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Sangue nos olhos

O mineiro Bernardo Franklin ganhou R$ 5 milhões para bancar uma aposta científica que pode dar em nada – ou em um prêmio Nobel

Por Nádia Pontes, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 21 ago 2018, 01h30 - Publicado em 12 jul 2017, 15h18
Bernardo é um observador insistente das plaquetas. Aos poucos, ele tem convencido a comunidade científica a ver as menores células sanguíneas com outros olhos. (Katja Kemnitz/Superinteressante)

O tempo era curto: em dez minutos, Bernardo Franklin precisava convencer 12 renomados cientistas internacionais de que sua ideia valia 1,5 milhão de euros. A regra do jogo era propor um projeto arriscado, inovador, com chances de não dar em nada. Ou de mudar a história da ciência.

O terreno não era familiar. Em Bruxelas, o biólogo mineiro, 36 anos, defenderia seu projeto na sede do Conselho Europeu de Pesquisa. Bernardo apresentou ao júri uma relação desproporcional: a plaqueta, uma das células que aparecem em maior quantidade no corpo humano, é um dos assuntos mais ignorados em análises científicas em imunologia. Bernardo estava disposto a mostrar que essa estrutura simplória, sem núcleo, merecia atenção.

As plaquetas atuam na coagulação, controlando sangramentos. Produzidas na medula óssea, elas chegam a 400 milhões por milililitro de sangue. As células T, um tipo de glóbulo branco campeão em publicações científicas, por sua vez, não passam de 1,5 milhão por ml.

Bernardo quer mostrar que as plaquetas podem estar por trás de processos imunológicos de que poucos desconfiam, incluindo o combate a algumas doenças.

É difícil pesquisar plaquetas sem ativá-las, o que provoca a formação de coágulos. Quando isso ocorre, não há como recuperá-las.

Três meses depois da entrevista, Bernardo foi escolhido para desenvolver sua proposta arriscada em qualquer universidade europeia. Ele deixou cerca de 3 mil jovens pesquisadores para trás e foi apenas o sexto cientista do Brasil financiado do Conselho Europeu de Pesquisa.

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Em 2010, o matemático Artur Avila foi um dos selecionados. Com a bolsa, ele se dedicou aos estudos em teoria de sistemas dinâmicos, e faturou, em 2014, a Medalha Fields, prêmio máximo da Matemática. 

Bernardo pode seguir um caminho semelhante. “Vou tentar mudar um pouco o foco da comunidade científica. Estamos olhando para a plaqueta e tentando dizer: é uma célula muito numerosa, e abrange todos os órgãos, inclusive o cérebro. Ela se infiltra em órgãos que as células do sistema imunológico não conseguem penetrar facilmente, e tem funções imunológicas para além da coagulação”, acredita.

Conversa de café

Natural de Belo Horizonte, Bernardo levou a bolsa de R$ 5 milhões para a Universidade de Bonn, na Alemanha, onde é pesquisador desde 2011. Lá, aprendeu muito sobre o sistema imune.

“Quando cheguei, vi que não sabia nada. Eu fazia pós-doutorado, mas fiquei trabalhando para uma doutoranda, que me ensinou muito. Isso abriu um campo novo, muito diferente do trabalho que eu fazia no Brasil”, relembra.

O biólogo havia deixado a terra natal com um prêmio importante na bagagem. Em 2010, foi reconhecido pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) como autor da melhor tese de doutorado em Medicina II, área que envolve o estudo de doenças infecciosas, entre outras especialidades. O estudo, desenvolvido na Fundação Oswaldo Cruz, investigou o papel dos receptores TLR no combate do corpo à malária – embora os TLR tenham ação conhecida sobre várias doenças, seu papel contra a malária era obscuro.

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Bernardo observou que a ativação dos TLR na malária causava a produção exagerada de citocinas – moléculas que ativam e controlam respostas imunológicas do organismo. No caso, a enxurrada de citocinas ocasionava desde febre alta até malária cerebral, condição que pode escalar para o coma ou até a morte. A intervenção foi baseada em uma droga que inibe os receptores TLR e, por consequência, freia a produção de citocinas. Com isso, mesmo animais infectados com malária não desenvolviam os sintomas.

Os neutrófilos, células de defesa, dependem das plaquetas para migrar para os tecidos em casos de inflamação.

Parte do doutorado aconteceu nos EUA, entre 2008 e 2009, na Universidade de Massachusetts. Sem atrações fora do campus – nem cinema havia na cidade –, a cafeteria da faculdade era um badalado ponto de encontro. Foi lá que o brasileiro conversou pela primeira vez com o cientista Eicke Latz, por quem nutria profunda admiração.

Mais tarde, o alemão foi recrutado pelo governo de seu país para trabalhar com imunologia em Bonn. “Tinha ouvido o professor Latz numa palestra no Brasil, em 2007. Fiquei fascinado e disse para mim mesmo: quero trabalhar com ele.”

Três anos depois do encontro no café, Bernardo, recém-casado, fez as malas para viver em Bonn. “Ele é um cientista excepcional. Bernardo é curioso, motivado e engajado para adotar os padrões científicos mais elevados. Essa é a receita de sucesso de um cientista”, diz Eicke.

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O resultado dos longos dias e finais de semana de trabalho em Bonn acabou estampado na capa da Nature Immunology, em 2014. O artigo, sobre formas de comunicação até então desconhecidas entre células imunes, mudou a visão da comunidade médica sobre processos inflamatórios em doenças como diabetes, reumatismo, Alzheimer e câncer.

(Tainá Ceccato/Superinteressante)

Entre galinhas e Doença de Chagas

Aos 8 anos, Bernardo decidiu ser biólogo, encantado pela dedicação da professora de ciências, Jaqueline. No vestibular, nem tentou outro curso, e se graduou na Universidade Católica (MG), em 2002.

Na iniciação científica, ele foi apelidado de Tião Galinha, personagem da novela Renascer (1993). Bernardo analisava malária em galinhas e, por isso, vivia com as aves febris debaixo do braço, vestido num guarda-pó marcado pelas fezes do bicho.
O estágio nem era remunerado. “Trabalhei muito de graça. Era isso ou eu não mexia com ciência.” 

Quando acabou a graduação, Bernardo quase dançou no mestrado. Mal avaliado ao fim da pesquisa, voltada para a Doença de Chagas, ele pensou em desistir. “Foi difícil me recuperar, não tive uma nota boa e não publiquei nada.” Quando optou pelo doutorado, teve que provar sua competência, conduzir um projeto mais delineado e participar ativamente com perguntas próprias. Foi o estopim para a sequência de bons resultados que vimos até aqui.

Futuro com as plaquetas

Nos próximos cinco anos, o foco de Bernardo está nas plaquetas. A metodologia inclui coletas de sangue, isolamento das plaquetas e contato delas com outras células para investigar como se comportam. Também estão previstos experimentos com animais.

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O futuro time vai analisar a ação das plaquetas no combate a doenças autoinflamatórias. Elas são causadas por mutação em alguns genes que controlam a imunidade. Na lista, estão a síndrome de Muckle-Wells, a febre mediterrânea e a síndrome autoinflamatória induzida pelo frio, mais comuns nos EUA e Europa que no Brasil. “São doenças com espectro grande, algumas letais”, explica.

Seis prêmios Nobel foram frutos do mesmo financiamento conquistado por Bernardo Franklin.

A hipótese é que as plaquetas ajudem na ação dos neutrófilos (células que fazem parte do sistema imune).

“Tenho certeza que Bernardo e seu time farão descobertas com tremenda influência na imunologia. E isso vai abrir novas possibilidades para intervenção terapêutica”, aposta Eicke Latz.

“Sempre quis fazer no Brasil a pesquisa que faço aqui. Acho que é o sonho de quase todo cientista brasileiro”, revela Bernardo. “Mas isso está cada vez mais distante. Li na Nature sobre o congelamento das verbas de fomento à ciência no Brasil. Fico preocupado e triste”, lamenta.

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Ainda assim, por onde passa, Bernardo ouve elogios ao jeitinho brasileiro de fazer pesquisa. Somos conhecidos pela dedicação e por buscar soluções quando a pesquisa segue por um caminho incerto.

De repente, foi esse arrojo que fez brilhar os olhos do Conselho Europeu de Medicina para bancar a aposta do imunologista mineiro. As fichas, as plaquetas e as vidas de muitos estão em jogo. Boa sorte, Bernardo. Agora é all-in.

Quebrando a banca
O Conselho Europeu de Pesquisa (ERC, na sigla em inglês) foi criado em 2007 para desafiar – e patrocinar – algumas das mentes mais brilhantes do mundo.

Nos últimos dez anos o ERC recebeu mais de 65 mil candidaturas a bolsas na Europa. Apenas 7 mil foram selecionadas e somam, até hoje, um investimento de 12 bilhões de euros. Quanto mais inovador e arriscado for o projeto, com potencial de mudar o horizonte com descobertas imprevisíveis ou avanços tecnológicos, maior é a chance de financiamento. Segundo o ERC, 75% das bolsas concedidas resultaram em grandes avanços para a ciência. Um exemplo é a terapia genética desenvolvida pelo turco Deniz Kirik, que pode ajudar pacientes com Parkinson. A descoberta do sistema estelar Trappist-1, com planetas similares à Terra, foi anunciada pelo astrônomo belga Michaël Gillon, outro financiado pelo ERC.

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