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Comportamento – A aurora do pensamento mágico

Há menos de 100 mil anos, uma transformação radical do comportamento humano pode ter dado origem à crença em forças sobrenaturais - as sementes de Deus

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h36 - Publicado em 18 fev 2011, 22h00

Texto Reinaldo José Lopes

Há quem diga que todos os seres humanos nascem ateus e só depois são forçados – pelos pais, por exemplo – a adotar uma religião. Isso é apenas uma meia-verdade. A influência dos indivíduos mais próximos interfere um bocado. Filhos de muçulmanos costumam adotar o islamismo, assim como filhos de ex-coroinhas geralmente são católicos. Mas o impulso para acreditar em entidades sobrenaturais talvez seja bem mais profundo. Tão profundo que, para muitos pesquisadores, ele seria resultado do próprio surgimento da mente humana moderna, há dezenas de milhares de anos. Naquele momento, o homem primitivo teria adquirido a capacidade de acreditar no divino. E, numa tacada só, plantou as sementes da religião, da arte e da ciência. É o que se pode chamar de aurora do pensamento mágico.

Ninguém sabe quando e como essa transição aconteceu. Acredita-se, contudo, que ela seja mais recente que a nossa própria espécie. Parece confuso, e é mesmo. Os mais antigos fósseis do Homo sapiens anatomicamente moderno – ou seja, cujo corpo já era quase idêntico ao nosso – vêm da África e têm cerca de 200 mil anos. Só que esses primeiros humanos, ao que tudo indica, não se comportavam como gente de verdade. Durante 100 mil anos, ou até mais, eles provavelmente levaram uma vida quase idêntica à dos neandertais, hominídeos troncudos que ocupavam a Europa e o Oriente Médio na mesma época.

No registro arqueológico desse período, quase não há sinais de adornos para o corpo, formas de arte ou qualquer outro objeto com valor simbólico. Aparentemente, todos usavam o mesmo tipo padronizado de instrumentos de pedra – embora as matérias-primas disponíveis incluíssem conchas, ossos, dentes e marfim. E mais: tudo leva a crer que esses longínquos antepassados do homem moderno não enterravam seus mortos.

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Cabeça fluida

A coisa começou a mudar a partir de uns 70 mil anos atrás, sem que acontecesse nenhuma mudança física detectável nos Homo sapiens antigos. Numa sucessão relativamente rápida, nossos ancestrais inventaram ferramentas sofisticadas e adornos pessoais, como colares e braceletes. Começaram a pintar o corpo e as paredes das cavernas que lhes davam abrigo. E se transformam em escultores surpreendentemente caprichosos.

O mais intrigante, porém, é que esses humanos da época da Explosão Criativa também começaram a sepultar seus mortos e encher as sepulturas com artefatos que aparentemente eram oferendas. Estamos falando de presentes caros e raros, como dentes de raposa-do-ártico ou miçangas feitas com marfim de mamute. A própria arte das cavernas não parece ser apenas decorativa: além dos animais da Era do Gelo, é comum encontrar figuras estranhas – um homem com cabeça de leão, ou seres com pernas de gente, chifre de veado e pênis de felino. Afinal, o que significa tudo isso?

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O arqueólogo britânico Steven Mithen, da Universidade de Reading, na Inglaterra, acredita ter a resposta. Para ele, essas mudanças têm a ver com alterações no funcionamento básico do cérebro humano, produzindo o que ele chama de fluidez cognitiva. A expressão é complicada, mas o conceito não é tão difícil de entender. A ideia é que a mente dos primeiros humanos modernos, antes da aurora do pensamento mágico, era toda arrumadinha e bem dividida, como um armário cheio de gavetas. Segundo essa hipótese, a cabeça desses ancestrais tinha vários “módulos” separados – um para lidar com as interações sociais, outro para guiar a fabricação de instrumentos, mais um para compreender os animais e as plantas necessárias à sobrevivência, e assim por diante.

Esses módulos, segundo a teoria, não se falavam, impedindo que se estabelecesse uma relação entre diferentes raciocínios. Quando a fluidez cognitiva surgiu, ela quebrou essas barreiras. Ao especular sobre o comportamento dos animais que serviam de caça, por exemplo, os primeiros humanos de mente moderna passaram a enxergá-los como possuidores de desejos e intenções como os seus. Essa mistura de estações mentais teria tornado nossos ancestrais mais “criativos”. Eles passaram a usar objetos para simbolizar seu status social, criaram adornos os mais variados e começaram a empregar matérias-primas de origem animal na fabricação das ferramentas.

Origem da crença

A explosão de criatividade foi tão avassaladora nesse período que, segundo o arqueólogo Steven Mithen, nossos ancestrais enxergaram o mundo como um lugar povoado de criaturas com poderes e intenções muitas vezes invisíveis. Poderia ser essa, portanto, a origem da crença em seres sobrenaturais – ou, se preferir, as sementes de Deus. Outro arqueólogo especializado no tema, o alemão Nicholas Conard, da Universidade de Tübingen, concorda. Ele acha que essa tese pode explicar o aparecimento das estranhas imagens de seres meio animais e meio humanos por volta de 35 mil anos atrás.

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“A melhor hipótese que temos é a de que elas representariam xamãs, magos-sacerdotes que transitavam entre o mundo animal, o humano e o dos espíritos”, afirma Conard. Nas culturas de caçadores-coletores que existem até hoje, completa o arqueólogo, são muito comuns as ideias de que os seres humanos foram animais num distante passado mítico e que ainda há um elo mágico entre a nossa espécie e as demais criaturas.

Para Mithen, a mistura de “ferramentas mentais” que gerou o pensamento mágico teria ajudado nossos ancestrais a sobreviver. Ele acredita, por exemplo, que tentar entender a mente dos animais como se eles fossem gente, no fim das contas, pode ter ajudado os caçadores a prever o comportamento de suas presas, facilitando a captura. Os mitos sobre a origem dos seres humanos e a interação entre eles e o mundo dos espíritos também teriam funcionado como uma espécie de mapa dos ambientes onde nossos ancestrais viveram, transmitidos fielmente de geração para geração.

O mais importante para o futuro da humanidade, contudo, talvez tenha sido a mania de atribuir intenções humanas à natureza. Além de dar origem às primeiras mitologias, foi essa tendência que, segundo Mithen e Conard, levou o homem a se perguntar sobre a origem do mundo. A busca por explicações abriu as portas para que tanto a religião quanto a ciência se desenvolvessem. Sem o pensamento mágico, nem o embrião disso tudo teria sido possível.

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Macacos também rezam?
Duas antropólogas dizem já ter flagrado esses animais “reverenciando” a natureza e “velando” seus mortos

E se nós não formos a única espécie “espiritual” do planeta? A ideia parece absurda, mas alguns antropólogos e especialistas em comportamento animal argumentam que pelo menos parte da nossa capacidade para “detectar” o sobrenatural existe em outras criaturas. Um dos possíveis exemplos vem, não por acaso, dos nossos parentes vivos mais próximos, os grandes macacos. A britânica Jane Goodall, pioneira dos estudos sobre o comportamento dos chimpanzés na natureza, afirma que os bichos às vezes ficam quietinhos, com ar maravilhado, diante de uma cachoeira ou algum outro cenário natural muito bonito. Para Goodall, esse seria um embrião de reverência religiosa diante da beleza do mundo – mas a maioria dos primatologistas tende a discordar dela. A antropóloga americana Barbara J. King relata outra história intrigante envolvendo chimpanzés. Ela afirma que, quando o integrante de grupo morre à vista de seus companheiros, pode acontecer de o líder do bando manter os outros à distância, permitindo que apenas os parentes próximos do morto cheguem perto. É como se os macacos sentissem a mesma necessidade de “dizer adeus” que nós sentimos.

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Cópias primitivas

No campo da arqueologia, um dos maiores debates envolve os neandertais. Durante décadas, pesquisadores acreditaram que eles enterravam seus mortos com requintes simbólicos – oferendas de flores, por exemplo. Hoje, é consenso que essa ideia teve origem num erro de interpretação dos sítios arqueológicos. Mas isso não significa que esses primos do homem moderno eram incapazes de pensar e agir simbolicamente. Segundo o português João Zilhão, arqueólogo da Universidade de Bristol, na Inglaterra, e um dos maiores especialistas do mundo no assunto, os neandertais trilharam um caminho cognitivo independente e inventaram seus próprios símbolos – colares feitos com dentes de animais, por exemplo, entre outros “acessórios”. Portanto, afirma Zilhão, o pensamento mágico também estaria ao alcance deles. Os críticos dessa teoria, contudo, argumentam que os neandertais apenas copiaram os adornos que viram nos humanos modernos com os quais tiveram contato.

Para saber mais

• A Pré-História da Mente
Steven Mithen, Unesp, 2003.

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