O futuro é hoje
Em sua última entrevista, o escritor russo Alexander Kazantsev falou à SUPER de como suas obras inspiraram a ciência.
Pablo Villarrubia Mauso
Romances, contos, filmes, invenções revolucionárias, teorias ousadas. Tudo isso fez parte da intensa vida do russo Alexander Kazantsev, engenheiro e escritor cujas idéias, algumas proféticas, podem ser comparadas às de outros autores de ficção científica, como Júlio Verne, Isaac Asimov ou Arthur Clarke.
Assim como esses escritores, ele fez previsões que vão desde descobertas científicas, como a supercondutividade, até mudanças nos hábitos cotidianos, como a expansão dos supermercados.
O cosmonauta russo G. Beregovoy afirmou que Kazantsev previu até mesmo a construção do veículo russo Lunokod, um trator lunar teleguiado que andou sobre a superfície da Lua 15 anos depois de ele o ter descrito no conto Estrada Lunar. Na década de 1940, os militares russos chegaram a se interessar por seu projeto de uma arma elétrica de alcance intercontinental descrita no romance Arenida. Mas, ao contrário do que se pode imaginar, Kazantsev foi um dos mais ativos pacifistas da extinta URSS e, como ele gostava de ressaltar, foi também um grande jogador de xadrez.
Poucos meses antes de sua morte, aos 96 anos, em setembro do ano passado, o escritor deu à Super sua última entrevista na casa de campo em Peredélkino, a 45 quilômetros de Moscou, cercado de livros, um velho computador e alguns desenhos no estilo Flash Gordon pregados na parede.
Qual é sua melhor definição para a ficção científica?
Acredito que a ficção científica não é apenas diversão, passatempo. É um gênero literário com normas próprias que prevê os avanços da ciência e muitas vezes produz idéias que são aproveitadas pelos cientistas. Além do mais, prepara a humanidade para o futuro e para a implantação de novas tecnologias.
Por falar em futuro, muitas das suas obras são consideradas premonitórias. Como surgiu a idéia de criar uma arma elétrica de alcance intercontinental?
A idéia surgiu no meu romance Arenida, de 1946, no qual os seres humanos tiveram que buscar uma solução para destruir um asteróide que se aproximava da Terra. Essa idéia, muitos anos mais tarde, foi explorada pelo cinema, inclusive por Hollywood. Foi então que a prestigiosa Academia Soviética de Ciências adotou o livro para os estudantes dos seus diversos cursos.
O senhor também escreveu sobre a existência de “supertúneis”…
Muito antes da construção do túnel sob o canal da Mancha, eu escrevi, em 1941, o livro Ponte Ártica, sobre uma ponte cuja técnica é mais ou menos a mesma que foi empregada pelos franceses e ingleses. A diferença é que meu túnel era muito maior: tinha 4 mil quilômetros de extensão e era flutuante, sobre o estreito de Bering, ligando a União Soviética ao Alasca. Muitos engenheiros se interessaram pelo projeto, pois acharam que era bem elaborado.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o senhor fez parte do Instituto de Pesquisas Eletromecânicas da União Soviética e foi um dos seus diretores. Que projetos desenvolveu lá?
Um deles foi o chamado tanque-torpedo, cujo protótipo se encontra hoje no museu moscovita do Parque de Vitória. Não acredite que por isso eu seja uma pessoa que apóia a corrida armamentista. Nós, os russos, vivemos uma guerra muito difícil, com um cerco terrível a Leningrado, onde pereceram milhões de pessoas. Na época, tínhamos que buscar soluções para salvar nosso povo. Porém, a maior virtude do ser humano é a paz.
De qual de seus romances o senhor mais gosta?
A Destruição de Faetia, o último de uma trilogia, por sua mensagem pacifista. Trata-se de uma sociedade complexa, que se desenvolveu em um planeta que existia entre as órbitas de Marte e Júpiter e, mais tarde, daria origem ao cinturão de asteróides. Especulei que o planeta desapareceu por causa de uma guerra entre várias facções, a partir de uma violenta explosão atômica no seu oceano. Certa vez, o grande físico Niels Bohr se reuniu em Moscou comigo e outros escritores russos. Aproveitei para perguntar-lhe se um planeta poderia ser destruído completamente se um superdispositivo nuclear fosse detonado em seu interior. Ele não negou essa possibilidade mas disse que, se isso realmente pudesse acontecer, as armas nucleares deveriam ser proibidas.
O senhor é um apaixonado pelo planeta Marte. Como surgiu essa paixão?
Entre 1940 e 1950 realizei várias viagens pelo oceano Ártico e o norte da Sibéria a bordo do navio científico Georgii Sedov. Aquela desolação me fez pensar no mítico planeta vermelho. Imaginei que sua superfície gelada e varrida pelos ventos seria semelhante aos lugares que visitei. Foram essas paisagens que me serviram de inspiração para uma série de histórias fantásticas centradas no Ártico, que realmente parece outro planeta.
Por que sua obra A Ilha em Chamas (1940) é considerada uma das mais visionárias e complexas.
É um romance que previa o uso de tecnologias baseadas no princípio da supercondutividade. No livro, o físico Klenov usa essa tecnologia para convertê-la em uma poderosa arma.
E o que mais voce prevê nessa obra?
O livro antecipa também a questão do aquecimento da atmosfera terrestre. Há, no livro, uma ilha no oceano Pacífico que, na verdade, é um pedaço de um asteróide. Dela, acidentalmente, começa a exalar um perigoso gás violeta que, em contato com o ar, provoca incêndios e combustões com o risco de expandir-se e incendiar toda a atmosfera. Então, aparece um magnata alemão, comerciante de armas, que monopoliza o metal radioativo da ilha. Esse homem começa a armazenar todo o oxigênio líquido do planeta e cria uma empresa destinada a transformar imensas cavernas em zonas habitáveis para salvar uma pequena parte da humanidade. Os cientistas encontram uma solução para evitar um cataclisma em âmbito planetário: disparar uma bomba sobre a ilha e apagar o incêndio, tal como se faz para apagar os incêndios em poços de petróleo. Para tal fim, empregam um composto de supercondutores
Qual é a importância da fantasia no conjunto da sua obra?
Costumo dizer que não pode existir ciência sem fantasia. Por isso a ficção científica de boa qualidade tem contribuído para estimular a nossa imaginação e a da ciência. O pensamento dos seres humanos é o único que pode conquistar o tempo e o espaço e criar o que jamais existiu, expandindo as fronteiras do conhecimento.
O senhor é considerado o pai da chamada “astro-arqueologia”, ou seja, a idéia de que, no passado, fomos visitados por seres inteligentes de outros planetas. O que o fez levantar essa possibilidade?
Comecei a pensar nisso depois que vi estatuetas em formas humanas de cerâmica dos honshu, um povo milenar do Japão. As estatuetas, que recebi para analisar de um amigo arqueólogo, foram encontradas nas sepulturas dos antigos ainos, um povo de raça branca que habitava as ilhas do norte da região na era paleolítica. Nos anos 60, enviei fotos e observações do achado à antiga agência espacial soviética e à Nasa. Eles me responderam e se mostraram surpresos com aqueles objetos: os personagens representados pareciam estar vestidos com trajes espaciais, com detalhes tecnológicos que o povo da época não poderia ter conhecido.
Frase
“Não pode existir ciência sem fantasia. É por isso que a ficção contribui para o avanço tecnológico”
Alexander Kazantsev
• Nasceu em setembro de 1906, em Akmolinsk (hoje Astaná, capital do Cazaquistão).
• Estudou Engenharia no Instituto de Tecnologia de Tomsk, na Sibéria.
• Em 1933, tornou-se chefe de um laboratório científico na periferia de Moscou.
• Morreu em setembro de 2002, na cidade de Peredélkino, a 45 quilômetros de Moscou.