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Kinsey fala de sexo

Para uns, um grande pesquisador. Para outros, um devasso fraudador da ciência. Conheça a vida e o trabalho do homem que passou a vida tentando provar que, no sexo, tudo é normal

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h21 - Publicado em 28 fev 2005, 22h00

Álvaro Oppermann

Não era fácil viver no ambiente puritano dos Estados Unidos no início do século 20. Em 1902, dois homens foram internados num hospital de Nova Orleans com o diagnóstico de masturbação compulsiva. Em um deles, foi colocado um anel no prepúcio, que tornava extremamente dolorosa a masturbação. O outro foi circuncidado para ter a sensibilidade reduzida. Como os tratamentos não funcionaram, ambos foram castrados. Os pacientes não resistiram aos procedimentos brutais e morreram ainda no hospital.

Alfred Charles Kinsey tinha 8 anos quando isso aconteceu. Seu pai era um religioso fanático, que proibia o álcool, o fumo e até as danças de salão. A repressão em casa não ajudou muito quando ele, adolescente, se deu conta que sentia atração por garotas e garotos. Kinsey se casou virgem aos 25 anos. Na lua-de-mel, uma nova descoberta: sexo não era nada divertido. Seu pênis era grande demais e a penetração, terrivelmente dolorosa para sua esposa.

O jovem foi buscar ajuda com médicos e viu que nenhum deles tinha a menor noção do que estava acontecendo. Naquela época, sexo era um assunto que não deveria ser discutido nem entre quatro paredes. Foi aí que Kinsey decidiu estudar o assunto. Durante todo o tempo, era guiado pela sua própria necessidade de entender – ou justificar, como afirmam alguns críticos – sua falta de ortodoxia quando o tema eram preferências sexuais. Kinsey investiu 30 anos de sua vida para provar que, quando o que está em jogo é a intimidade de cada um, o normal e o anormal são meras convenções.

AULAS DE HIGIENE

Sexo não foi o primeiro interesse do cientista Alfred Kinsey. Logo depois de se graduar como zoólogo no Bowdoin College, ele foi pesquisar vespas. Obcecado pelo objeto de estudo, chegou a catalogar 1 milhão de exemplares do gênero Cynips. Tamanha dedicação lhe rendeu respeito entre os colegas e um convite para lecionar na Universidade de Indiana. Foi lá que conheceu Clara McMillen, a estudante de química que se tornou sua esposa. Foi lá também que começou a ministrar aulas no Curso de Higiene (um eufemismo para o programa de educação sexual da universidade). O jovem professor deixou de lado metáforas e explicações teóricas e exibiu slides com detalhes de genitálias e órgãos reprodutores.

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As respostas positivas dos alunos atiçaram o desejo de Kinsey de aprofundar-se no estudo da sexualidade humana. Colocou a si mesmo a meta de coletar 100 mil depoimentos sobre a intimidade dos americanos nos dez anos seguintes (um objetivo que ele nunca alcançou).

A experiência na catalogação de vespas deu a ele o instrumental metodológico necessário para elaborar um complexo questionário, com 521 perguntas que iam de memórias na infância a episódios de experiência sexual. “Kinsey era um biólogo. Ele usou seu treinamento científico para fazer perguntas importantes sobre a biologia sexual dos humanos e sua maneira de pensar era essencialmente classificatória”, diz o sociólogo Edward Laumann.

FALANDO DE SEXO

O trabalho começou dentro do campus da universidade, mas, em 1941, despertou o interesse da Fundação Rockefeller, que concedeu uma bolsa a Kinsey. Com o dinheiro, conseguiu ampliar o âmbito da pesquisa a várias cidades americanas e contratar três colaboradores.

A ênfase da pesquisa era a diversidade sexual. “Meu trabalho com insetos salientou as variações individuais dentro dos grupos. Procedo da mesma maneira no estudo de seres humanos”, dizia. Kinsey sempre negou que o comportamento humano pudesse ser dividido em categorias rígidas como “hetero” e “homo” e classificava tal mentalidade como “pensamento binário”. Um dos melhores biógrafos do pesquisador, James H. Jones, acredita que o fato de o cientista privilegiar padrões que fugiam à regra geral de comportamento era uma forma de entender sua própria sexualidade. Já a mais ferrenha crítica de Kinsey, a terapeuta e estudiosa do sexo Judith Reisman, acredita que a tendência homossexual do pesquisador invalida seu trabalho. “Kinsey estava mais preocupado em legitimar a nascente ideologia gay do que em esboçar um amplo painel sobre a sexualidade nos EUA”, diz ela.

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Junto com seu staff, Kinsey entrevistou mais de 18 mil voluntários de costa a costa nos Estados Unidos (veja box abaixo). As entrevistas, contudo, eram só uma parte do trabalho. Para analisar as reações humanas durante a penetração vaginal e anal, o coito e a masturbação, Kinsey filmava relações sexuais no sótão de sua casa. As primeiras sessões – onde troca de casais e relações homossexuais eram regra – contaram apenas com seus subalternos e esposas. Com o tempo, Kinsey conseguiu engrossar a lista de voluntários com prostitutas, garotos de programa e até personalidades (o cineasta underground Kenneth Anger, por exemplo, concordou em ser filmado se masturbando).

O resultado das pesquisas foi publicado em 1948, no livro Sexual Behavior of Human Male (“Comportamento Sexual do Homem”, sem edição no Brasil). A obra revelava coisas que a sociedade puritana do século 20 jamais havia admitido em voz alta (veja box ao lado). Foi um sucesso inesperado. Em dois meses, 200 mil exemplares sumiram das livrarias e Alfred Kinsey transformou-se em celebridade. O sucesso, porém, fez emergir diversas críticas ao seu trabalho. Margaret Mead, uma das maiores antropólogas da cultura na época, viu na obra, ironicamente, um puritanismo disfarçado: em nenhum momento havia a sugestão de que o sexo podia ser algo prazeroso. Outro antropólogo, Geoffrey Gorer, identificou problemas estatísticos na pesquisa. Para ele, os entrevistados – muitos deles presidiários condenados por atentado ao pudor e pedofilia – não representavam uma amostra válida da sociedade americana.

O ponto mais polêmico do livro, contudo, foram revelações sobre o orgasmo infantil. Kinsey se correspondia com regularidade com homens pedófilos e foi acusado de conivência pelos críticos. Judith Reisman, por exemplo, costuma se referir a ele como “o maior propagandista de pedofilia na história da ciência”. Grande parte dos dados apresentados provinha das anotações de um misterioso “Sr. X”, que havia mantido relações sexuais com mais de 600 pré-adolescentes.

O livro seguinte, Sexual Behavior of Human Female (“Comportamento Sexual da Mulher”, também sem edição no Brasil) saiu em 1953 e não escapou das críticas. Prostitutas e presidiárias ganharam uma participação desproporcional nas páginas da obra, enquanto 934 depoimentos de mulheres negras do sul dos EUA (uma parcela conservadora da sociedade americana) foram excluídos do livro. Os críticos acreditam que essa seleção visava dar ao volume tons não puritanos.

O livro não teve uma reação tão calorosa do público. As vendas foram minguadas e, para piorar, a Fundação Rockefeller retirou-lhe o financiamento no ano seguinte. Com a saúde já debilitada pela idade e pelas experiências masoquistas que infligia a si mesmo (para testar os limites humanos da dor, Kinsey introduzia objetos pela uretra e fez a circuncisão em si mesmo sem anestesia), Kinsey morreu em 25 de agosto de 1956, vítima de complicações cardíacas.

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SEXO DEPOIS DE KINSEY

Kinsey mudou a história da ciência sobre sexo. “Ele foi um pioneiro e nos ajudou a dar os primeiros passos em pesquisas sexuais”, diz Beverly Whipple, uma das sexólogas mais renomadas da atualidade. O instituto criado por ele em 1947 continua a fazer pesquisas no campo da sexualidade humana. O foco, no entanto, não é mais a catalogação de diferenças comportamentais. “Hoje não estamos mais tão interessados no que as pessoas fazem, mas sim no porquê de o fazerem”, afirma Vern Bullough, do Centro de Pesquisa sobre o Sexo da Califórnia.

A repressão sexual, no entanto, ainda está longe de desaparecer e o país natal de Kinsey é um dos melhores exemplos disso. No estado do Texas, por exemplo, relações homossexuais eram consideradas crime até junho de 2003. E, em novembro de 2004, quando o filme do cineasta Bill Condon que retrata a vida de Kinsey foi lançado, a reação de uma parte dos americanos não foi nada receptiva. Grupos fundamentalistas montaram piquetes na entrada das salas de cinema para impedir a exibição e espalharam mensagens acusando o diretor de fazer um retrato suave do “homem que degradou os valores morais da América”.

Usando como justificativa os alarmantes dados sobre doenças venéreas no mundo, os conservadores – entre eles, o governo Bush – se opõem à liberdade sexual (que classificam como libertinagem) e pregam a abstinência até o casamento, uma recomendação muito parecida com a que era dada nos Cursos de Higiene da Universidade de Indiana em 1938. A cruzada de Kinsey, pelo visto, ainda não terminou.

O fracasso na lua-de-mel mostrou a Kinsey que sexo era tabu até entre cientistas. Ele resolveu investigar o que os americanos faziam na cama

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Kinsey catalogou detalhes da intimidade de pelo menos 18 mil homens e mulheres. Foi pouco, perto do projeto inicial

As revelações do sexólogo causaram tanto alvoroço que Kinsey virou uma celebridade. Seu nome foi parar em letras de música de gente como Cole Porter e da cantora pop Martha Raye

 

 

Apesar de escritos numa área linguagem científica, Comportamento Sexual do Homem lançado em 1948 (capa preta) e Comportamento Sexual da Mulher lançado em 1953 (capa de azul), tornaram-se best sellers e iniciaram uma cruzada contra a repressão sexual nos EUA

Olho no olho

Como eram feitas as entrevistas que compõem os relatórios

Kinsey contratou o antropólogo Paul Gebhard, o psicólogo Wardell Pomeroy e seu aluno Clyde Martin como ajudantes. Treinou-os de forma obstinada até que estivessem prontos para as entrevistas. Mudanças no tom de voz, na expressão facial e no olhar eram ensaiadas de forma minuciosa, a fim de ganhar a cumplicidade do entrevistado. O nome de todos os voluntários era mantido em sigilo. Os quatro percorreram todos os estados americanos, concentrando-se em grandes cidades como Nova York, Los Angeles e Chicago. Os locais preferidos para entrevistas eram universidades, prisões, bares e banheiros públicos. Lugares gays, onde era possível falar de sexo sem ser literalmente apedrejado, entravam na lista com freqüência.

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O que Kinsey revelou

Comportamentos “anormais” eram regra na intimidade dos americanos

O que eles fazem

Os dados divulgados por Kinsey eram chocantes e foram contestados por muitos cientistas. Pesquisas posteriores mostraram números bem mais baixos em vários dos quesitos relacionados em seus relatórios

• 90% dos americanos se masturbam

• 37% já tiveram alguma relação homossexual

• 10% são exclusivamente homossexuais

• 11% fazem ou já tentaram fazer sexo anal com suas esposas

O que elas fazem

O relatório sobre comportamento feminino provava que a mulher era tão sexualmente ativa quanto o homem. Por causa das informações que divulgou, Kinsey foi acusado de comunista e de querer destruir os lares americanos

• 69% têm fantasias sexuais com outros homens que não os maridos

• 62% das mulheres se masturbam

• 26% traem os maridos

• 19,1% praticam sexo oral antes do casamento

• 13% já tiveram alguma relação homossexual

• 3% a 6% são exclusivamente homossexuais

Sobre crianças

A parte mais polêmica das pesquisas de Kinsey tratava da sexualidade infantil. Colhendo depoimentos de homens pedófilos, o sexólogo montou tabelas de estimulação erótica em crianças. Veja algumas das informações que ele recolheu

• Um bebê de 11 meses teria tido 10 orgasmos em uma hora

• Uma menina de sete anos teria tido 3 orgasmos em uma hora

• Um menino de 13 anos podia chegar a 19 orgasmos por hora

 

Ascensão e queda

Reportagens da imprensa americana mostram a trajetória da vida de Alfred Kinsey

O primeiro volume da pesquisa é recebido com grande entusiasmo

“As descobertas do Dr. Kinsey oferecem uma nova base para a compreensão do sexo. Precisamos revisar nossos conceitos morais e legais sobre o assunto.”

The New York Times, 4/4/1948, após o lançamento de seu primeiro livro

“O doutor Kinsey colocou o sexo em pauta até na mesa de jantar. O sucesso da obra é merecido. Ela é revolucionária.”

The New York Times, 16/5/1948. Comportamento Sexual do Homem já era um best seller

A reação do público e da mídia ao segundo livro, sobre mulheres, é menos entusiasmada

“Estamos em dívida com Kinsey por causa da sua contribuição à ciência. Trata-se, porém, de uma contribuição, e não de um tratado definitivo. Ao leitor, recomenda-se cautela.”

Revista Time, 13/9/1953, após o lançamento de Comportamento Sexual na Mulher

A polêmica em torno de seu trabalho fez Kinsey perder o patrocínio

“Kinsey afirma que grupos religiosos têm feito pressão para que a Universidade de Indiana e a Fundação Rockefeller acabem com o patrocínio para seus estudos”

The New York Times, 6/5/1954, alguns meses antes de ele perder o patrocínio

“O presidente do Comitê para Assuntos Sexuais disse ontem que os fundos da Fundação Rockfeller para o Dr. Kinsey foram retirados porque seu instituto não solicitou uma renovação do patrocínio”

The New York Times, 24/8/1954, um dia após o sexológo perder o patrocinador

 

Para saber mais

Nos cinemas:

Kinsey – Vamos falar de sexo – Direção e roteiro de Bill Condon. Lançamento: 11 de março

Na livraria:

Alfred. C. Kinsey: A Life – Ralph Keyes, St. Martin’s Press, EUA, 2004

Na Internet:

Kinsey Institute – https://www.indiana.edu/˜kinsey

The Institute For Media Education – https://www.djrudithreisman.com

 

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