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Diário de um arubaito dois meses ralando no Japão

O japonês emprestou do alemão a palavra arbeit (¿trabalho¿) para expressar o que chamamos de bico.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h24 - Publicado em 30 set 2007, 22h00

Texto Maurício Horta , de Toyohashi, Japão

Arubaito. O japonês emprestou do alemão a palavra arbeit (“trabalho”) para expressar o que chamamos de bico. Para brasileiros descendentes de japoneses, arubaito significa abrir mão das férias de verão e viver como operário por 3 meses na terra dos ancestrais. Mesmo com a economia japonesa em recessão, eles conseguem pagar a passagem e ainda economizam uma grana para viajar ou comprar a santa trindade do jovem de classe média: iPod, câmera digital e laptop, amém. Tentador? Sim. Mas o otimismo logo se despedaça na rotina da linha de produção e no relacionamento com os dekasseguis – os conterrâneos que foram passar muito mais que umas férias. Para saber se a tentação compensa, o repórter Maurício Horta passou dois meses trabalhando até 15 horas por dia numa fábrica de eletrônicos no equivalente ao ABC paulista no Japão, onde vive a maior concentração de brasileiros do país.

A chegada

Num canto, dois amigos mestiços sentados no chão, de bonés encardidos, descalços, coçando as dobras entre dedos dos pés como dois camponeses sob uma sombra de árvore após o almoço. No fumódromo, uma adolescente mestiça muito alta e de seios minúsculos, com alguns quilos de pele flácida sobrando da calça e da baby-look justíssimas, conversava com seus amigos hip-hop. O lugar era a sala de embarque do aeroporto internacional de Narita, próximo de Tóquio, mas uma única língua se ouvia: português. Um português arrastado do interior de São Paulo, Paraná ou Mato Grosso do Sul.

Os dekasseguis e arubaitos não são contratados pelas fábricas, mas, sim, terceirizados por empreiteiras. Além de conseguirem vagas, elas fornecem seguro, moradia e transporte, descontados diretamente do salário de ¥ 1 200 por hora (R$ 21), do qual também se subtrai o financiamento da passagem. Assim, chegando ao Japão, não é necessário correr atrás de nada – a van da empreiteira já está no aeroporto esperando você.

Enquanto o funcionário da empreiteira dirigia a van em direção a Toyohashi, onde eu moraria por dois meses, eu observava um casal mineiro de vinte e poucos anos no banco de trás, com seu filho de colo. Assim que a garota engravidara, havia dois anos, os dois se casaram e o marido mudou para o Japão. “Quando nosso filho nasceu, eu já estava aqui. Como o governo japonês não liberava o visto dela, só fui conhecê-lo agora, que passei 8 meses de férias no Brasil”, disse o marido.

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O apê

Ao abrir a porta no conjunto habitacional cinzento, achei que não conseguiria pagar o que via: um quarto-e-sala do tamanho de uma cozinha, de piso acarpetado, teto baixo e paredes de gesso; uma cozinha do tamanho de um ba­nheiro, com pia, minigeladeira, minimáquina de lavar roupa e um minifogão de duas bocas; e um banheiro do tamanho de uma banheira. Até então, não sabia que, em 3 semanas, a empreiteira colocaria o politécnico Danilo Nomura para dividir comigo o lugar.

No quarto-e-sala havia apenas um móvel: uma mesa para me proteger em caso de terremoto. Desembalei um grosso futon, pelo qual foram descontados ¥ 15 000 (R$ 260) de meu primeiro salário. Deitei-me. Naquele momento, de Maurício Horta, repórter, tornei-me Maurício Miyauchi, operário.

A fábrica

“Acende essa luz, acende essa luz, a luz é Jesus”, tocava o dvd player da van, num volume de elevador. Wilson Nakayama, funcionário da empreiteira, me levava para fazer a ficha de empregado. Parou o carro para cumprimentar uma moça e lhe perguntou – foi ontem à igreja? Provavelmente se referia a uma das 14 Igrejas Universais do Reino de Deus espalhadas pelo Japão.

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Depois de me registrar na empreiteira, conheci a fábrica. Era uma grande caixa isolada do exterior. Com centenas de lâmpadas fluorescentes, as horas passam sem você saber se é dia ou noite – a mesma tática dos bingos. Dentro de uma sala improvisada num contêiner, um funcionário brasileiro nos explicou as regras:

• Nunca tomar iniciativa própria. Diante de qualquer anormalidade, consulte o líder da linha de montagem.

• É proibido andar de uniforme fora da fábrica. Já aconteceu de um funcionário rou­bar comida num konbini [loja de conveniência] e, por estar de uniforme, a polícia baixou aqui na fábrica.

• É proibido usar roupa vermelha. Em caso de acidente ou terremoto, ela pode ser confundida com sangue.

• É importante saber se vocês estão mesmo preparados para fazer hora extra. Estão?

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Estávamos.

– A gente pergunta isso porque todo mundo diz que está apto, mas, quando a coisa aperta… A empreiteira está até correndo o risco de perder essa linha. Numa outra, contrataram mão-de-obra de Bangladesh e da Tailândia, pela metade do salário. Brasileiro é caro, chega atrasado e reclama muito. Para os bangladeshis, só sair do país deles já é lucro.

– E por que ainda contratam os brasileiros?, perguntei.

– Porque brasileiro aprende rápido. Na hora, aprende o que o “bangladeshi” demora 3 meses.

Andando pela fábrica, procurei pelos bengalis. Vi dois. Mais tarde, uma amiga me explicaria que eram jovens da elite do país que conseguiam permissão de trabalho desde que estudassem japonês. Ganhavam só ¥ 600 (R$ 10) por hora e, ao contrário dos brasileiros, todos falavam japonês fluentemente.

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O discurso fatalista

Outro dia, a caminho da fábrica, conheci a ex-bancária Iraci. Com o marido, já tinha tentado a sorte na Inglaterra; agora apostava na linha de montagem de contadores de moedas para máquinas de refrigerante.

– Ninguém aqui conta nada de bom. Nem os parentes, nem as revistas brasileiras! Só falam do que há de ruim!

O discurso de Iraci não terminou por aí.

– Eu amo o meu país, mas ou é o Brasil ou é o dinheiro. Não somos nós que desistimos do nosso país, mas, sim, o nosso país que nos faz abandoná-lo.

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Não seria a última vez que ouviria frases-bordão. Outra era “para ganhar no Brasil o mesmo que aqui, teria que estudar demais”. Quer dizer, morar num lugar para reclamar do frio, da saudade, do preconceito e da dureza do trabalho é mais fácil que estudar e empreender no Brasil?

No dia seguinte, Iraci estaria no portão da fábrica debaixo de 3 moletons e de um frio de 6 ºC. “Em Londrina não faz esse frio! A gente não tem do que reclamar do Brasil!”

A rotina

Primeiro dia na linha de produção. Como faria durante dois meses, 6 dias por semana, acordei às 7 horas da manhã para, como um contorcionista, tomar uma ducha no banheiro pré-fabricado de 2 m2 enquanto o pão de forma era carbonizado no miniforno. Banho corrido, uma xícara de chá, pão queimado e um potinho de iogurte Meiji sabor morango. Meu dia começava na correria para pegar o ônibus da empreiteira às 7h30.

Cinqüenta minutos depois, na fábrica, os alto-falantes tocariam I Just Called to Say I Love You e, como todo dia, começariam os desanimadíssimos alongamentos matinais. Em seguida, Clayton, líder da linha, reuniria os operários para dar as instruções do dia:

– A produção de hoje é 1 371 peças e a previsão de hora extra é de 3h30, tá?

Minha função: alimentar a linha de produção. Olhei para aqueles carrinhos de 1,5 m2. Cada um tinha 4 carcaças de computador e 4 caixas repletas de placas chinesas, memórias ram coreanas, hds taiwaneses e processadores malaios e também costa-riquenhos.

Alimentar a linha era a função mais pesada. Só naquele dia, passariam 1371 caixas por minhas mãos. Nas primeiras duas horas, o corpo começou a doer. Ao final do dia, uma agulha grossa parecia atravessar a coluna. O pior eram os pés. Como as lojas do Japão não estão preparadas para pés 44, tive os pés esmagados por quase um mês.

Por sorte, eu ficaria nesse cargo por só duas semanas, ao contrário do meu colega Arnaldo Souza. Ele nunca mudou de função desde quando entrou na fábrica. Até o fim de 2006, Arnaldo morava em São Miguel Arcanjo, São Paulo, e trabalhava na capital. Profissão? Carcereiro.Com os ataques do PCC e o assassinato de agentes penitenciários, Arnaldo decidiu se mandar para o Japão.

O fim de semana

Toyohashi tem 370 000 habitantes, mas suas ruas no inverno parecem as de uma cidade deserta. Para achar essas pessoas, basta passar no Yamada (a Casas Bahia japonesa), no Sega e no McDonald’s.

Sega? Sim, ele mesmo, o fabricante do mítico videogame MegaDrive, tratorado pela Nintendo e apagado das memórias mais jovens pelo PlayStation. Embora tenha desaparecido do mercado de consoles, a Sega continua firme no Japão, administrando templos de jogos eletrônicos. Um deles fica em Toyohashi.

Ao abrir as portas, fui invadido por uma cacofonia metálica e flashes coloridos que lembraram cassinos de Punta del Este. A única diferença entre o Sega e um bingo era que, em vez de velhinhas, eu via jovens de cabelo pintado, moicanos ou jaquetões hip-hop. Eles jogavam a mesada ou o salário em máquinas de caçar bonecos pixelados do Mario, do Luiggi, de princezinhas, de cogumelos e de Hello Kitties. E também nas mesas eletrônicas de apostas, onde uma adolescente ora amamentava a filha de uns 3 anos de idade, ora a ensinava a apostar. O Sega oferecia de tudo para a saudável diversão do japonês e do dekassegui.

Trabalho on demand

Lembra-se do fordismo? Na linha de montagem criada na fábrica de Ford, o chassi do carro e as demais peças são colocadas numa esteira que passa por vários operários, cada um em seu lugar fazendo uma só tarefa, até, no final da linha, o carango sair pronto para estacionar no pátio da fábrica.

O resultado: uma produtividade enorme, com carros iguais a preços mais baixos. Depois da 2a Guerra, quando iniciou seu surto de industrialização, o Japão viu que não poderia seguir o modelo americano. No fordismo, uma linha é abastecida por estoques enormes para produzir um só modelo.

Saindo das cinzas da guerra, o Japão não podia construir uma linha de produção para cada modelo.

A solução seria conhecida como toyotismo. Os operários são organizados flexivelmente sob o comando de um líder e máquinas podem ser alteradas de forma a produzir modelos diferentes, sem parar a linha. O toyotismo incorpora o just in time: Para não estocar as gordurinhas de produção, a fábrica recebe o pedido do cliente e a produção é concluída no mesmo dia – independentemente de quantas horas extras forem necessárias. Em vez de manter uma produção mais estável ao longo do ano, estocando nos meses de baixa para desovar nos de alta, as fábricas admitem e demitem a mão-de-obra terceirizada. É nessa dança das cadeiras que, todo ano, entram os arubaitos.

A angústia

O dia na fábrica é eterno. A hora e meia do primeiro turno matutino flui como um aquecimento. Passa o primeiro intervalo e, diante da oferta do almoço, o trabalho não parece tão difícil. Mas nada nos espera senão as frituras do bandejão – aqui não tem sushi nem sashimi. Prato A, prato B, curry ou udon.

No turno da tarde, o tédio torna-se implacável. Nessas horas, Iraci canta para si mesma músicas do padre Marcelo Rossi enquanto aperta parafusos de contadores de moedas; Danila, que está na linha há 6 anos, atrai os meninos com gracinhas, enquanto parafusa tocadores de dvd; Robô provoca os camaradas do depósito e Arnaldo põe-se a falar sem parar.

Na linha de montagem, Henry Ford divorciou a atividade manual da intelec­tual. O operário não precisa pensar, só repetir operações predeterminadas. Para o arubaito, passar 6 dias por semana sem usar a cabeça é uma angústia insustentável. Repete-se a palavra motainai – “desperdício”. Que livro poderia ler enquanto encaixo o 1 800º processador? Sobre o quê poderia conversar enquanto sou obrigado a ouvir mais um causo de Votuporanga?

Tensão às 16 horas

Quando falta uma hora para as 5 da tarde e há a possibilidade de dar conta da produção sem hora extra, começa o período mais tenso entre arubaitos e dekasseguis. Como o objetivo do arubaito é fazer a maior bolada possível em 3 meses, procura arranjar o máximo de horas extras, mesmo que isso signifique dormir 5 horas por dia. Já o dekassegui, que pode juntar dinheiro a longo prazo, não quer abrir mão de um descanso no fim do dia. No depósito, o batalhão de dekasseguis cria uma pressão insuportável na linha para aumentar a produtividade, enquanto os arubaitos, desesperados por horas extras, estão concentrados na montagem.

Na cabeça da linha, 3 pessoas do depósito forçam o coloca-e-tira de caixas com componentes a ser montados, enquanto Arnaldo grita reclamando da minha lerdeza. Na pressa, quase acerta minha cabeça com a caixa, que parece voar da linha aos carrinhos de coleta. As caixas são empurradas com violência. O volume aumenta, com caixas de componentes colidindo. Pentes de memória são encaixados tortos, cabos são postos nos pinos errados, selos são colados tortos e a produtividade vai de 13 a 10 segundos por peça. Gritos do depósito, gritos de Arnaldo, suor e dor nas costas e uma vontade imensa de largar tudo e voltar à minha vida em São Paulo. Bate o sinal das 17 horas e não haverá hora extra.

Arubaitos e dekasseguis fazem o mesmo trabalho, mas se misturar já é outra história. Nas pausas, é cada um em sua mesa. Entre si, os estudantes conversam sobre suas viagens pelo Japão e pelo mundo. Já os dekasseguis têm os pés bem no chão – falam fofocas do trabalho, sobre compras e terrenos no Brasil. Um é visto como o filhinho de papai que nunca precisou carregar peso, o outro, como o roceiro simplório.

Valeu a pena?

E assim passam dois meses. Seis dias à espera de um domingo em que poderia dormir até tarde e sair com outros arubaitos para comer um McChicken e checar meus e-mails numa loja de mangá. Seis dias de fofocas sobre um ex-colega preso pela polícia em Hamamatsu. Seis dias pensando no que estou perdendo, para, no domingo, limpar o apê e, ao ligar para os pais, ter vergonha de dizer que, não, não há novidades. A semana foi exatamente igual à anterior.

Com o fim do ano fiscal japonês, é hora de puxar o carro. Sentia os calos nas mãos e 4 quilos a menos na barriga. Ao menos tinha conseguido economizar ¥ 150000 (R$ 2600) – menos da metade dos gastos com passagem e aluguel.

Partiria de Kobe numa balsa para a China, mas algo me incomodava. Antes, eu precisava fazer uma coisa.

Entrei numa loja de eletrônicos. Lá encontrei um dos modelos feitos na minha fábrica. Um dos mais de 70000 pcs que passaram por mim. Era um Pentium 4 com 1 GB de memória ram – e eu é que tinha encaixado o proces­sador e o pente de memória. Conferi o preço: ¥ 250000 (R$ 4440). Quase o dobro do que consegui economizar.

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