A passagem húngara
No início de maio de 1989, a Hungria desmontava as cercas de arame farpado e desligava os alarmes em sua fronteira com a Áustria, abrindo um buraco na cortina de ferro
Texto Ricardo Rojo
A euforia tomava conta da população. “Não posso acreditar que eu esteja aqui. Fui seguindo a onda dos refugiados. Cem metros antes da fronteira, eles pararam e todo o mundo correu para a Áustria.”
As emissoras de TV de todo o mundo captavam esse e outros relatos de cidadãos da antiga Alemanha Oriental no início de maio de 1989. “Escapamos do Stasi, o serviço de segurança do governo comunista, da repressão e da escassez”, repetiam sem parar. Em pouco mais de dois meses 60 mil alemães chegaram à Hungria – nenhum deles queria voltar. Todos tinham os olhos voltados para a pequena abertura na cortina de ferro, resultado das reformas na Hungria e uma esperança de integração na Europa e de fim da Guerra Fria.
Dois meses antes, os políticos húngaros haviam decidido abrir as fronteiras do país com a Áustria. Todos os dias, 600 metros eram arrancados. A ordem era “desmontar e levar para casa”. Em junho, até os ministros das Relações Exteriores dos dois países participaram do desmonte e arrancaram parte da cerca.
Os alemães-orientais assistiam a tudo pela TV. Martim Wilhem Bausen, que trabalhava numa fábrica de geladeiras, conta: “A frustração era grande naqueles dias. A fraude nas últimas eleições tinha sido mais do que óbvia e muitos de nós, que queriam simplesmente ir embora, víamos agora uma nova chance de emigrar”. Bausen conseguiu viajar de férias para a Hungria com parte da família e, de lá, escapou pela chamada “fronteira verde” para a Áustria. Outros tantos foram apanhados durante a fuga. “Dois homens que estavam conosco foram agarrados por soldados e imploraram muito para passar. Mas eles não deixaram”, lembra Karla Bohn que emigrou aos 14 anos, com a mãe e o irmão mais velho.
Grande parte dos imigrantes alemães não ficava na Áustria. Em agosto, 15 mil pessoas se reuniram na Alemanha Ocidental, perto da fronteira austro-húngara, numa grande manifestação. Elas acabaram arrancando os últimos pedaços da fronteira que ainda resistia no local. Centenas de alemães-orientais conseguiram escapar na ocasião. Enquanto o povo punha abaixo os muros com as próprias mãos, os políticos tentavam o mesmo com um pouco mais de diplomacia.
Liberdade sem fronteiras
Numa iniciativa histórica, o ministro húngaro do Exterior, Gyala Horn, se reuniu com Helmut Kohl, primeiro-ministro da Alemanha Ocidental, para buscar uma solução. Horn contou em entrevista à revista Time, em agosto de 1999, que foi fundamental manter sigilo dos políticos enquanto a decisão de abrir a fronteira para os fugitivos amadurecia. Na mesma entrevista, durante as comemorações de 10 anos dos eventos que puseram fim ao regime pró-soviético em seu país, afirmou que “a coisa toda não teria sido possível na época de Brejnev. Ela só se concretizou porque, com Gorbachev e Shevardnadze, um novo vento soprava em Moscou”.
Finalmente, em 11 de setembro, o governo húngaro derrubou as últimas barreiras e abriu todas as fronteiras com a Áustria, anunciando que todos os cidadãos da República Democrática da Alemanha residentes ou de passagem por território húngaro poderiam deixar o país com seus documentos. “Eu estava em minha cozinha quando ouvi a notícia no rádio. Lembro da minha filha na sala, de minha mulher com meus filhos gêmeos no colo. Nos olhamos e já sabíamos o que aconteceria. Achamos que seriam explosões, bombas, tiros… uma revolução ou algo assim”, diz Malev Halasz, advogado húngaro, hoje com 55 anos. “Mas, então, o que vimos e ouvimos foi um clamor, uma explosão de fogos, vindos de onde se alojavam os refugiados alemães. Eu diria que esse foi um dos momentos mais belos da história. O mais belo da minha vida, com certeza.”