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América pré-histórica

A serra da Capivara guarda evidências de homens que viveram no Piauí há 60 mil anos. E desafia a tese de que os primeiros habitantes do nosso continente chegaram pelo norte, vindos da Ásia

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h20 - Publicado em 31 jul 2008, 22h00

Texto Mariana Sgarioni

Já não é de hoje que o Brasil está na mira de arqueólogos do mundo inteiro. Pudera. Em solo brasileiro encontram-se pinturas e outros vestígios da Pré-História fundamentais para entender não somente a chegada do homem primitivo às Américas mas também a maneira como ele vivia e se organizava em sociedade. Os sinais mais exuberantes desse passado estão na serra da Capivara, a cerca de 500 quilômetros de Teresina, no Piauí. Trata-se de um dos maiores “museus” a céu aberto do planeta. Com uma área equivalente a mais de 300 campos de futebol, seu “acervo” inclui aproximadamente 25 mil pinturas rupestres distribuídas em 912 sítios. Elas retratam o dia-a-dia dos primeiros brasileiros, em cenas de sexo, guerra, situações domésticas, rituais e cerimônias.

O lugar foi descoberto em 1973, durante uma expedição franco-brasileira dirigida pela arqueóloga Niéde Guidon. “Logo na primeira missão, encontramos 55 sítios, a maior parte com pinturas”, recorda Niéde. “Alguns deles eram aldeias, nas quais também achamos muitos cacos de cerâmica e objetos de pedra lascada e polida.” Àquela altura, a pesquisadora e sua equipe imaginavam estar diante de sítios arqueológicos relativamente recentes, pois todo mundo acreditava na teoria de que a América do Sul tinha sido o último continente colonizado pelo homem. Ainda assim, a descoberta era extraordinária. Tão relevante que o governo brasileiro, em 1979, achou por bem transformar aquela área numa gigantesca unidade de conservação, hoje conhecida como Parque Nacional da Serra da Capivara.

Quando os artefatos encontrados por Niéde Guidon começaram a ser datados, a serra da Capivara foi arrastada para o centro de uma polêmica internacional. Segundo a arqueóloga, as datações indicam que aquele pedaço de chão piauiense foi habitado há pelo menos 60 mil anos. São registros de presença humana muito mais antigos, portanto, que os da cultura Clóvis – homens primitivos que viveram, entre 10 500 e 11 400 anos atrás, na região que hoje corresponde ao estado americano do Novo México. Até meados do século passado, eles eram considerados os primeiros habitantes do continente americano. E sustentavam a teoria de que o continente havia sido colonizado pela passagem de Behring, a partir da Ásia.

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Em toda a América do Sul, já foram identificados 9 sítios arqueológicos que desafiam essa tese – os chamados pré-Clóvis (veja o mapa ao lado). Em Monte Verde, no Chile, há vestígios de atividade humana com 12 300 anos de idade. Na Argentina, estudos apontam para 13 mil anos em Piedra Museo e Los Toldos. E em Taima-Taima, na Venezuela, foram encontrados indícios que remontam a 15 mil anos. No Brasil, a serra da Capivara não é o único sítio dessa categoria. Há pelo menos mais 4, entre eles o da Pedra Pintada, no Pará, que guarda lembranças da pré-história amazônica estimadas em 11 300 anos. As pesquisas conduzidas pela arqueóloga americana Anna Roosevelt nesse local levaram-na a propor um novo modelo para explicar a ocupação das Américas. Para ela, já está provado que a cultura Clóvis não foi a primeira a se estabelecer no continente nem deu origem a todos os outros povos americanos.

“Hoje, podemos afirmar que a chegada do Homo sapiens ao continente americano aconteceu em levas que, saindo de diferentes lugares, seguiram diferentes caminhos”, afirma Niéde Guidon. “As primeiras levas devem ter entrado na América entre 150 mil e 100 mil anos atrás.” Para a arqueóloga, é bastante razoável supor que um continente como o americano, que vai do Pólo Norte ao Pólo Sul, tenha sido ocupado a partir de diversos pontos. E mais: a geografia também sugere que os primeiros habitantes podem ter chegado aqui, inclusive, por via marítima, através do oceano Atlântico.

Há quem conteste as descobertas de Niéde Guidon. Nos EUA, alguns pesquisadores argumentam que vários artefatos coletados por ela na serra da Capivara podem ser resultado de fenômenos da natureza. Instrumentos de pedra lascada não passariam de lascas surgidas naturalmente. Pedaços de carvão seriam produto de incêndios igualmente naturais, e não de fogueiras acesas pelo homem. Até os vestígios de fogões primitivos encontrados por Niéde e suas equipes seriam meras obras do acaso, formados por blocos coincidentemente caídos uns sobre os outros. Para a arqueóloga, nenhuma dessas dúvidas tem fundamento. “Colegas da Texas A&M University, nos EUA, analisaram os artefatos de pedra e concluíram, como nós, que eles certamente foram feitos por mãos humanas”, garante Niéde. “E para rebater a idéia de que o carvão pode ter vindo de incêndios espontâneos, fizemos sondagens em todo o vale da Pedra Furada. Descobrimos que só há carvão dentro do sítio arqueológico. Incêndios teriam deixado carvão espalhado por todos os lados.”

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REINO DA BICHARADA

As datações mais antigas na serra da Capivara foram obtidas nos sítios conhecidos como Boqueirão da Pedra Furada, Toca do Sítio do Meio e Toca do Caldeirão do Rodrigues. Todos os 3 apresentam o que os arqueólogos chamam de abrigos sob rocha, formações rochosas que, esculpidas pela erosão ao longo dos anos, acabaram se transformando em verdadeiras cabanas naturais. Os piauienses da Pré-História usaram esses abrigos naturais como casa. E pintaram nas paredes de pedra cenas do cotidiano – ou a “representação gráfica de sua tradição oral”, como preferem os pesquisadores.

Polêmicas à parte, Niéde está convencida de que os primeiros brasileiros viviam em plena harmonia com a natureza. E que natureza! As pesquisas levadas a cabo nesses 35 anos, desde as primeiras descobertas, indicam que, até 9 mil anos atrás, naquela região corriam rios caudalosos e a vegetação em nada se parecia com a caatinga de hoje. Toda a área era coberta por densa floresta tropical, habitada por preguiças e tatus gigantes, tigres-dentes-de-sabre, mastodontes, cavalos selvagens e até ancestrais das lhamas – uma fauna pintada e eternizada nas únicas testemunhas disso tudo: as paredes de rocha calcária.

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