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A nova cruzada

A vinda do papa Francisco ao Brasil foi muito mais do que uma simples visita - ela é o começo de uma grande ofensiva mundial da Igreja para reconquistar a influência perdida

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h32 - Publicado em 13 jan 2014, 22h00

Maurício Horta

“É a vontade de Deus”, clamou o papa à multidão. Seu grito foi saudado com empolgação e rapidamente se espalhou por todo o mundo católico. A Igreja estava em crise, rachada, acuada pela expansão do Islã. Estamos em Clermont, na França, o ano é 1095, e Urbano 2º convocava clérigos e nobres a iniciar a retomada da Terra Santa, conquistada por árabes no século 7. Prometendo indulgência plena (perdão de todos os pecados) para quem partisse para Jerusalém, Urbano 2º iniciou a Primeira Cruzada da Igreja Católica.

“O Senhor continua precisando de vocês, jovens, para a sua Igreja… Não sejam covardes. Saiam às ruas como fez Jesus”, diz o papa. Desta vez, o papa é Francisco e o ano, 2013. Diante dele, 3 milhões de pessoas fazem vigília em Copacabana. Outros milhões o assistem pela televisão ou pela internet. Novamente a Igreja está em crise. Depois de anunciar indulgência plena a todos que o acompanhassem – mesmo que pelo Twitter -, Francisco convoca os seus soldados na última noite da Jornada Mundial da Juventude do Rio de Janeiro. É o início da Nova Cruzada.

A crise
“A Igreja é viva, a Igreja é jovem”, gritaram durante uma semana 427 mil peregrinos de 175 países – e tantos outros cariocas que aproveitaram o feriado para aderir à JMJ. Viva e jovem. Um semestre atrás, a frase pareceria delírio. Em 28 de fevereiro, Bento 16 pediu para sair – a primeira renúncia papal em 600 anos. Na sua última despedida, disse que “houve momentos nos quais as águas estiveram muito agitadas, o vento era contrário e o Senhor parecia dormir” – não estava fácil conduzir “a barca de Pedro”. A crise na Igreja se reflete nos números de fiéis no mundo todo [veja o cenário, continente por continente, nas próximas páginas].

Na Europa, o número de seminaristas despencou 21,7% em apenas uma década. Nos EUA, escândalos de pedofilia minam a Igreja, e a entrada de cada novo fiel é anulada pela saída de quatro. Na América Latina, o maior rebanho do mundo, a Igreja perde 10 mil fiéis por dia, principalmente para Igrejas evangélicas neopentecostais. O caso mais extremo é o brasileiro.

A Igreja começou a se afundar na crise enquanto os Engenheiros do Hawaii compunham O Papa é Pop. Apesar de ainda ser um dos maiores líderes morais do mundo em 1991, João Paulo 2º dava sinais de que já não era mais tão pop. Seu estrelato começara em sua Polônia natal, onde 95% da população era católica. Ao ser entronado papa, em 1978, ele transformou a Igreja no grande denominador comum da sociedade polonesa, descontente com o regime comunista. Numa visita ao país, inspirou a criação do sindicato Solidariedade, em 1980 – a primeira organização de oposição nos países comunistas. O Solidariedade tornou-se a fagulha que iniciaria a implosão do bloco comunista. Em 1989, venceu as eleições parlamentares polonesas, e as presidenciais em 1990. E, em 1991, caía o gigante ateu: a União Soviética. A Igreja estava no topo do mundo.

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Mas, com a derrota do inimigo, ironicamente, começou a perda de relevância de Roma. Os Estados Unidos, que tratavam o papa como um aliado fundamental na Guerra Fria, esqueceram dele quando a ameaça acabou. Os países comunistas lançaram-se nas aventuras consumistas do capitalismo e passaram a rejeitar a influência do Vaticano. Nos anos finais de seu pontificado, João Paulo 2º deixou de ser um dos maiores líderes políticos do mundo e voltou sua atenção para a vida privada de seus fiéis. Não gostou do que viu. As pessoas iam mais ao shopping do que à missa. O divórcio crescia a ritmo galopante, assim como os segundos casamentos. Governos faziam campanha pelo uso de camisinha para evitar a aids. A ONU pregava os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres.

Nesse mundo que lhe parecia em dissolução moral, João Paulo 2º sentiu-se na missão de fortalecer a doutrina católica. E, assim, ficou mais alta a voz do seu braço direito: o cardeal alemão Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Em agosto de 1991, João Paulo 2º levou a JMJ à cidade polonesa de Czestochova. Até chegar lá, percorreu o país pregando contra o aborto e pelo ensino religioso nas escolas. Mas a indiferença religiosa foi um adversário mais difícil que o comunismo. Os poloneses o ignoraram. Uma pesquisa nacional perguntou se a Igreja deveria participar na vida política do país, e 57% da população respondeu “não”. Os jovens estavam tão cansados de religião quanto de comunismo.

Esse cansaço valeu para todo o mundo católico. João Paulo 2º não se rendeu: endureceu sua posição contra quaisquer métodos anticoncepcionais – inclusive camisinha, enquanto a aids dizimava a população de alguns países africanos. Opôs-se à homossexualidade, à fecundação artificial e à manipulação genética. Repreendeu defensores do casamento de padres e da ordenação de mulheres. E apoiou grupos ultraconservadores na Igreja – o que se coroou com a canonização do fundador da Opus Dei, em 2002.

A reação dos católicos foi o distanciamento. Como se não bastasse, veio a bomba. Ondas de denúncias de abuso sexual contra menores pelo clero surgiram nos EUA, na Irlanda e depois se espalharam pelo mundo. Seu auge foi um relatório de 2004, analisando 10.667 denúncias contra 4.392 padres entre 1950 e 2002, nos EUA. Em 2005, João Paulo 2º morreu sob a sombra do escândalo.

Seu sucessor foi o cardeal mais próximo do papa e o mais engajado na defesa da fé, o “rottweiler de Deus”: Ratzinger, agora Bento 16. Com ele, a Igreja mantinha o conservadorismo, mas perdia carisma. Diante da crise de fiéis, dos escândalos sexuais e de uma denúncia de lavagem de dinheiro pelo Banco do Vaticano, Bento 16 torceu o nariz e anunciou que a Igreja queria menos “quantidade” e mais “qualidade” de fiéis.

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A receita da Igreja ensimesmada não funcionou. Quando Bento 16 renunciou, o mundo cristão reagiu com frieza e o Facebook se encheu de memes comparando-o ao imperador Palpatine, de Star Wars.

A sede da Igreja virou as costas para ela As primeiras Cruzadas foram lançadas da Europa – mas agora é ela o continente a ser reconquistado. “Na Europa, a Igreja vive um declínio desde o século 19, quando estava do lado errado da história – apoiando o antigo regime e combatendo o Iluminismo”, escreveu o padre jesuíta e escritor Thomas Reese. Como consequência, o continente de onde o catolicismo ganhou o mundo torna-se cada vez mais secularista, com a religião perdendo espaço na vida das pessoas. Some a isso o grande fluxo de imigrantes, que trazem consigo outras religiões, principalmente o islamismo. O resultado é especialmente claro na França. Em 1910, era o país com mais católicos no mundo. Passado um século, a participação de católicos caiu de 98,4% para 60,4%. A Áustria viu algo semelhante – tinha quase 90% e caiu para 63,5% em 2012. Há sinais de que o mesmo pode estar começando a acontecer na Irlanda, Polônia e Itália, onde o catolicismo ainda é fortemente ligado à identidade nacional, mas está perdendo força. É o que a Cruzada de Francisco vai tentar estancar.

A estratégia
Terça-feira, 23 de julho de 2013. Um vendedor ambulante percorre o Largo da Carioca improvisando um funk: “Viva a juventude, viva Jesus. Chip da Oi, chip da TIM”. Assim tentava abordar o grupo de australianos que saía da primeira manhã de catequese da JMJ e se direcionava ao McDonald¿s para aproveitar os descontos para peregrinos nos lanches. No rosto dos australianos, a expressão era de cansaço, depois de passar a manhã ouvindo sermão. Por três manhãs consecutivas, 264 locais receberam catequeses e missas em 25 idiomas. Já à tarde, cem confessionários instalados na Quinta da Boa Vista e no Largo da Carioca davam absolvição aos pecados. Hóstias? No total, 4 milhões.

No metrô, um padre canadense distribuía uma cartilha em inglês contra quaisquer formas de aborto, contra contraceptivos, contra a pílula do dia seguinte, contra testes pré-natais, contra a reprodução assistida, contra pesquisas embrionárias. Pergunto se ele esteve no Largo do Machado na noite anterior. “Não…” Então perdeu feministas de seios de fora e casais de gays e lésbicas fazendo um beijaço nas escadarias da Igreja, aos gritos de “eu beijo homem, beijo mulher, beijo quem eu quiser”.

O Rio estava tomado pelos peregrinos, que andavam perdidos em grupo pela cidade, agarrados às suas mochilas amarelas. Tantas eram as pessoas que a portuguesa Catarina Rodrigues, uma leiga capuchinha estudante de enfermagem, preferiu fazer uma caminhada meditativa na Floresta da Tijuca com um amigo. “Para que quatro horas de catequese e missa todos os dias? Para provocar exaustão? Se for assim, então a Igreja conseguiu. Aqui não há espaço para questionar o que é a fé.”

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Mas espere aí. Se as missas pareciam a mesmas de sempre, se o discurso conservador era o mesmo, o que havia de diferente para que esta JMJ fosse uma resposta à decadência da Igreja? Como era possível que tantos jovens tivessem sido atraídos, se o que se oferecia era mais do mesmo? O que transformaria esse encontro de jovens numa Cruzada? Simples: Francisco.

Nos mais diversos pontos da cidade, do Maracanã a Ipanema, os peregrinos gritavam numa sopa de sotaques internacionais: “Papa Francisco, juntos em Cristo”.

“Foram me buscar quase no fim do mundo”, disse quatro meses antes o então obscuro cardeal argentino Mario Bergoglio para os fiéis que aguardavam o novo papa na praça de São Pedro. Hoje, “O Papa do Fim do Mundo” já é nome de aplicativo para iPad, documentário, biografia da Editora Caras. Para a cruzada em busca de fiéis, a Igreja Católica precisava do oposto de Ratzinger.

Se Bento 16 prendeu-se aos fundamentos da doutrina, o novo papa precisaria ser muito pragmático – pragmático como são os jesuítas, que, a bordo das naus portuguesas, levaram o catolicismo ao Novo Mundo, ao Japão, ao Tibete, à África e à Índia. Se Bento 16 defendia que a Igreja deveria se preocupar com a qualidade de seus fiéis e não com sua quantidade, o novo papa deveria ser um pastor capaz de mobilizar seu rebanho – assim como São Francisco de Assis, o filho de comerciante rico que renunciou à herança e começou uma nova vida ajudando pobres e leprosos, reconstruindo igrejas como pedreiro e pregando a humildade, a simplicidade e a justiça. Se Bento 16 passou décadas dentro do Vaticano e nada conseguiu fazer para faxiná-lo de escândalos, o novo papa precisava ser um forasteiro, distante o suficiente da Cúria Romana para ser capaz de transformá-la.

Mario Bergoglio satisfez essas três necessidades: é o primeiro papa jesuíta da história, o primeiro a adotar o nome Francisco e o primeiro a vir de tão longe de Roma, da América Latina. Assim, Francisco adotou uma nova estratégia. A de que, em suas palavras, “a Igreja saia de si mesma e vá às periferias, não só às geográficas, mas também às existenciais.” A Igreja Católica agora tem uma liderança para iniciar sua Cruzada.

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O continente onde a Igreja mais cresce
A África Subsaariana é a última fronteira do catolicismo – o único lugar além da Ásia onde a religião cresce. A força católica lá está em ocupar buracos deixados pela fragilidade das instituições. Num continente onde os governos são incapazes de prover educação e saúde, a Igreja mantém 55 mil escolas, várias gratuitas, 20 universidades e 16 mil centros médicos e hospitais. Isso explica por que a JMJ recebeu tanta gente da República Democrática do Congo, o país com o pior índice de desenvolvimento humano e menor renda do mundo – e a maior população católica da África. Em parte, o crescimento do catolicismo na África se deve ao Concílio Vaticano 2º (1962-65), que permitiu o uso de idiomas africanos nas missas e a incorporação de canções e danças tradicionais de cada comunidade aos serviços religiosos. Um exemplo é a Alleluya Band, do Malawi (país que, em renda per capita, só ganha da R.D. Congo), que passava batucando em meio à concentração de fiéis em Copacabana. Os 15 membros conseguiram doações para chegar a Roma, e lá fizeram 40 apresentações para juntar os 15 mil euros necessários para a viagem ao Rio.

O líder
Na praia de Copacabana, o som ecoava pelos alto-falantes: “Ele não traz ouro. Ele não traz prata. Traz apenas sua presença. E, consigo, ele traz Jesus”. O helicóptero tinha acabado de aterrissar no extremo oposto da praia, no Forte de Copacabana, e o volume dos gritos aumentava a cada fala dos dois apresentadores. “Somos um milhão de jovens católicos! Levantem as bandeiras de seus países! Uma fé, um coração. De todas nações, uma só Igreja!” – e cada grupo de fiéis formava seu pequeno feudo na praia. No mar, três navios de guerra da Marinha Brasileira. No céu, outros quatro helicópteros. Na terra, 25 mil homens da polícia e das Forças Armadas. “Viemos de longe e de perto, somando sonhos”, continuaram os animadores enquanto o caminho do helicóptero até o papamóvel era transmitido em 15 telões de LED espalhados ao longo da praia. Os tetos dos banheiros químicos haviam se transformado em mirantes de onde jovens se equilibravam para acompanhar a passagem do líder espiritual.

“Gente de bem, gente de paz, gente que Deus preparou”, canta a multidão até a melodia se transformar em gritos histéricos. Na pista de asfalto protegida por grades, voluntários vestidos de amarelo de repente saem correndo. E, num instante – vruuum -, passa o utilitário Mercedes-Benz branco adaptado, com Francisco de pé acenando aos dois lados. “Ah, passou muito rápido”, reclama uma senhora, enquanto uma massa começa a correr desesperadamente no calçadão de pedras portuguesas para poder estender só mais um tantinho a visão do Santo Padre.

“Ele está quebrando blindagens para ir até o povo”, diz o radialista Aristides Silva Albuquerque, 34, que veio desde Afogados de Ingazeira, PE, para acompanhar a JMJ. “Ele mostrou que devemos nos desprender das coisas materiais”, diz o funcionário público angolano Fernando Jai, 31. E multidões de latino-americanos gritam: “Esta es la juventud del papa”. Não importa a origem e a história de vida, os peregrinos que a SUPER entrevistou têm a mesma opinião sobre Francisco: sua humildade aproximou a Igreja de seus fiéis tal como não se via desde os tempos do Solidariedade.

Seu primeiro ato como papa foi decidir não morar no suntuoso Palácio Apostólico -preferiu ficar em um dos 130 quartos da austera Casa de Santa Marta, onde pode ter contato mais próximo com pessoas de fora do Vaticano. Em sua primeira viagem para fora de Roma, foi à ilha de Lampedusa, porta de entrada de imigrantes africanos sem documentação na Itália, e lançou ao mar uma coroa de crisântemos em memória dos imigrantes que morreram na travessia. Sua primeira viagem internacional foi ao Brasil, terra de catolicismo popular, sempre renegada por Roma, que levou séculos para canonizar um cidadão do maior país católico do mundo.

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No Rio, ignorou protocolos. Enfiou o papamóvel na multidão. Foi à favela de Varginha elogiar o hábito de “colocar mais água no feijão”. Visitou cinco jovens infratores e disse várias vezes “Candelária, nunca mais!”, referindo-se ao massacre de oito crianças e adolescentes 20 anos atrás. Por fim, veio o pedido que repete desde sua primeira aparição como papa: “rezem por mim”.

E o que dizer da doutrina? Não era mesmo de se esperar nenhuma grande transformação – o catolicismo, obviamente, continua o mesmo. Mas a ênfase mudou. Agora, com Francisco, o foco é no perdão, e não mais no pecado. O novo papa evita polêmicas. Numa entrevista coletiva feita no voo de volta a Roma, explicou por que não falou sobre aborto e casamento de pessoas do mesmo sexo: “a Igreja já se expressou perfeitamente sobre isso.” Por outro lado, defende o batismo de filhos de mães solteiras e o acolhimento de homossexuais pela Igreja. “Se uma pessoa é gay, busca Deus e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la? O problema não é ter essa tendência. Devemos ser como irmãos.” A regra continua a mesma. Mas a figura do caga-regras sumiu.

Ao norte, escândalo, ao sul, evangélicos
Há dois cenários bem diferentes na América do Norte e na América Latina – mas em ambos a Igreja perde importância. Nos EUA, uma em cada três pessoas que cresceram no catolicismo abandona a Igreja, e a principal razão é o sexo, segundo o psiquiatra e ex-padre americano Richard Sipe, especialista em abusos sexuais do clero. Cem mil americanos já denunciaram que foram alvos de padres pedófilos. E, como estima-se que 80% das vítimas nunca denunciem o abuso, o número real pode chegar a 500 mil. Apesar disso, a população de católicos nos EUA se mantém constante: 25% dos americanos. É que, enquanto católicos descendentes de irlandeses, italianos e poloneses abandonam a Igreja, seus lugares são ocupados por novos imigrantes católicos vindos da América Latina. Mas, ao sul do Rio Grande, algo diferente vem acontecendo. Enquanto a América Latina exporta católicos, ela importa dos EUA as igrejas evangélicas neopentecostais. Assim o antigo monopólio católico deu lugar a um mercado religioso competitivo que busca agressivamente por novos adeptos, seja pela TV, seja caminhando por bairros, presídios e favelas. Essa competição causou a maior perda de fiéis no mundo católico. E o caso mais extremo disso é o Brasil.

Os aliados
Na chegada ao Brasil, a tropa de choque fechou todas as ruas de acesso ao Palácio da Guanabara. Lá, o Santo Padre seria acolhido por autoridades numa recepção que custou R$ 850 mil aos cofres públicos – R$ 1.300 por convidado, com direito a água, café e biscoitos. Eis que, em frente ao bloqueio, um senhor de barba grisalha até a altura do peito levantou seu cartaz: “Fora, papa, fora”. Imediatamente, uma senhora que carregava um terço gritou: “sai, ateu!” “É o Anticristo!”, arriscou outra. “Este é um país católico!” E um grupo de peregrinos liderado por um rapaz de Tocantinópolis começou a rezar o “Pai Nosso”.

Nesse momento, o senhor vestiu seu quipá. Era Marcos ben Moisés, um comerciante e professor de hebraico. “Todas as religiões são lindas, e o brasileiro é o melhor povo do mundo”, disse ben Moisés. “Eu vim aqui defender a nossa Constituição laica. Vim defender seu artigo 19.” Segundo esse artigo, é vedado à União, ao Estado e à Prefeitura subvencionar cultos religiosos ou igrejas. A União admitiu ter gasto R$ 57 milhões na segurança da JMJ e do papa. O Estado e a Prefeitura do Rio racharam uma conta de R$ 52 milhões. A cidade declarou dois dias inteiros e dois meios-dias feriados, causando outro impacto de milhões na economia. O metrô ficou interditado para cidadãos comuns – só podia usá-lo quem tivesse o cartão da JMJ ou um bilhete especial comprado com antecedência.

Mas, na Cruzada de Francisco, o Estado brasileiro não é o único aliado. A imprensa credenciou 6.400 profissionais, que fizeram uma cobertura extensiva da JMJ. Nem toda a imprensa ajudou igual. Entre os dias 22 e 28 de julho, a Record, do bispo Edir Macedo, transmitiu 3 horas e 24 minutos de JMJ. Já a Globo deu 32 horas e 53 minutos. No domingo de manhã, cancelou a transmissão do Grande Prêmio da Hungria para televisionar a missa.

O país que mais perde católicos no mundo
Dos brasileiros, 28% são evangélicos. Em 1950, eram 3,4%. O que explica o crescimento? Bom, desde 1500 a Igreja Católica manteve seu monopólio espiritual no Brasil. “E, como todo monopólio, tornou-se grande e preguiçoso”, diz Roger Finke, professor de Estudos Religiosos da Universidade Estadual da Pensilvânia, nos EUA. Enquanto isso, o Brasil mudou. De 36,2%, a população urbana subiu para 75,6% entre 1950 e 1991. O resultado foi a formação de periferias sem emprego, sem lazer, sem serviços públicos e sem as relações familiares e comunitárias que as pessoas tinham em seus lugares de origem. Assim se formou um enorme vácuo espiritual que a Igreja Católica – imobilizada pelo seu gigantismo burocrático e acomodada em seu monopólio – não conseguiu preencher. Por outro lado, os evangélicos têm muita agilidade para montar igrejas, formar sacerdotes, ocupar espaços na mídia e moldar uma teologia de acordo com as necessidades de cada nicho de mercado. A pobreza é insuportável? Evangélicos criaram a Teologia da Prosperidade, segundo a qual Deus dá o que o fiel desejar (incluindo dinheiro e saúde), desde que ele tenha fé. A marginalização deu espaço para a criminalidade e para as drogas? Evangélicos oferecem um caminho para a reabilitação. “Hoje há um livre mercado espiritual na região, onde empresas novas e agressivas vendem os Evangelhos com linguagem mais atraente e apoio social às comunidades”, diz Finke. Para combater essa tendência, a cruzada do papa Francisco vai valorizar a Renovação Carismática – a resposta católica ao neopentecostalismo, a la Padre Marcelo Rossi. “Nos anos 70, início dos 80, eu não podia nem vê-los”, admitiu Francisco enquanto voltava de avião do Rio para Roma. “Agora, vejo que esse movimento faz muito bem à Igreja.”

O chamado
No sábado, sua última noite no Rio, o papa abriu a vigília de 3 milhões de fiéis contando a história de São Francisco de Assis – o jovem que, diante do crucifixo, ouviu a voz de Jesus mandá-lo reparar a casa de Deus. O rapaz obedeceu, virou pedreiro e começou a reformar igrejas. Depois, sacou que Jesus não se referia a prédios de pedra, mas à própria Igreja Católica. Com essa história, o papa conclama à multidão: “Joguem sempre na linha de frente, no ataque! São Pedro nos diz que somos pedras vivas que formam um edifício espiritual. Jesus nos pede que a sua Igreja viva seja tão grande que possa acolher toda a humanidade! Ele diz a mim, a você, a cada um: `Ide e fazei discípulos entre todas as nações!¿”

Na manhã do domingo em que voltaria para Roma, foi a vez de dizer a seus compatriotas argentinos: “Eu quero agito nas dioceses, que vocês saiam às ruas. Eu quero que nós nos defendamos de toda acomodação, imobilidade, clericalismo. Se a Igreja não sai às ruas, se converte em uma ONG. A Igreja não pode ser uma ONG”, discursou na Catedral Metropolitana do Rio.

A Cruzada foi conclamada. Daqui para a frente, é a História.

Foto: GettyImages

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