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Koko, a gorila que fala

Ela virou celebridade do YouTube por conhecer mais de mil palavras da linguagem de sinais humana. Mas por trás de sua inteligência há um lado controverso

Por Bruno Garattoni, Ricardo Lacerda e Leonardo Pujol
Atualizado em 29 jun 2021, 07h58 - Publicado em 20 abr 2017, 16h54

– Você gostaria de voar como um pássaro?

– Embaixo.

– Você prefere ficar no chão?

– Embaixo chão.

– Eu acho você inteligente.

(Koko sorri.)

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– Você me ensina [a falar] gorila?

– Amo Koko pressa.

– O que os gorilas dizem quando estão felizes?

– Você sabe sorriso.

– O que os gorilas dizem quando estão bravos?

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– Koko conhece boa Koko.

– O quê?

(Koko bate no peito e continua.)

– Gorila Koko.

– O que os gorilas dizem quando estão com medo?

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– Rápido cortinas.

(Quando sente medo, Koko costuma pedir aos tratadores que fechem as cortinas da habitação onde vive.)

– O que assusta os gorilas?

– Problema.

– O que você sente quando comeu bolo demais?

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– Triste estômago ruim.


(André Toma/Superinteressante)

Este é um diálogo real entre a gorila Koko e a pesquisadora Barbara Hiller, da Universidade Stanford – ambas se comunicando por meio de linguagem de sinais. Koko se expressa de maneira rudimentar, em sentenças curtas (ela raramente forma frases com mais de quatro palavras) e pouco estruturadas. Mas claramente consegue entender o que está sendo dito, sobre vários temas, e manifestar o que pensa a respeito. É um registro extraordinário, o mais próximo que o ser humano já chegou de conseguir se comunicar com um animal.

O diálogo foi registrado pela psicóloga animal Penny Patterson, também de Stanford, que nos últimos 44 anos foi a “mãe” de Koko – e ensinou a gorila, desde que ela tinha apenas um ano de idade, a entender e usar a linguagem de sinais humana. Segundo Penny, hoje Koko é capaz de entender e utilizar 1.100 palavras. A gorila vive num santuário construído na cidade de Woodside, na Califórnia, que tem uma área interna – um trailer com dois ambientes – e uma área externa, para a qual ela pode sair.

Koko recebe visitas diárias de Penny, que mora a cinco minutos do santuário, e é supervisionada por tratadores, que preparam sua alimentação e procuram distraí-la com brinquedos, DVDs (ela demonstra preferência por filmes com bichos, como Babe, O Porquinho, Dr. Dolittle e Free Willy) e conversas, sempre via linguagem de sinais, ao longo do dia. A gorila também pinta quadros, que lembram arte abstrata e são vendidos, pela internet, por US$ 100 a US$ 350. Koko já foi capa de revistas, gravou vídeos com artistas, foi assunto de documentários e programas de TV, e tem um canal no YouTube com até 7 milhões de acessos por clipe. É uma celebridade. E sempre foi.

Sua popularidade começou logo que ela nasceu, em 4 de julho de 1971, no zoológico de São Francisco, e o parque fez um concurso para escolher o nome. O vencedor foi Hanabi-Ko, expressão japonesa que significa “criança dos fogos de artifício” – homenagem ao dia da independência dos EUA, o mesmo do nascimento da gorila. O nome acabou abreviado para Koko. Ela teve um começo de vida feliz, vivendo acompanhada dos pais, Jacqueline e Bwana. Demonstrava presença marcante e já compreendia alguns sinais ensinados pelos tratadores, como “comer” e “beber”.

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Aos 6 meses, a gorilinha teve uma infecção intestinal, foi internada e quase morreu. Ao se recuperar, não foi devolvida ao grupo. O zoológico achou que sua mãe não a reconheceria, e não a amamentaria (os gorilas mamam até os três anos). Koko foi isolada e passou a ser estudada em tempo integral por Penny. Ao completar 3 anos, foi levada para um cativeiro na Universidade Stanford. Já tinha aprendido 80 sinais. Foi nessa época que a gorila começou a juntar palavras, formando frases como “Koko quer mais comida”.

Quando Koko tinha 5 anos, Penny pediu sua guarda definitiva. Usando donativos, criou a Fundação Gorila e arranjou o pequeno santuário em Woodside. O zoológico topou, desde que Penny pagasse uma taxa (US$ 52 mil em valores de hoje) e arrumasse um macho para Koko se reproduzir – pois os gorilas ocidentais das terras baixas, espécie a que ela pertence, estavam (e ainda estão) ameaçados de extinção. O escolhido foi Michael, um gorila camaronês de 3 anos que vivia em um parque na Áustria. Não rolou. Koko sempre encarou Michael como um irmãozinho mais novo, e nunca quis copular com ele (os gorilas, como os humanos, têm rejeição ao incesto).

Penny também adotou Michael, que passou a viver junto com Koko. “Às vezes eu vejo uma família com seis, sete filhos e penso: como alguém pode criar tantas crianças? Aí eu caio na gargalhada, já que cuido de dois gorilas”, diz Penny em um vídeo gravado nos anos 1980. Ela raramente fala à imprensa (recusou, inclusive, um pedido de entrevista à SUPER), e mantém rígido controle sobre Koko, que nunca foi estudada profundamente por outros pesquisadores. As habilidades linguísticas da gorila estão documentadas em mais de 2 mil horas de vídeos gravados por Ron Cohn, biólogo da Universidade Stanford que acompanha Koko desde o nascimento. Mas a falta de estudos independentes sempre despertou dúvidas sobre a real capacidade da gorila. Porque a educação de Koko não foi a primeira tentativa de ensinar um primata a se comunicar com humanos.

O menino e o macaco

Na década de 1930, acreditava-se ser possível fazer um macaco falar. Bastaria ensiná-lo. Em 1933, o psicólogo Winthrop Kellogg, da Universidade de Indiana, adotou o chimpanzé Gua, com 7 meses de idade. O animal passou a viver com o pesquisador, ao lado de sua esposa e do filho, Donald, então com 10 meses de idade. Criados praticamente à mesma maneira, Donald e Gua tinham seus comportamentos analisados diariamente. O cientista monitorava e comparava aspectos como pressão arterial, tamanho do corpo, reflexos, vocalização, locomoção, força e equilíbrio. Nove meses depois, sem notar evolução nos estudos, o psicólogo interrompeu a pesquisa. O chimpanzé até respondia a comandos verbais, mas não falava uma única palavra. Donald, por sua vez, começava a fazer barulhos de macaco. O psicólogo achou melhor parar por ali.

Décadas mais tarde, primatologistas americanos chegaram à conclusão de que macacos jamais falariam. A explicação? Primatas têm a língua menos flexível que a nossa, além de laringe (órgão que é responsável pela vibração da garganta e emissão dos sons) grande demais. Por isso, o máximo que eles conseguem produzir são urros. Jamais poderiam gerar sons com a delicadeza necessária à fala.

Os esforços passaram, então, para a linguagem de sinais. Os psicólogos Allen e Beatrix Gardner, da Universidade de Nevada, foram os pioneiros. Em 1967, começaram a ensinar uma chimpanzé, Washoe, a reconhecer símbolos e gestos. Segundo eles, Washoe (que morreu em 2007, aos 40 anos) conseguiu memorizar 250 termos. Depois dela veio o chimpanzé Nim Chimpsky – o nome é uma homenagem bem-humorada ao filósofo americano Noam Chomsky, considerado o pai da linguística moderna (ele foi o primeiro a propor que os seres humanos já nascem com uma aptidão genética para a linguagem). Nim, o chimpanzé, foi educado pelo psicólogo Herbert Terrace, da Universidade Columbia. O bicho aprendeu 125 símbolos, quase todos representando comida ou brinquedos, mas Terrace considerou a experiência um fracasso. Concluiu que Nim (morto em 2000, aos 26 anos) estava apenas repetindo gestos humanos. Não possuía capacidade de raciocinar e escolher palavras para expressar algum pensamento, e suas “falas” eram apenas uma forma mais sofisticada de reflexo condicionado, como a reação de um cachorro que dá a patinha ao escutar um sino – porque um humano o condicionou, por meio de recompensas ou castigos, a fazer isso. O mesmo valeria para Koko.

Essa tese é corroborada por Robert Sapolsky, primatologista da Universidade Stanford e um dos maiores especialistas mundiais na área. “Existem vários vídeos reconfortantes de Koko, mas não há dados, não há números”, disse durante uma palestra. Para ele, as gravações mostram apenas a gorila seguindo uma ordem de palavras. A polêmica mais recente aconteceu no final de 2015, quando Koko apareceu em um vídeo gravado para divulgar a 21ª Conferência do Clima, a COP-21, em Paris. Ela gesticulava formando frases cuja mensagem era algo como “o ser humano precisa urgentemente preservar o planeta”. Muita gente achou que aquilo era fake, um script decorado após horas de treinamento coordenado por Penny. De fato: acreditar que um gorila possa compreender um tema tão complexo quanto o aquecimento global equivale a crer em duendes.

Polêmicas à parte, vários especialistas dizem que os macacos têm a capacidade de dominar e usar linguagem. “Quando o animal aprende uma palavra, ela pode trazer uma valência, ou seja, um sentimento negativo ou positivo. Então ele associa uma coisa à outra, e se manifesta”, diz Ceres Faraco, doutora em psicologia animal e professora da Uniritter, em Porto Alegre. Talvez os gorilas tenham, inclusive, o próprio idioma de sinais. Em 2009, pesquisadores da Universidade de Neuchatel (França) analisaram 105 horas de gravações de quatro grupos de gorilas, um selvagem e três de cativeiro, e dizem ter identificado um repertório de 102 gestos.

All Ball, o primeiro gato a ser adotado por Koko. Foi uma maneira de tentar aplacar a solidão da gorila. Mas teve um desfecho trágico. (André Toma/Superinteressante)

Gatos, família e solidão

Quando Koko completou 11 anos, Penny anunciou que ela tinha aprendido 876 sinais. Com um detalhe surpreendente: 54 haviam sido criados pela própria macaca, combinando outros gestos (para se referir a “anel”, por exemplo, Koko combinava as palavras “pulseira” e “dedo”). Em outro caso, ao avistar pela primeira vez um ganso, a gorila teria gesticulado “pássaro” e “água”. Koko aprendia mais e mais, mas também ficava mais triste. Sua solidão era cada vez mais visível.

Para tentar apaziguá-la, uma voluntária levou uma caixa cheia de gatinhos recém-nascidos até a gorila, que escolheu um e o adotou. Seu nome, criado pela própria Koko, era “All Ball” (todo bola). Ela adorava o bichinho, que tratava como se fosse um filhote seu. Mas o caso de amor entre mãe e filho, macaca e gato, durou poucos meses. Durante uma noite, All Ball escapou da fundação e foi atropelado. Ao saber disso, Penny disse a Koko que o animalzinho havia se ferido e não voltaria mais. “Ruim”, “triste”, expressou a gorila, olhando para o lado. “Gato”, “chora”, “eu triste”, “amor da Koko”, complementou. Mais tarde, sozinha, soltou grunhidos de tristeza. Koko ganhou dois outros gatinhos, Lipstick e Smokey, e desde então vive rodeada por bichanos (em 2015, seu presente de aniversário foram dois novos “filhos”, Mr. Gray e Ms. Black).

Como Michael e Koko nunca foram, de fato, um casal, em 1991 a Fundação Gorila saiu em busca de outro parceiro para ela. A seleção envolveu horas de análise em vídeo – todos devidamente vistos pela “noiva”. Caberia a ela a palavra final. Então com 20 anos, Koko beijou a TV ao ver Ndume, um elegante macho, dez anos mais jovem. A escolha animou a todos, especialmente porque Ndume, morador do zoológico de Cincinnati, já havia tido três filhos. Levado ao encontro de Koko, novamente uma frustração. Passaram semanas, meses, e nada de acasalamento. Além da diferença de idade, outra explicação pode estar na inabilidade de Koko em lidar com a questão sexual. Assim como aconteceu com Michael, Ndume ficou sob a responsabilidade da Fundação Gorila, onde vive até hoje.

Atualmente, é improvável que Koko venha a ter filhos, pois a fertilidade da espécie dela cai rapidamente a partir dos 30 anos. A gorila mais velha do mundo a procriar teve filhotes aos 37. Koko inclusive já superou a expectativa de vida de sua espécie, que fica ao redor dos 40 anos. “Quando perguntamos a ela o que quer de aniversário, ela sempre diz: bebê”, disse Penny à BBC, que este ano conseguiu permissão para acompanhar a rotina da gorila durante um mês. As cenas, exibidas em um documentário da emissora, são de cortar o coração. Durante seu aniversário de 45 anos, em julho, Koko irradia tristeza. Pouco se mexe, mal dá importância ao bolo e só aceita assoprar as velinhas após muita insistência de Penny.

Assim como Terrace e Sapolsky não acreditam na eficácia da pesquisa envolvendo Koko, diversas outras pessoas criticam a maneira como a gorila vem sendo criada. Desde 2012, Penny tem enfrentado uma série de acusações. Uma delas, levada à mídia por ex-funcionários da Fundação Gorila, diz que Koko estaria muito acima do peso ideal, por negligência de Penny. Uma fêmea com a sua idade deveria ter entre 70 e 90 quilos, não os 130 de Koko. “Sempre tentamos levá-la para se exercitar, mas ela nunca saía, só queria se sentar para assistir TV ou dormir”, declarou na época uma ex-funcionária, que não quis se identificar. Outras pessoas que conviveram com Koko também condenam a rotina e a dieta adotadas. Em vez de plantas e legumes, a gorila é alimentada com carne, alimentos processados e guloseimas. Elas afirmam que Koko está muito mal de saúde, e é mantida com mais de 70 comprimidos de remédio por dia.

Como se não bastasse, duas ex-funcionárias, Nancy Alperin e Kendra Keller, decidiram processar a Fundação Gorila por assédio moral. Segundo elas, Penny forçava as duas a fazer as vontades de Koko. E, em meio a essas exigências, um fato bizarro: tinham que mostrar os seios para a macaca cada vez que ela pedisse. As ex-funcionárias também dizem que Ndume é maltratratado, relegado a um quase esquecimento. Penny se defendeu à imprensa americana. Disse que Ndume não está esquecido, que não força as funcionárias a nada, que Koko toma apenas 5 a 15 comprimidos, de vitaminas, por dia, que sua dieta é ótima e que o peso tem a ver com o fato de ela ser criada em cativeiro, sem interferir em sua saúde.

Koko, por sua vez, não se manifestou.

***

No dia 19 de junho de 2018, um ano após a publicação deste texto, Koko morreu na reserva da Fundação Gorila, na Califórnia. Ela tinha 46 anos.

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