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Anarquia – Aqui e agora?

Dois séculos atrás, os anarquistas imaginaram um mundo sem chefes, leis ou políticos. Hoje, a tecnologia está tornando esse sonho mais próximo.

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Atualizado em 26 abr 2023, 15h40 - Publicado em 30 set 2006, 22h00

Texto Eduardo Szklarz

Que tal viver em um mundo sem hierarquia e sem leis, sem governos nem papas? No século 19, os anarquistas imaginaram uma sociedade assim. Os indivíduos se encontrariam acima dos Estados, criando e dividindo produtos entre si. Não existiriam monopólios, e o conhecimento seria produzido de forma coletiva. Nacionalidades seriam desprezadas, e as mulheres teriam os mesmos direitos que os homens. “O homem só se emancipa e se liberta através do esforço coletivo de toda a sociedade”, dizia o anarquista Mikhail Bakunin. Um discurso bonito, mas impossível. Salvo algumas experiências efêmeras, o anarquismo nunca virou realidade.

Será? Hoje, a Wikipedia é a maior enciclopédia do mundo graças ao esforço coletivo dos internautas. Como prega o anarquismo, ela foi formada pelos próprios leitores, que escreveram e editaram verbetes. No ano passado, os brasileiros dividiram entre si mais de 1 bilhão de arquivos de música e levaram milhões de vídeos a sites de conteúdo coletivo como o YouTube. Artistas e bandas famosas, como David Byrne e os Beastie Boys, declararam suas músicas de uso público, como fariam os anarquistas. Fora da realidade virtual, está na moda proteger os animais e deixar de comer carne – bandeiras lançadas pelos pensadores libertários do século 19.

Estamos vivendo em um mundo anarquista?

História das idéias

A princípio, não. “O poder do Estado pode estar menor, mas não foi substituído pelo poder popular”, diz o historiador britânico Michael Eaude. Além disso, o espírito comunitário e os movimentos baseados no esforço coletivo sempre existiram. Na Antiguidade, os filósofos taoístas pregavam ideais libertários, e os estóicos advertiam que o homem não devia ceder diante da opressão. Durante a Idade Média, diversas seitas religiosas (como os valdenses e os albigenses) se organizaram num esquema de autogestão fora das ordens do papa. Porém, a união da Igreja com os Estados impedia que essas manifestações coletivistas deixassem de ser marginais.

A coisa só mudou no século 18, quando a diferença entre sociedade civil e Estado ficou clara. Foi quando a Revolução Francesa desbancou o rei, guilhotinou os nobres e ceifou o poder da Igreja. A partir de então, conceitos esquecidos, como democracia, igualdade e liberdade, ganharam força. As pessoas se deram conta de que Estado é uma coisa, sociedade é outra. E se a sociedade se apoderasse do governo? E se pudesse viver sem ele? Com essas idéias na cabeça, o povo saiu às ruas de toda a Europa do século 19, se organizando em torno de duas ideologias principais.

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Uma era a do alemão Karl Marx, que via na luta de classes a raiz de problemas como pobreza e violência. Para Marx, a dominação de classes desapareceria só depois que os revolucionários tomassem o poder e transferissem a propriedade para a esfera coletiva. Algo como confiscar todos os bens e dividi-los entre todos. Já o francês Joseph Proudhon pensava diferente. No livro O Que É a Propriedade?, ele afirmou que “a propriedade é um roubo” e “os governos são a maldição de Deus”. Ou seja: Proudhon condenava a propriedade privada do mesmo jeito que Marx, mas rejeitava qualquer forma de Estado, mesmo com os trabalhadores no comando. “Como buscam o poder, todos os partidos são variantes do absolutismo”, dizia.

Em 1872, seus seguidores romperam com os marxistas durante o Congresso de Saint-Imier, na Suíça. “Eles deixaram claro que a destruição de qualquer poder político era o primeiro dever do proletariado”, diz o escritor argentino Eduardo Colombo no livro La Voluntad del Pueblo (“A Vontade do Povo”, inédito no Brasil). O segundo passo seria a associação dos indivíduos por meio de cooperativas operárias, que em conjunto formariam uma federação. Várias federações conduziriam à sonhada sociedade libertária, livre de opressão.

Para as cooperativas saírem do papel, Proudhon apostava num tal Banco do Povo, que emprestaria com juro mínimo para que o pessoal levasse adiante seu negócio sem depender de patrão. Na linguagem anarquista, essa prática é chamada de mutualismo. Proudhon se elegeu deputado para conseguir apoio à causa, mas logo viu que o trabalho na Assembléia apenas o afastava do povão. Era um governante que não queria governar. Em vez da democracia representativa, ele propunha a ação direta. Você mesmo faz o que te diz respeito.

O Banco do Povo até chegou a ser criado, mas nunca funcionou direito por causa da língua solta de seu fundador. Proudhon vivia criticando o governo de Napoleão 3º em artigos de jornais. Acabou preso. Mas o caminho já estava aberto para outros libertários. Um deles foi o russo Mikhail Bakunin, que adicionou pimenta revolucionária na receita anarquista. “Destruir para criar!”, bradava o grandalhão enquanto fugia das tropas do czar Alexandre 2º. No manuscrito Deus e o Estado, Bakunin denunciava os absurdos cometidos em nome do criador: “Se Deus existe, então o homem é escravo. Mas o homem pode e deve ser livre; portanto, Deus não existe”.

Bakunin concordava com Marx sobre a idéia de dividir fábricas, empresas e fazendas entre todos. Mas dizia que ela não deveria ser feita por uma autoridade, e sim por uma decisão do povo, de baixo para cima. O anarcocomunismo ganhou impulso com outro russo, Piotr Kropotkin, cujo lema era “de cada um segundo sua capacidade e a cada qual segundo sua necessidade”.

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Com ou sem diferenças, os anarquistas trataram de colocar suas idéias em prática. Alguns foram para o movimento operário, influenciando os trabalhadores e todo o pensamento de esquerda que segue até hoje. Outros decidiram também criar sociedades perfeitas a partir do zero em lugares distantes como o Brasil (leia quadro na página ao lado). “A anarquia não começaria numa data marcada, mas como um processo contínuo à medida que o homem evoluísse e deixasse o mundo animal”, afirma Colombo. Essa é a lógica anarquista: se a sociedade é um produto natural, então o homem não precisa de nenhum fator externo para viver em harmonia. Portanto, todos aqueles que tentam impor leis e governos são inimigos. Tudo muito lindo, muito justo. Mas será que funciona?

Mil caminhos

“Seus seguidores podiam estar de acordo com seus objetivos básicos, mas tinham profundas divergências quanto às táticas para atingi-los”, afirma o escritor canadense George Woodcock, autor do livro Anarquistas. Nada mais natural: uma ideologia que é contra o poder não podia mesmo ter uma liderança ou um ideário unificado. Na virada para o século 20, ela se dividiu em um espectro que ia do anarcocomunismo ao anarcoindividualismo, passando pelo anarcocapitalismo (leia quadro nas págs. 68 e 69).

O escritor russo Leon Tolstoi pregava a resistência não violenta contra o Estado, enquanto o italiano Errico Malatesta defendia a greve geral e a expropriação de terras. Já o anarquista russo Sergei Nietchaiev não queria saber de papo: o negócio era partir pro ataque. Em seu Catecismo Revolucionário, ele conclamava seu séqüito a cometer todos os assassinatos necessários e a roubar para financiar as operações supostamente libertárias.

Foi quando começaram a pipocar bombas contra nobres, políticos e delegados na Europa. Uma figurinha temida da época foi o francês Jean Ravachol, que detonava dinamite nas casas dos juízes. Ravachol acabou na guilhotina, mas seus simpatizantes mataram vários líderes. A partir de 1894, em menos de 20 anos, anarquistas mataram dois primeiros-ministros espanhóis, o rei Humberto da Itália, a imperatriz Elizabeth da Áus-tria, o presidente francês Sadi Carnot e, em 1901, até mesmo o presidente dos EUA, William McKinley.

Os parlamentos responderam com leis antianarquistas, e a polícia os tratou como bandidos comuns – cristalizando a noção de que anarquismo é sinônimo de caos. Muitos acabaram acusados injustamente. Nos EUA dos anos 20, os imigrantes italianos Nicola Sacco e Bartolomeu Vanzetti foram acusados de matar dois funcionários de uma fábrica que transportavam o pagamento dos empregados. Resultado: Sacco e Vanzetti acabaram na cadeira elétrica apesar da falta de provas. Muitos dizem que o veredito seria diferente não fossem eles anarquistas. A história inspirou o filme Sacco e Vanzetti e virou título de uma canção da cantora Joan Baez, um dos ícones do Festival de Woodstock.

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“Nunca houve muitos anarquistas, exceto na Espanha dos anos 1890-1939”, diz o sociólogo Christian Ferrer, da Universidade de Buenos Aires. “Eram alguns punhados, a maioria viajantes. Para ficar longe dos princípios autoritários do marxismo, eles diziam que a revolução tinha que ser antes social que política. E, antes de tudo, pessoal. Muitos se negaram a casar na igreja e a usar cartório. Eram contra a aposentadoria, a esmola e a gorjeta, pois diziam que o ideal era ter um trabalho coletivo. Se fossem assalariados, que pelo menos tivessem um salário digno. Alguns anarquistas deram a seus filhos nomes como Libertário, Perseguido, Germinal, Amanhecer, Aurora e Esperança. Um famoso anarquista colombiano mudou seu nome para Biófilo Panclasta (amante da vida, destruidor de tudo). Os anarquistas também evitavam o bordel, o álcool e o jogo por dinheiro, pois essas coisas paralisavam a razão e impediriam a mudança social. “Podemos rastreá-los hoje em grupos individualistas e anticlericais, estéticas de vanguarda, direitos humanos, no pacifismo, no movimento pelo uso prazeroso do corpo e nos protetores dos animais”, diz Ferrer.

Essa gente causou um barulho danado, mas não conseguiu implantar sociedades anarquistas duradouras. “A idéia dos contratos entre pessoas é linda, mas ingênua. Sempre vai ter quem se aproveita dos contratos dos mais fracos”, diz Antonio Martino, professor de ciência da legislação da Universidade de Pisa. “Para resolução pacífica de conflitos, nada melhor que regulamentar. E o ideal é ter sanções.” Mesmo assim, as idéias libertárias influenciaram o mundo. Talvez você não perceba, mas várias práticas do seu dia-a-dia também derivam dessa fonte. Você estudou em salas mistas, com meninos e meninas? Pois turmas assim eram comuns nas escolas anarquistas do fim do século 19. Por acaso está pensando em juntar com o namorado? Saiba que o amor livre (a livre união entre as pessoas sem casamento ou contrato) era um dos refrões libertários mais de 100 anos atrás.

Liberdade online

A diferença é que hoje, com a internet, os fenômenos libertários não são mais utópicos ou marginais. Pelo contrário. De cara, a internet fez uma baita revolução contra a TV ao juntar o emissor com o receptor da mensagem. No lugar da passividade, a ação direta. A web também abriu a era do conhecimento livre e compartilhado. A largada foi dada nos anos 80, quando o programador americano Richard Stallman bolou um sistema operacional de código aberto e o chamou de GNU (sigla para “GNU não é Unix”, em alusão a um sistema operacional da época). Com ele, você mesmo corrige e melhora o trabalho de outros. Em 1991, surgiu o filhote mais famoso do GNU: o Linux, um sistema aberto alternativo ao monopólio do Windows que inaugurou a onda dos produtos feitos por voluntários e distribuídos de graça. Era o início do chamado movimento software livre. Hoje, esse método é usado até em videogames. Nos games mods (de “modification”), o jogador tem acesso ao código- fonte do game, podendo modificar as regras, os cenários e até os personagens.

Em 1994, outra revolução veio com o conceito wiki, baseado na colaboração de todos os habitantes do planeta que tenham conexão a internet. “Não me considero anarquista, mas há algo de anarquismo no wiki já que nele tudo é feito de baixo para cima”, disse à Super o programador americano Ward Cunningham, criador do sistema wiki. Não demorou para que esse conceito inspirasse a Wikipedia, a enciclopédia grátis da internet cujos artigos são escritos a várias mãos. Ao contrário dos catataus de quando você era criança, na Wikipedia os textos são alterados pelos leitores à medida que o conhecimento avança. É como o que dizia Bakunin sobre o esforço coletivo para libertar a sociedade.

No mundo dos negócios, a onda wiki inspirou o livro Wikinomics, que está sendo escrito pelo consultor canadense Don Tapscott. “Ao aproveitar a tecnologia da colaboração planetária, os funcionários, clientes, fornecedores e até competidores estão mudando a forma de elaboração de produtos e serviços”, afirma ele. Um exemplo disso é o portal YouTube, que reúne 100 milhões de vídeos grátis – 65 mil vídeos novos por dia. O portal abriga de tudo, de vídeos feitos por quem assiste até programas das emissoras convencionais. Com 20 milhões de visitas por mês, essa nova (des)organização vem mudando as regras da indústria do entretenimento. A gravadora Warner se associou ao YouTube para distribuir discos; as TVs CBS e NBS também fizeram acordos para difundir seus seriados; e o cantor Beck já anunciou que as faixas e os clipes do novo cd vão estar de graça no site.

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Empresas como o buscador Google, que se baseiam no comportamento de gente do mundo inteiro, também viraram motivo de análise. Em The Wisdom of Crowds (“A Sabedoria da Multidão”), o jornalista americano James Surowiecki afirma que grandes grupos são mais inteligentes que uma elite. São melhores para inovar e resolver problemas. “O melhor grupo de decisão vem de múltiplas decisões de indivíduos independentes”, afirma Surowiecki, repetindo o que Proudhon dizia, 160 anos atrás.

Mas essa colméia digital também sofre críticas. Para o cientista de computação Jaron Lanier, que popularizou o termo “realidade virtual”, a colaboração planetária acaba com a criatividade individual para formar uma massa sem rosto, que ele chama de “maoismo digital” (em alusão ao regime do ditador chinês Mao Tsé-tung). Para ele, esse esforço coletivo acaba reproduzindo a vida rotineira de uma colméia e nivelando por baixo o produto final. “A beleza da internet é conectar as pessoas. O valor está nos outros. Entretanto, se começarmos a acreditar que a internet em si é uma entidade que tem algo a dizer, vamos desvalorizar essas pessoas e nos fazer de idiotas”, afirma.

No campo da ciência, os ideais libertários confrontam-se com a crescente restrição do livre fluxo de informação científica. Um estudo publicado pela Associação Médica Americana em 2002 mostrou que 47% dos geneticistas não puderam ver trabalhos de colegas devido a leis restritivas, um aumento de 34% em relação ao estudo anterior, de meados dos anos 90. Muitos acabam fazendo pesquisas já realizadas por outros cientistas. É aí que entra em cena o Creative Commons, uma ferramenta que conjuga propriedade intelectual com maior acesso. Na prática, o autor continua tendo alguns direitos sobre a obra, mas não todos; e o público se beneficia com mais obras disponíveis. Em pouco mais de 3 anos, essa iniciativa já licenciou 140 milhões de trabalhos na web por meio do Google. “Não somos contra o copyright, que no fim das contas é um monopólio garantido pelo Estado. Porém, contamos com voluntarismo, cooperação, descentralização, bases do pensamento anarquista”, diz Mike Linksvayer, do Creative Commons. Para o escritor e teórico de cibercultura Bruce Sterling, esse é o modelo ideal. “Tem forte influência de idéias coletivistas, ao contrário do download de mp3”, afirma ele. “Prejudicar os interesses econômicos das pessoas não é coletivismo, mas pirataria.”

Ainda mais próximo do ideal anarquista é o chamado copyleft, que faz trocadilho com o copyright (right é direita, left é esquerda): ele permite a reprodução do material para fins não comerciais, desde que citada a fonte. Muita gente duvida que esse sistema vigore um dia. Mas, para Eben Moglen, professor de direito da Universidade de Columbia, esse dia está mais perto do que pensamos. No artigo Anarquismo Triunfante: Software Livre e a Morte do Copyright, ele afirma que o software livre foi o primeiro passo rumo ao fim da propriedade intelectual. “Temos uma visão de como será o futuro da criatividade humana em um mundo de interconexão global.”

Comunidades virtuais

A internet também tornou possível a criação das chamadas redes transnacionais. Com o barateamento da telefonia e do transporte entre países, tornou-se possível relacionar-se intensamente com pessoas a milhares de quilômetros de distância umas das outras. “Ao contrário das outras duas formas de organização (o mercado e a hierarquia), a rede é horizontal, recíproca e voluntária”, diz a socióloga Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota. Opa: esses são os princípios do anarquismo de Proudhon!

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Há redes de todo tipo – de direitos humanos a meio ambiente – e muitas delas se opõem ao Estado. Em Londres, uma rede de direitos humanos prendeu o ex-ditador chileno Augusto Pinochet em 1998. Até então, nenhum governo tinha tomado essa iniciativa. “Pode acontecer que até integrantes de um governo façam parte da rede. O juiz Baltazar Garzon é membro do sistema judicial espanhol e conseguiu levar adiante a ação contra Pinochet, o que o governo espanhol não queria”, diz Sikkink.

Graças ao conceito de rede, estar num lugar já não significa pertencer só à comunidade local, como mostrou Mohammed Atta, líder dos ataques do 11 de Setembro, que freqüentava boates americanas enquanto fazia parte da mais perigosa seita fundamentalista. Podemos também pertencer a comunidades sem importar o local onde vivemos, a exemplo do orkut. Além disso, cada vez mais pessoas moram num país e trabalham em outro, espécies de cidadãos acima dos Estados. Empresas de telemarketing dos EUA contratam funcionários na Venezuela para vender produtos aos americanos (ligando de Caracas).

Mas a rede também alenta o traço anarquista de potencializar o terror. É certo que anarquistas e jihadistas têm metas opostas: uns querem abolir o Estado, outros buscam implantar um Estado ainda mais autoritário, a teocracia. Mas os métodos coincidem. “Para jihadistas, leia-se anarquistas”, estampou uma reportagem especial da revista inglesa The Economist no ano passado. Os dois grupos usam a “propaganda pela ação”. Kropotkyn dizia que um ato vale mais que 1000 panfletos. Bin Laden não tem dúvida disso: atos como os dele surgiram na história moderna com os revolucionários de esquerda. Se por um lado o conceito de redes nos liberta, por outro propicia distopias como essas.

Rumo ao anarquismo?

Para o bem ou para o mal, os dias de hoje herdaram vários traços do anarquismo. Mas isso não significa que estamos caminhando para uma sociedade sem chefes ou governo. “Boa parte do poder do Estado tem sido ocupado pelas multinacionais – a antítese da organização anarquista de baixo para cima”, diz Michael Eaude. Também não basta a ausência de Estado para que a sociedade libertária aconteça. Como dizia o anarquista italiano Errico Malatesta, ela só será possível se a comunidade quiser.

E ninguém imagina que um dia viveremos sem comércio ou dinheiro. “A história nos ensinou que não dá para prescindir do mercado. Não se pode falar em autonomia das pessoas se eliminamos a autonomia econômica”, diz o cientista político Fábio Wanderley Reis, da Universidade Federal de Minas Gerais. Ou seja: existem vários motivos para a existência da propriedade e do governo. “A sociedade precisa de certa ordem para evitar a barbárie, e o autogoverno é o caminho mais rápido para a barbárie”, diz o cientista político Marcus Figueiredo, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj). “À medida que o auto-governo se espalha, a ordem social vai sendo quebrada.” O problema é que, na história, o Estado já resultou em barbáries maiores que as que a anarquia poderia tornar possível. O cientista político Rudolph Rummel, da Universidade do Havaí, coletou o número de assassinatos que os Estados cometeram no século 20. Na ponta do lápis: 170 milhões. Os mais mortíferos foram URSS (62 milhões), China (35 milhões) e Alemanha nazista (21 milhões).

Anarquistas ou não, o fato é que estamos vivendo uma transformação desse polêmico conjunto de instituições que chamamos de Estado. No século 17, o Estado nasceu por duas concepções principais. A primeira foi a do inglês Thomas Hobbes. Ele dizia que os homens viviam no chamado estado de natureza, em que os temores e as paixões provocavam uma luta de todos contra todos. Para se proteger, não haveria outra saída que se submeter a um governo com o monopólio da força, que Hobbes comparava com um monstro da Bíblia chamado Leviatã. É simples: as pessoas abrem mão de parte da liberdade em troca de proteção.

A segunda concepção vem da Paz de Westphalia, um tratado firmado em 1648 que fez do Estado a mais importante unidade política da Europa, acima da Igreja e dos indivíduos. “Ao contrário da barganha indivíduo-Estado pensada por Hobbes, esta era entre os países. Ou seja: eu reconheço que você existe e não interfiro dentro de suas fronteiras”, diz o sociólogo Michael Stohl, da Universidade de Purdue, EUA. Em outras palavras, os Estados nacionais ganharam soberania.

Hoje, esses dois modelos vivem uma grande crise. O Estado não protege um cidadão contra o outro, como provam os ataques do PCC em São Paulo. Ao mesmo tempo, a soberania de muitos países não passa de ficção. Haiti, Somália, Congo e vários outros não conseguem exercer controle nem fornecer serviços em amplas partes de seu território. Nem os superestados, como os EUA e os países da União Européia, exercem o controle do passado. “No fim do século 19, a rainha da Inglaterra governava 20% do território e da população do planeta”, diz o sociólogo Fareed Zacharia, editor da revista Foreign Affairs. Nessa época, a supremacia era feita na base de navios e telégrafos; hoje, com os aviões e a internet, os Estados já não cercam as pessoas como antes. “A tecnologia permite que os indivíduos driblem o controle do fluxo de produtos, dinheiro e informação”, diz a cientista política americana Janice Thompson no livro Mercenaries, Pirates and Sovereigns (“Mercenários, Piratas e Soberanos”, inédito no Brasil).

O Estado também não é um guardião de identidade nacional. A interação entre pessoas de diferentes países está levando à construção da chamada identidade cosmopolita. “Além de se considerar cidadãos de um país, muita gente se identifica com outros valores. A identidade nacional não desaparece, mas convive com uma nova, numa espécie de dupla nacionalidade”, diz Kathryn Sikkink, da Universidade de Minnesota.

Essa crise já se reflete nos governos e nas pessoas. Na Suíça, a figura do vereador dá lugar à do conselheiro voluntário, mais envolvido com a comunidade. Outros exemplos mostram que as pessoas já não querem depender do governo para resolver problemas como luz, água, tipo de educação e segurança. Em setembro, 10 mil pessoas assistiram a um show de rap para festejar os 34 anos da favela Godói, em São Paulo. Não havia um só policial para tomar conta: os próprios moradores revistaram as pessoas na entrada. Duas semanas depois, 34 artistas transformaram uma biblioteca pública meio abandonada, a Adelpha Figueiredo, em uma belíssima galeria de arte, onde funciona o Projeto Pari. Detalhe: a exposição não tem curador.

Anarquismo no Brasil

Em 1842, 6 anos antes de Marx escrever O Manifesto Comunista e quando o anarquismo ainda engatinhava na Europa, 236 operários franceses criaram, em São Francisco do Sul, norte de Santa Catarina, o Falanstério do Saí, também chamado de Colônia Industrial Francesa. Foi uma das primeiras experiências do socialismo utópico e do anarquismo do mundo. Os operários deveriam trabalhar por prazer, e tudo o que produziam era dividido. Mas a idéia durou menos de um ano. Com pouca estrutura, pouco acostumados com o trabalho rural e passando por várias brigas, o grupo se desfez. Seu principal criador, Benoit Jules Mure, se mudou para o Rio de Janeiro, virando o difusor da homeopatia no Brasil. A experiência mais longa foi feita por imigrantes italianos no Paraná: a Colônia Cecília. Apesar de pregar a ausência de líderes, a comunidade nasceu com o apoio de dom Pedro 2º, que se empolgou com as idéias dos anarquistas e cedeu a eles 300 alqueires. Três anos depois, quando o Brasil já era República, a Colônia Cecília começou a funcionar em Palmeira, a 80 quilômetros de Curitiba. Chegou a reunir cerca de 200 italianos, entre camponeses, intelectuais e artesãos. Toda a renda era dividida, não havia regulamentos, horários, cargos ou hierarquia. Houve até um princípio de amor livre, com dois homens vivendo com a mesma mulher, sem problemas. Mas a Colônia Cecília logo foi atacada pela miséria. Em 1893, um roubo de dinheiro vindo da colheita de milho fez a colônia minguar. As famílias foram para as capitais, engrossando as primeiras greves do século 20. Entre os que foram para São Paulo, estavam os Gattai, avós da escritora Zélia Gattai, hoje viúva de Jorge Amado e autora do livro Anarquistas, Graças a Deus.

Anarquismo na prática

Comuna de Paris

Em março de 1871, quando a França cambaleava com a guerra contra a Prússia, revolucionários aproveitaram para instaurar um governo popular em Paris. Organizados em federações de bairros, no melhor estilo de Proudhon, eles aboliram o trabalho noturno, aumentaram salários, perdoaram dívidas, acabaram com o ensino religioso nas escolas, instituíram a educação gratuita, aboliram o alistamento militar e as nacionalidades. Mas não conseguiram manter a situação por muito tempo devido aos ataques dos alemães e das tropas do presidente francês Louis Thiers. Depois de um banho de sangue, os revoltosos finalmente baixaram as armas. A experiência durou apenas dois meses, o suficiente para impressionar o resto do mundo.

Barcelona

No meio da bagunça da Guerra Civil Espanhola (1936-1939), seguidores de Bakunin tomaram partes da cidade e botaram em prática os ideais do líder anarquista. Até as mulheres pegaram em armas para ajudá-los na luta contra os falangistas (fascistas) e as tropas do general Francisco Franco. Eles fizeram fogueiras com todo o dinheiro que encontraram, derrubaram igrejas e instalaram conselhos de operários na base da autogestão. O anarcossindicalismo já era forte desde 1910, quando a Confederação Nacional do Trabalho (CNT) começou a mobilizar os trabalhadores em todos os níveis: educação, assistência social e moradia. “Essa organização a partir da base mostrou que é possível derrotar um exército e fazer uma revolução”, diz o britânico Michael Eaude, autor do livro Barcelona. Mas as vitórias duraram pouco. Em 1937, os anarquistas foram reprimidos pela Frente Popular (guiada pelos comunistas) e capitularam dois anos depois ante o exército de Franco.

O anarquismo e o mundo atual

Anarco-individualismo

ONTEM: Essa é a cara egoísta do anarquismo, inspirada nas idéias do alemão Max Stirner. Ele falava que era preciso atacar tudo o que contrariasse a vontade do indivíduo e evitar qualquer tipo de vínculo, regra ou moral. “A única regra sou eu”, dizia.

HOJE: Psicanalistas afirmam que o pensamento de Stirner sobrevive na visão do progresso próprio, como propõem os livros de auto-ajuda. É aquela coisa do “você consegue vencer”, “você pode ultrapassar os obstáculos”, que talvez ajudasse mais se essas obras também incentivassem a confiança nos outros.

Anarco-capitalismo

ONTEM: O economista austríaco Ludwig von Mises foi o pai dessa tendência, também chamada de libertarianismo. Seus discípulos são contra o Estado, mas a favor da propriedade privada. Dizem que tudo que os governos fazem, os indivíduos e as empresas podem fazer melhor.

HOJE: Associações de bairro contratam empresas de segurança porque já não querem depender do governo. Fundações como a de Bill Gates doam milhões de dólares para ajudar a combater epidemias. E até mesmo governos do mundo todo passam a terceirizar serviços.

Federalismo

ONTEM: O pensador Joseph Proudhon pregava a organização dos indivíduos a partir de múltiplos contratos: individuais, profissionais e universais. As associações operárias dariam conta do recado usando autogestão e coletivismo.

HOJE: Iniciativas como Creative Commons, Wikipedia e troca de vídeos estão transformando a internet em uma nova forma de organização social. Pessoas do mundo todo compartilham informação e aprimoram os trabalhos de forma coletiva. Esse sistema está sendo incorporado por empresas e grupos de pesquisa.

Anarco-sindicalismo

ONTEM: A espanhola Federica Montseny via no sindicato o principal instrumento da luta anarquista, cuja grande arma era a greve geral. Ela participou da Confederação Nacional do Trabalho (CNT), da Espanha, em que sindicatos se organizavam de baixo para cima sob os princípios de ajuda mútua e ação direta.

HOJE: Acontece o contrário. Os sindicatos deixaram de ser instrumentos de conquista operária, como no Brasil dos anos 70. Ou sofrem de esvaziamento ou de autoritarismo. O anarquista Malatesta já alertava que o sindicato devia ser temporário para não cair nos vícios dos partidos.

Anarco-comunismo

ONTEM: Bakunin e Kropotkyn buscaram um equilíbrio entre a idéia de “indivíduos acima de tudo” e a economia coletivizada. A propriedade estaria nas mãos de instituições voluntárias, que dariam ao trabalhador o direito de desfrutar do produto de seu próprio trabalho.

HOJE: Essa visão floresceu em fábricas e cooperativas onde não existe a figura do patrão nem do empregado. Hoje, mais de 300 empresas de porte médio trabalham no sistema de autogestão. O anarco-comunismo também combina com a ecologia social e sua máxima “agir local, pensar global”.

Anarquiarevolucionaria

ONTEM: Anarquistas como Bakunin e Nietchaiev pregavam a propaganda pela ação: o assassinato de líderes políticos para dissuadir os cidadãos da política. Em 18 anos, anarquistas mataram 7 grandes líderes mundiais. Os crimes tornaram o anarquismo caso de polícia e são tidos como os primeiros atos terroristas da era moderna.

HOJE: Apesar de lutarem por uma sociedade oposta à proposta pelos anarquistas, os terroristas islâmicos usam táticas criadas por eles. Ataques a bomba em trens do metrô e embaixadas são atos que, como dizia Kropotkyn, “valem mais que 1000 panfletos”.

Para saber mais

História das Idéias e Movimentos Anarquistas – George Woodcock, LP&M, 2002

Mercenaries, Pirates and Sovereigns – Janice Thompson, Princeton University Press, 1996.

https://www.creativecommons.org – Creative Commons.

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