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Como os tapetes do Afeganistão se tornaram um retrato da guerra

Primeiro vieram os russos. Depois chegaram os americanos. Aí apareceu o Taleban. O Afeganistão vive em guerra há mais de 30 anos. Soldados, mísseis, bombas, helicópteros, drones e terroristas viraram parte do dia a dia. E tudo isso foi parar num lugar inusitado: os tapetes.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 4 set 2020, 18h17 - Publicado em 7 jan 2015, 22h00

Por Maurício Horta, de Cabul (Afeganistão)

“Já estou velho e da vida não me resta nada senão esperar”, diz o vendedor, com uma voz moribunda, sentado no chão de sua pequena loja de tapetes na Chicken Street, coração do comércio de Cabul, capital do Afeganistão. Depois de três xícaras de chá e lamentos fluentes em inglês, alemão, italiano e francês, ele apela para seu último argumento. Levanta a camisa, pega a minha mão e, conduzindo-a à sua barriga magra, murmura: “Ó, como eu sofro…” E assim, após ficar longos minutos ouvindo reclamações do velho (“você só me faz perder dinheiro”), o negócio estava feito por US$ 300. Comprei dois tapetes. Um belíssimo turcomeno, com medalhões hexagonais bordados manualmente em lã tingida com pigmentos vegetais. E o outro com uma estampa… estranha. É o mapa do Afeganistão e as Montanhas de Tora Bora, onde se acreditava que Osama bin Laden vivesse escondido. Em volta, bombardeiros B-52, helicópteros Apache e Chinook – um monstro voador com duas hélices -, pistolas, granadas e tanques. Ao lado de um caminhão com mísseis antiaéreos, está escrito “LQAEEDA”. Na verdade, quer dizer “Al Qaeda”. Escreveram errado. “Você espera o que de camponesas analfabetas? Isso é apenas um tapete”, resmunga o vendedor.

A tapeçaria, tanto quanto a negociação dramática, é uma tradição no Afeganistão. De geração em geração, tecelões de diferentes etnias e tribos desenham belos temas geométricos, medalhões e animais. Mas, em 1979, essa paisagem mudou. O país foi invadido pela União Soviética – e nunca mais saiu da guerra. Em dezembro de 1980, 1,5 milhão de afegãos já tinham fugido. No ano seguinte, 3 milhões. As mulheres e os filhos de pastores turcomenos e balúchis, que costuravam tapetes tradicionais, foram parar em campos de refugiados no Paquistão. Foi aí que tudo mudou. Os camelos, as ovelhas e os pássaros que os balúchis gostavam de desenhar foram dando lugar a temas bélicos: tanques, blindados e helicópteros do Exército Vermelho, depois granadas, minas terrestres e mísseis Stinger, fornecidos pelos EUA para que a resistência afegã combatesse os soviéticos. Os tapetes viraram verdadeiras cenas de guerra. E caíram no gosto do freguês.

Peshawar, capital da província da fronteira noroeste, tem uma feira tradicional, onde se vendem muitos tapetes. E também vivia cheia de gringos, como trabalhadores de ajuda humanitária, jornalistas, espiões e diversos outros estrangeiros atraídos pela guerra afegã-soviética. Leigos, que não entendiam nada de tapeçaria, mas tinham bastante dinheiro para gastar. Os vendedores perceberam que os tapetes com cenas bélicas vendiam bem – e começaram a encomendar cada vez mais deles. Afinal, para que comprar um tapete com temas geométricos se você tem em frente de si um desenho com tanques, fuzis AK-47 e mapa-múndi com bandeiras de países existentes e imaginários? É uma lembrança muito mais atraente. Um souvenir de guerra perfeito, com o tamanho certinho para caber na mala e mostrar para os amigos na volta para casa.

Refletindo as mudanças no mundo, e a esperança dos refugiados, os tapetes bélicos ganharam um novo design em 1989. Do mapa afegão, partia uma coluna de tanques soviéticos em direção a Moscou, através da fronteira do Uzbequistão. O Exército Vermelho estava deixando o Afeganistão, num dos últimos capítulos da Guerra Fria. A paz, no entanto, estava longe de chegar. Ao sair do epicentro geopolítico mundial, o país submergiu em mais uma década de guerra, dessa vez civil. Muitas pessoas continuaram em campos de refugiados – para escapar não de invasores, mas do terror que culminou no regime dos Taleban. Os tecelões voltaram a se dedicar mais aos tapetes tradicionais. Até que uma série de atentados mudou a história.

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Setembro bordado

As torres gêmeas são atingidas por dois aviões, mas não há drama. Sobre suas chamas, pairam as bandeiras dos EUA e do Afeganistão unidas por uma pomba da paz. É esse o estranho resumo dos atentados de 11 de Setembro, e da invasão americana no Afeganistão, em um dos tapetes à venda em Cabul. A nova intervenção estrangeira, que se arrasta desde 2001, derrubou o regime do Taleban e fez 5 milhões de refugiados voltarem ao país. Também trouxe centenas de milhares de soldados, funcionários das Nações Unidas, trabalhadores de organizações não-governamentais, jornalistas e aventureiros. Todos interessados em voltar para casa levando a guerra documentada em algodão e lã – e, em alguns casos, revender os tapetes na internet cobrando até dez vezes mais.

Alguns temas continuaram os mesmos. Desenhos de armamento militar, tropas soviéticas se retirando do mapa afegão, mapas com bandeiras embaralhadas. Mas também há novidades um pouco menos bélicas. Pela primeira vez, alguns dos tapetes retratam um herói: o comandante militar Ahmad Shah Massoud, que parte da população considera uma espécie de Che Guevara afegão. Ele lutava contra os soviéticos e o Taleban, e foi morto dois dias antes dos atentados de 11 de Setembro.
Para seus vendedores, os tapetes são um excelente negócio. Por trás do velho frágil e reclamento com quem fiz a compra, está um comerciante bem-sucedido, dono de outra loja maior e de um casarão onde diz manter famílias de trabalhadores (a caridade é considerada uma obrigação para os muçulmanos ricos). Tudo graças à renda gerada pelos tapetes. Eles são um jeito de tomar dinheiro dos ocidentais, recuperar um pouco do que tiraram do Afeganistão. E tentar exorcizar os fantasmas da guerra – nem que seja pisando neles.

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