos, no século III, com uma partida comemorativa. No caso, a disputa pela bola era de uma violência de fazer inveja aos hooligans, a encrenqueira torcida inglesa de futebol: sempre vestindo armaduras, os participantes lutavam para agarrar a bola, com o auxílio de suas espadas. Vencia aquele que a erguia com os braços, entre mortos, feridos e desistentes.

Nos tempos medievais, os jogos de bola ganharam tantos adeptos que os nobres e militares ingleses passaram a vê-los com maus olhos. Afinal, as pessoas deixavam de lado os tradicionais treinos de arco e flecha, para brincar nas praças. Resultado: no ano de 1314 o rei Eduardo II resolveu proibir de uma vez por todas essas partidas. A bola entrou na área da clandestinidade — mas continuou rolando por lá. Tanto assim que, 35 anos mais tarde, outro rei, Eduardo III, adotou medidas de reforço, como a criação de fiscais encarregados única e exclusivamente de caminhar pelas ruas, tomando a bola de quem ousasse burlar a lei. Como, mesmo assim, os jogadores insistiam em driblar a situação, o rei Carlos II não viu outra saída a não ser considerar criminoso quem fosse flagrado jogando bola, bolinha ou bolão ou qualquer coisa parecida. Só no século XVIIIé que os ingleses foram liberados para jogar em paz.

Na França o jogo também levou cartão vermelho. Ali, no século XIV o chamado jeu de paume (em francês, jogo de palma) virou mania: as pessoas, sempre em duplas, lançavam a bola com força contra um paredão. Primeiro, foram os nobres que ficaram fissu-rados pelo esporte. Depois, a onda se espalhou entre os plebeus, que passaram a se atrasar sistematicamente no trabalho. Por essa razão o prefeito de Paris achou ser uma boa idéia censurar o jogo nos dias de semana — proibição válida apenas para os desprovidos de sangue azul, bem entendido. O jeu de paume é bisavô do tênis e tataravô do squash, do ping-pong, do paddle. Pois é quase sempre assim: adaptações em velhas modalidades vão criando novas, de modo que um esporte com bola é derivação de outro.

O bowls, por exemplo, também conhecido por boliche de campo, tem um longo ramo de descendentes. Esse jogo já era praticado pelos antigos egípcios. A princípio, bastava ter disponível algumas pedrinhas e uma delas servia de alvo. Assim o bowls é o ancestral co-mum de praticamente todos os jogos de bola e alvo, como a bocce, o croquet, o boliche. Um dos irmãos dessa modalidade, por assim dizer, é o bilhar, que também descende do bowls — no início, os praticantes deste substituíram o contato direto das mãos com a bola pelo uso de bastões. As primeiras referências conhecidas sobre o bilhar são cartas de jogadores dirigidas à Igreja, datadas do século XIV, pedindo perdão por terem machucado os adversários, graças à falta de prática com o instrumento recém-adquirido.

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O jogo, porém, só deixou o campo para ser disputado sobre mesa própria um século mais tarde. “As pessoas estavam cansadas de interromper os jogos no meio, por causa das chuvas”, especula Antônio Marcondes, vice-presidente da Federação Paulista de Bilhar e Sinuca. “A mesa de bilhar não tem caçapas”, ensina o mestre. “São três bolas e o objetivo é bater na esfera neutra e na do adversário em uma só tacada”, resume. Até o século XVII, a prática dessa modalidade se limitava aos nobres. Então, ao se tornar popular, especificamente na Inglaterra, o bilhar passou por algumas modificações. Os ingleses resolveram torná-lo mais complexo, incluíram seis caçapas na mesa e mais de uma dezena de bolas. Surgia assim o chamado snooker, por volta de 1875.

“No snooker há quinze bolas vermelhas e seis de outras cores”, explica Marcondes. “A meta, no caso, é encaçapar primeiro uma bola vermelha, o que dá direito a encaçapar, em seguida, uma segunda de cor diferente. Isso se repete, até terminarem as vermelhas. Se, daí, ainda restarem bolas de outras cores, elas devem ser encaçapadas seguindo uma ordem crescente de valor.” Todas essas tacadas provocam demoras nas partidas. No Brasil, onde o jogo foi trazido pelos ingleses no início deste século, isso acabou sendo um problema. Pois, no final das contas, como o aluguel da mesa era cobrado conforme a duração da partida, o snooker acabou pesando no bolso do brasileiro. “Alguns mestres perceberam que a quantidade de bolas vermelhas só atrasava. Então, para o jogo durar menos tempo, eles retiraram progressivamente essas bolas da mesa”, conta Marcondes. Acabou sobrando apenas uma: o jeitinho brasileiro diante do orçamento curto tinha criado a sinuca, modalidade cem por cento nacional.

Nem sempre, porém, as coisas evo-luem desse modo, como a trajetória do bowls até o aparecimento da sinuca, em clima de jogo pai para jogo filho. O basquete, por exemplo, é um esporte sem paternidade conhecida. A modalidade parece ter sido literalmente inventada, no inverno de 1891, na sede da Associação Cristã de Moços (ACM), instalada em Springfield, uma cidadezinha do Massachusetts, Estados Unidos. Fazia um frio terrível para se praticar atividades ao ar livre. Por isso, os diretores da instituição incumbiram um de seus professores de Educação Física, James Naismith, de bolar uma distração qualquer para os associados.

Naismith logo pensou em um jogo que pudesse acontecer em recinto fechado. “A primeira bola usada foi de futebol”, revela o professor José Medalha, da Universidade de São Paulo, ex-técnico da Seleção Brasileira de Basquete. “Existe uma curiosidade a respeito da origem do basquete, que pouquíssima gente conhece”, diz ele, com os olhos arregalados e fixos anunciando uma espécie de revelação. Depois de uma pausa, Medalha encerra o suspense: “Os alvos deveriam ser duas caixas. Mas, na hora agá, elas desapareceram. Sem tempo a perder, porque havia muita gente esperando para ver o novo jogo, Naismith descolou duas cestas usadas para colher pêssegos”. Caso não tivesse acontecido esse incidente, o esporte nem se chamaria basquete, nome que se refere a cesto, em inglês. “Seria talvez boxball ou caixabol”, imagina Medalha.

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Três anos depois da criação do basquete, outro professor resolveu lhe fazer concorrência. O pastor americano Willian C. Morgan, também ligado à ACM, achava a invenção de seu colega muito agitada para homens de meia-idade em diante. Ele resolveu criar um jogo supostamente mais manso, com uma bola leve feita sob encomenda, que deveria ultrapassar uma rede, no meio da quadra. Para pessoas mais idosas, nascia o volêi, o jogo que já deu cria, duas vezes, no Brasil.

Em fins de 1965, atletas cariocas — jogadores de vôlei e de futebol — juntaram os dois esportes, só por farra. “No início, a rede era montada no meio da rua, nos calçadões da praia”, conta Luís Cláudio de Castro Viana, que preside a Associação Brasileira de Futevôlei, sediada no Rio de Janeiro. “Mas a polícia começou a implicar, porque a bola atrapalhava o fluxo dos carros. Daí, o jeito foi a moçada jogar na areia ou mesmo em quadras.” Este ano, os praticantes da modalidade brasileira decidiram inovar, permitindo pela primeira vez a participação de mulheres, em equipes mistas. “Nesta nova categoria será proibido sacar em cima da jogadora, porque em geral a recepção é com o peito, o que para as mulheres termina sendo complicado”, diz Viana.

Outro derivado do vôlei nasceu numa cidade paulista, que não reúne mais que 71 000 habitantes, boa parte ligada à indústria de calçados. Dizem que Birigüi — este é o local — tem o maior número de piscinas per capita no Estado de São Paulo, por causa de seu calor, à beira do insuportável. Não poderia haver lugar mais propício para o vôlei cair na água. Seu primeiro mergulho foi na casa do advogado Dario Miguel Prado, por volta de 1968. “Mas a divulgação do esporte só começou a partir de 1973”, explica o inventor, que numa atitude assumidamente bairrista deu-lhe o nome de biribol.

“Dentro da água, até pessoas obesas conseguem fazer os movimentos com facilidade. Acho que o biribol tem tudo para pegar”, afirma Prado. Segundo ele, a grande sacada será no próximo ano, quando os jogos serão transmitidos pela televisão. Isso, no entanto, terá um preço: os sets diminuirão de quinze para doze pontos. “Isso tornará a partida mais ágil, mais interessante para os anunciantes”, analisa.

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Embora entenda pouco de biribol, o tenista Nelson Jorge Nastás, presidente da Federação Paulista de Tênis, vê a mudança de outra maneira. “Os esportes estão sempre sofrendo alterações, para se adaptarem aos novos tempos”, diz ele. “E isso não resulta necessariamente em outras modalidades. O tênis que se joga, atualmente, não é o mesmo que o chamado clássico, de três décadas atrás”, compara. Antes o jogo era mais lento e privilegiava as bolas de efeito. “O tênis se tornou tão rápido, que chega a ser violento. Essa observação vale para diversos outros jogos. Parece que a bola absorveu a agitação de hoje em dia.”

 

Gordinha e gostosa

Quando ela aparece, o sucesso é imediato. Todos querem fazer uma brincadeira, tocá-la, largar tudo para ficar ao seu lado, ainda que seja só por alguns instantes. Agrada gente de diversas faixas etárias, de qualquer sexo, indiscriminadamente. Os psicanalistas encontram um motivo para o poder de sedução da bola: “Ela é um instrumento para se trabalhar com o inconsciente”, fala a psicóloga Maria Lucimar Fortes Paiva, da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto, interior do Estado.“Ou seja, enquanto brinca de bola, a pessoa consegue expressar o que está sentindo. Assim, cortadas ríspidas numa quadra de vôlei podem servir para extravasar uma agressividade contida”, acredita.

A semelhança com uma válvula de escape é que tornaria o brinquedo tão atraente para os adultos, embora muita gente não se dê conta disso. Maria Lucimar é especialista em ludoterapia, a área da Psicologia que se utiliza de brinquedos para analisar os pacientes, em geral crianças. “Garotos que resistem à terapia, rejeitam a opção de brincar com a bola, no consultório”, ela observa. “Essas crianças preferem brinquedos com regras, como o jogo de damas, para não se exporem.”

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